terça-feira, 16 de agosto de 2011

O sujeito da acção

A função sintáctica do sujeito numa oração contém um paradoxo. Esse paradoxo está já presente na designação de sujeito. Na voz activa, o sujeito é aquele que pratica a acção. A ideia de praticar a acção pressupõe um princípio de iniciativa, uma capacidade de fazer acontecer qualquer coisa no curso dos acontecimentos. Esta ligação do sujeito à iniciativa parece revelar um princípio de liberdade. Livres são aqueles que estão capacitados para fazer acontecer alguma coisa. O paradoxo não se manifesta, como se poderia esperar, na transição para a voz passiva, onde o sujeito sofre a acção. O paradoxo está na própria voz activa. A relação do sujeito com o verbo que denota a acção é o centro desse paradoxo. Parece que a acção depende da liberdade do sujeito, que este é soberano no seu agir. Mas se meditarmos sobre essa relação, depressa se torna evidente a submissão do sujeito à acção que pratica, e descobrimos a dependência e passividade do sujeito relativamente à acção. A ideia de que a liberdade reside nesse poder de iniciar algo através da acção sofre um duro revés. Ao agir, o sujeito descobre-se passivo perante a sua própria acção, que o subjuga e o submete, isto é, que o torna sujeito a ela. Não é apenas a voz passiva que evidencia a natureza passiva do sujeito, a própria voz activa acaba por relevar que o próprio agente não é mais que um mero paciente.

Daí que algumas tradições falem da liberdade de uma forma paradoxal. O agir não agindo do taoísmo ou conhecer não conhecendo da mística apofática cristã são formas de sublinhar a situação paradoxal do sujeito. A liberdade começa por ser, deste modo, não a capacidade de agir ou de realizar de um sujeito, mas o resultado de um processo de libertação do sujeito relativamente à sua subjectividade e ao seu ser sujeito. Um libertação não apenas da passividade denotada na voz passiva, mas da própria actividade. O agir deverá, então, ser entendido como um processo em que quem age se deve libertar dessa mesma acção. Isto não significa que o resultado será a presença de um sujeito puro e desprendido de qualquer acção. Signifca antes o deixar fluir da acção sem ver nela e sob ela uma substância que a pratica, um sujeito poderoso, capacitado para produzir algo novo no mundo. Libertação da acção significa a libertação da acção de um sujeito e de uma subjectividade que a limitam.

Poemas do Viandante

192. SPES (IV)

o corpo rasgado
a pele sulcada
pelas chuvas
de setembro
o cheiro do vinho
a arder
na névoa do passado

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

191. SPES (III)

ser assim tão simples
ter poucas palavras
repeti-las
infinitamente
e esperar
que os teus dedos
um dia poisem
como aves
nos meus

domingo, 14 de agosto de 2011

Cuidar do Jardim do Éden

Se o mundo pode ser visto como um enorme mosteiro, como devem os homens, enquanto monges, comportar-se nele? Duas tradições podem ser observadas. Por um lado, a que deriva de Platão e vê o mundo à imagem da caverna, como um lugar de terrível ignorância e insensatez. Outra tradição, porém, recorda-nos que o mundo é o verdadeiro Jardim do Éden, e que se o não sentimos enquanto tal é porque pervertemos a relação que com ele mantínhamos e, desse modo, pervertemos a relação com Deus e com os outros homens. A tradição platónica propõem, como salvação, a viagem extra-mundana, onde a realidade tal como ela é se revelaria na sua verdade ao viajante. A tradição judaica-cristã é menos metafísica, pois sublinha que o Jardim do Éden é aqui mesmo, nesta Terra. E se esta surge aos nossos olhos como uma obscura caverna, o problema não está na Terra mas em nós que pervertemos a relação originária. Seria um equívoco pensar que a tarefa essencial residiria numa dedicação ao mundo e curar as perversões sociais e ambientais. Cabe ao homem cuidar do Jardim do Éden, mas isso significa antes do mais que lhe cabe pôr fim à relação distorcida e pervertida que ele tem com o mundo, Deus e os outros. Cuidar do Jardim do Éden começa por ser uma trabalho sobre si mesmo, uma conversão de atitude, uma abertura contemplativa sobre si, os outros, Deus e o mundo. E será este trabalho contemplativo que ensinará a cada um não apenas a ver o mundo como o Jardim do Éden, mas como deverá tratar daquilo que a vontade do Altíssimo lhe pôs ao seu cuidado. Cuidar do Jardim do Éden não é, em primeiro lugar, um projecto de acção e um plano de actividades a inscrever no curso do mundo. Pelo contrário, começa pela contemplação e toda a acção deve ainda ser não só uma emanação da contemplação, mas pura contemplação, como se em cada gesto se abrisse perante nós a revelação do sagrado.

sábado, 13 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

190. SPES (II)

caem as primeiras folhas
ainda os pássaros cantam
no engodo do verão

o vento traz
o odor da infância
as cores que desciam
da serra
e ateavam o mundo
na surpresa
do teu olhar

Do mundo e do convento

Uma longa tradição habituou-nos a opor mundo e convento, fazendo do primeiro o lugar onde se desenvolve a vida profana - talvez se devesse dizer a profanidade da vida - e do segundo, o lugar de oração e santificação, de experiência do sagrado. Mas esta oposição - ou mesmo a mera diferenciação - contém em si muito de artificial. Em primeiro lugar, porque o convento é um microcosmos que se constitui e está no mundo. Este não cessa nas paredes conventuais. Pelo contrário, trespassa-as. Mais, existe dentro delas de pleno direito, como se fosse impossível expulsá-lo. Um microcosmos não deixa de ser um cosmos e de estar nele. Em segundo lugar, porém, podemos fazer a leitura oposta. O próprio mundo pode ser lido como um gigantesco convento, onde cada cada ser humano se encontra em reclusão, onde foi convocado para a experiência de libertação, a experiência do Absoluto, dessa liberdade que nos liberta em primeiro lugar da sujeição a nós mesmos. O convento é apenas uma simbolização do mundo ao qual fomos chamados a realizar o mistério da nossa humanidade. Em última análise, estar fora ou dentro do convento acaba por ser indiferente. O apelo e a injunção que nos são dirigidos são os mesmos, a metamorfose da profanidade da vida na sua sacralidade, a conversão da servidão em liberdade.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Paz e liberdade


A longa análise que Michel Foucault, em É Preciso Defender a Sociedade, faz das posições do conde Henri de Boulanvilliers acaba por fazer pensar, mais uma vez, na difícil relação que o Cristianismo tem com a história e a política. A ideia central de Boulanvilliers, segundo a leitura foucaultiana, reside em ver o desenvolvimento tanto do direito como da política como uma forma de continuação da guerra e do direito de conquista. Contrariamente ao que dirá posteriormente Clausewitz, a norma pressuposta é que a política seja a continuação da guerra por outros meios. Também a liberdade, para o aristocrata francês do século XVII, reside no poder de limitar a liberdade dos outros, i. e., de submeter os mais fracos. Estas duas ideias são centrais no argumentário de Boulanvilliers a favor das prerrogativas  da aristocracia franca sobre os derrotados gaulo-romanos (que constituiriam o terceiro estado) e contra a pretensão absolutista da monarquia francesa.

Ora aquilo que Cristo traz ao mundo é um princípio de paz contra o direito e a supremacia fundados na guerra, bem como uma liberdade cuja finalidade é a libertação de tudo aquilo que cativa o espírito do homem e o subjuga. Paz e liberdade (entendida como desapego, segundo Eckhart) que cada um deve realizar na sua existência e, através dessa realização pessoal, fazê-las entrar no tecido social e enfrentar a longa tradição da crueldade e da sujeição. Independentemente do comportamento da Igreja, muitas vezes demasiado mundano, o Cristianismo semeou um conjunto de valores que acabaram por fundar, contra a experiência histórica da violência, os princípios de civilidade mais elevados que, até hoje, foram trazidos à humanidade. Que esse mesmo Cristianismo tenha sempre uma relação tensa com a dinâmica social - mesmo, e talvez de forma mais acentuada nesse caso, quando era social e politicamente dominante - não admira, pois nem a paz nem a liberdade, como libertação e desapego, são valores deste mundo. E é este carácter adversarial da religião cristã relativamente à longa tradição histórica que marca um princípio de esperança para os homens, independentemente do comportamento efectivo dos que se dizem cristãos ou da própria instituição que suporta esses valores. Os valores - a paz e a liberdade - estão aí como uma injunção.

Poemas do Viandante


189. SPES (I)
 
vem
e traz o teu ardor
adolescente
sob o véu
que te entardeceu

esperam-te mãos
despidas
e um espírito corsário
no mar bravio
desse corpo
agora meu

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Poemas do Viandante


188. SOPRO
 
o canavial preso
nas areias
ondula
na música soprada
pelo vento

gaivotas vêm
e vão
enquanto no mar
em silêncio
nasce invisível
a sombria sombra
da noite

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

187. FÉ

escavar na areia
o teu nome
e escutar o rumor
dos passos
sobre a água
 
a tempestade
ergue-se na noite
e a palavra
um eco de fogo
canta nas frias
fronteiras
do coração