sábado, 13 de junho de 2009

Viagem

Ser viandante é apenas estar em viagem, mas a viagem é infinita, não tem princípio nem fim. Um dia, surpreendemo-nos na viagem, mas ainda não percebemos que estamos a viajar, pois não sabemos de onde viemos nem para onde vamos. Temos a ilusória esperança de encontrar uma meta para onde caminhar. Mas enquanto caminhamos e caminhamos, enquanto nos vamos perdendo no caminho e, filhos pródigos, retornamos ao viajar, começamos a pensar que nada há para além do viajar. Talvez haja ainda, nesse momento, a necessidade de uma trégua, a busca de uma finalidade, a ânsia de um fim. Isso, porém, é a voz da nostalgia dos verdes anos. Com o tempo descobre-se que é uma doença benigna, com o passar dos dias e dos anos acabará por passar. Por fim, revela-se no viajar a essência do viandante. Nessa luz, ele sabe que não se dirige para lado nenhum, pois não há qualquer lado onde ir, descobre que ir ou permanecer são exactamente a mesma coisa, são ainda e só a viagem.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Poemas do Viandante (24)

24. FOGO


fogo
penumbra
desta mão

nome
tão veloz
dói 

se toca 
a ausência
foge de nós

quinta-feira, 11 de junho de 2009

O Corpo de Deus

Dia de Corpo de Deus, dia de afirmação da presença substancial do corpo e do sangue de Cristo na hóstia consagrada. Mas o que de mais fundo agora podemos pressentir, para lá do mistério eucarístico, é a sagração do corpo. Estranha visão esta. Não será o cristianismo a religião adversa do corpo e da carne? Mas como pensar então no corpo de Deus? Como estabelecer a conexão entre Deus e corpo? O corpo de Cristo simboliza o carácter divino do próprio corpo. E o corpo não é apenas corporalidade reduzida à mera extensão, reduzida a uma geometria tri-dimensional. O corpo e o sangue enviam-nos para a ideia de carne, de corpo vivo, mas também aqui não estamos perante uma dimensão puramente biológica. O corpo é mais do que um elemento físico e biológico, o corpo humano, com tudo o que contém, é um mistério e um caminho que leva o homem para além daquilo que é meramente humano, ou, dito de outra forma, sendo humano é, por isso mesmo, sobre-humano.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Poemas do Viandante (23)

23. imponderável


imponderável 
sopro do vento

um rasto de água
na porta da casa

um grito uma mão
a voz do tormento

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Poemas do Viandante (22)

22. venha o que vier

venha o que vier

e o pobre o coração
treme corre desagua
nas areias do mar
na luz do dia
na sombra da lua

virá o que vier

sábado, 6 de junho de 2009

Meditação e arte

Diz Merton: "Aprendamos a meditar no papel. O desenho e a escrita são formas de meditação." Como compreender a palavra do cisterciense? Talvez percebendo que na meditação como na arte não é o sujeito que é o centro e o autor, mas que qualquer coisa se revela nesse seu meditar ou criar, e aquilo que se revela aí é o verdadeiro autor. O sujeito não passará então de um mediador onde aquele ou aquilo que se deve revelar se revelará. Por isso, a meditação e a arte exigem o desapego e o apagamento do sujeito.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Poemas do Viandante (21)

21. a sombra

a sombra
desvanece-se

uma casa
uma promessa

a mão que se estende
mal amanhece

A morada do cansaço

Escrevo agora da morada do cansaço. É uma casa turva de onde o olhar sai com dificuldade, mas é nela que nasce uma súbita volúpia, como se a quebra física fosse uma porta para uma estranha dimensão metafísica. Exausto o viandante quer descansar, mas é aí que vem a hora de retomar caminho. Caminhemos por entre a astenia e escutemos o que se canta nas novas paisagens que, abertas na morada do cansaço, chegam.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Poemas do Viandante (20)

20. corações

corações
barcos irrevogáveis

abrem no mar 

esteiras de cristal 

símbolos segredos

um leve sinal

domingo, 31 de maio de 2009

Segredo

Ser-se si mesmo. Mas como ser si mesmo se não sei quem sou? A resposta, porém, não está no "conhece-te a ti mesmo" socrático, mas no esquecimento de si, nesse mergulhar na escuridão e nela encontrar aquilo que em mim é mais do que eu. Ser si mesmo então é ser mais do que eu, é ser pura e simplesmente, é abrir-se, romper a clausura do ser e deixar que ele venha. O meu segredo é não ter segredo nenhum, mas ser todo e completamente secreto. Ser-me é ser o segredo que me habita.

sábado, 30 de maio de 2009

Poemas do Viandante (19)

19. eis a casa

eis a casa 
onde te penso

na mesa 
pão e vinho
talher de prata
toalha de linho

sexta-feira, 29 de maio de 2009

O inútil protesto

Agir e não desejar o fruto da acção, fazer o que deve ser feito e não esperar recompensa, quebrar a lógica do dom. Doar mas sem expectativa de receber, sem protesto pela ausência de reconhecimento. Entregar tudo nas mãos daquele que tudo superintende, mesmo se Ele não se move, não planeia, não espera. Quem está no mundo deve agir, mas deve agir como se contemplasse, como se não agisse. Mas será o viandante capaz de tal entrega? Quantos protesto inúteis contra o que acontece, como se o acontecer não fosse ainda manifestação de uma vontade que a tudo ultrapassa?

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Poemas do Viandante (18)

18. avisto o verão

avisto o verão
túnica púrpura
e cabeça de oiro

quando chega
tudo ferve

a boca amarga
as ervas secas
os pinhais a arder

Tristan und Isolde


Oiço agora a cena final de Tristan und Isolde, de Wagner. Como é possível que um homem tenha feito aquilo? Como na pura imanência se inscreve a absoluta transcendência? Ali, na mais funda contenção, desenham-se mil mundos possíveis, como se Deus descesse naqueles acordes e trouxesse a densidade da sua dor para a compartilhar connosco. A dor de Deus feita música, uma dor que chama por nós na noite negra, uma dor que abre o mundo à terna alegria.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Poemas do Viandante (17)

17. a vara sobre a terra

a vara sobre a terra
a mão cheia de sal

um risco de azul
aberto no céu
sob o silêncio de coral

Perder tudo

Abandonar, abandonar tudo, perder inclusive Deus. Aí, na extrema derrelicção, abre-se um caminho, escuro caminho, envolto em trevas e negra luz. Não é um caminho que o caminhante faça, pelo contrário. É o caminho que torna o caminhante em caminhante, o absorve no vácuo que nasce do abandono.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Poemas do Viandante (16)

16. sinal no deserto

sinal no deserto
ave de sombra
flor que se abre
a voz tão perto

domingo, 24 de maio de 2009

Espanto

Como deixar que o espanto venha e nos arranque da insensata sensatez com que a vida toldou o espírito? O hábito cresce como uma sombra sobre o desconhecido e sob o véu desta sombra o desconhecido toma a aparência do mais conhecido. Na mais intensa luz do conhecimento abre-se secreto o segredo do desconhecido. Todo o conhecimento humano é revelação. Revelar significa mostrar e, ao mesmo tempo, tornar a velar, a ocultar. O espanto não será então a deriva de um espírito inconstante, mas a atenção suprema ao instante, àquele instante em que o divino se revela, se mostra e se oculta, se dá a nós e nós, na insensata preocupação de o capturar, o perdemos.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Poemas do Viandante (15)

15. sombras na viagem

sombras na viagem
paixões de salitre
mar incendiado
na madrugada

se abro os olhos
tudo vibra
névoa e melancolia
a memória derrotada

quinta-feira, 21 de maio de 2009

A voz que cantará

Um passo mais, um desbravar de horizonte, um abrir-se ao desconhecido que há no fundo de si. Conhecemos demasiado e em todo o conhecimento há uma ocultação. Envoltos no orgulho da vitória cognitiva, esquecemos esse fundo obscuro de onde provém toda a luz. Abrir-se ao desconhecido que há em si é mergulhar nas trevas mais densas. Ali esperamos a voz que cantará pela meia-noite.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Poemas do Viandante (14)

14. não fora o medo

não fora o medo
e eu cantaria
a tua face

sombra desmedida
no alvoroço
da eternidade

terça-feira, 19 de maio de 2009

Dissipação

Um dia entregue à pura exterioridade, uma quase impossibilidade de conjugar a pessoa em que sou com as exigências que a vida em sociedade impõe. Há muitas formas de calvário, e aquilo que para uns é motivo de prazer e felicidade pode ser para outros o transporte de pesada cruz. Mas agora que medito e olho para a dissipação do dia, descubro aí um passo mais para Aquele que ultrapassa as dores e os prazeres, ou que faz de cada dor e de cada prazer um caminho para Si. Como me atrevo a dizer que a dissipação é dissipação?

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Poemas do Viandante (13)

13. sentado no molhe

sentado no molhe
ou viajando 
de cais em cais
oiço pássaros
conto estrelas

e nessa harmonia
o coração abre-se

uma sombra
um castelo
a fonte onde
a dor amanhece

Ser e querer

Deus é um prodígio: Ele é o que Ele quer, / E quer o que Ele é, sem medida nem finalidade (Angelus Silesius, O Viajante Querubínico I, 40). Eis a medida de todo o homem, Deus a perfeita coincidência do ser e do querer, uma coincidência incomensurável e gratuita. Neste espelho descubro os meus limites: não sou aquilo que quero e não quero aquilo que sou. Aqui nasce toda a moral: eu devo ser aquilo que quero. Mas se eu nada quiser e se eu nada for? Quem será em mim e quem em mim quererá?

domingo, 17 de maio de 2009

Morte e ressurreição

Morte e ressurreição, a estranha promessa sobre a qual um mundo foi construído. Mas a nossa estranheza repousa apenas na desatenção com que olhamos a vida. A cada instante vivemos a Sexta-feira Santa e o Domingo de Páscoa, a cada instante a morte é condição de possibilidade da ressurreição. A promessa da ressurreição não nasce, desta forma, de uma possibilidade metafísica, de uma especulação fundada na imaginação, mas da pura atenção ao acontecer. A ressurreição tem uma génese empírica, génese essa que nasce da contemplação do devir temporal. Onde o tempo actua, eu vejo a morte triunfar e no mesmo instante observo a ressurreição que aniquila morte. A ressurreição é a morte da morte, e a vida não mais do que esse perpétuo jogo, que o tempo traz e oculta.

sábado, 16 de maio de 2009

Poemas do Viandante (12)

12. caminho

caminho
como caminham 
os mendigos

porta em porta
à espera
de uma rosa
de um raio de luz
da noite

o que me leve para ti

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Saber demais

Saber da luz e ser cego, conhecer o som e ser surdo. Como fugir desta condição onde o não saber cresce dentro de tudo o que se sabe? Não vale a pena o estratagema do velho Sócrates, o só sei que nada sei. Não devia ele um galo a Asclépio? Não, eu sei de mais, todos sabemos demasiado. De tanto sabermos, já nada sabemos. É na luz que cresce a escuridão, é no som que cresce o silêncio. É no oásis que se eleva o deserto. Pudera eu aniquilar todo o meu saber e tornar-me cego e surdo no deserto ardente.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Poemas do Viandante (11)

11. caem palavras

caem palavras 
breves sinais

um retrato 
uma cifra
a noite rasurada 
pelo cais

A luz que oriente

Um dia de dissipação. O espírito arrastado pelo turbilhão dos devaneios, uma distracção contínua, uma impossibilidade de ir para o essencial. Um dia de seca e de aridez, um dia desperdiçado, um dia escuro e afastado da luz, de qualquer luz, por mais pobre e sumida que fosse. Mas este é apenas mais um dia entre os muitos onde a vontade se arrasta impotente, e nessa impotência se entrega à luxúria desenfreada do devaneio. O devaneio nasce do fascínio que certas coisas exteriores exercem sobre a imaginação, impedindo o espírito de operar. Mas por que será tão frágil o meu espírito, tão incapaz de resistir à tentação? É um espírito perdido, abandonado nos baldios da terra, sem rota nem estrela polar. Ainda virá uma luz que o oriente?

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Amor

Haverá amante e coisa amada? Enquanto um e outro suspirarem ainda o amor não estará presente. Quando este vem, já não há quem ame nem quem seja amado, mas apenas o puro amor subsiste, nessa indiferença tão diferenciada, nessa prisão tecida de liberdade.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Poemas do Viandante (10)

10. oiço o vento


oiço o vento 
pelos canaviais
um murmúrio
na cidade

alguém chega 
cantando
no vendaval 
da saudade

segunda-feira, 11 de maio de 2009

O mar incriado

Mergulhar no mar incriado da divindade pura, diz Angelus Silesius. Apenas isso e nada mais do que isso. Mas como entrar nessa água? Saber-nos-emos despir para que o mar não nos confunda? Se se despir completamente, se tirar uma a uma as peças de roupa que o revestem e mascaram, haverá ainda uma distinção entre aquele que mergulha e a água desse mar incriado onde mergulhará? Despir-se de si, abandonar-se, tornar-se vazio; o mar aí estará no puro esplendor do que não tem começo nem fim.

domingo, 10 de maio de 2009

Poemas do Viandante (9)

9. falam poetas

falam poetas
do exótico fruto
e cantam
a seda do oriente

sonham sonhos
de veludo
e de tâmaras
a taça ardente

sábado, 9 de maio de 2009

Da conduta viciosa

Há na conduta viciosa qualquer coisa que merece meditação. Não refiro o vício nas suas dimensões moral e social, ou mesmo na dimensão ética, se distinguimos esta, de natureza mais pessoal, da moral, de natureza mais colectiva ou gregária. A dimensão que merece meditação é a do espírito. No vício, através dos processos de iteração inerentes à conduta viciosa, o espírito fecha-se nesse acto de pura repetição, já sem consciência, de uma conduta marcada pela necessidade. O vício começa então por ser uma prisão onde o espírito aliena a liberdade. Ao alienar a liberdade afasta-se da sua natureza. O vício antes de ser um problema do indivíduo na sua relação consigo e com os outros é um problema do espírito, que assim é negado. Mas por que há essa necessidade de alienar o espírito? Porque este é atraído por uma luz que o ultrapassa e lhe dá ser. Mas essa luz tão obscura e espessa, e ao mesmo tempo excessivamente luminosa, faz o espírito tremer. Perante este "temor e tremor", o espírito foge de si e defende-se na alienação do vício, isto é, da conduta que prende o espírito na terra estranha da necessidade e da pura repetição da nulidade. O vício é o exercício contínuo de fuga perante o único real efectivamente real.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Poemas do Viandante (8)

8. partiram

partiram
entre acenos
e gritos
na madrugada

os barcos iam
leves e serenos
a vida
menos que nada

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Poemas do Viandante (7)

7. esse olhar


esse olhar
onde pétalas
caíam

um rumor  
se acendia

inclinava-se 
para o meu
sem fronteiras 
sem melancolia

O mundo

O mundo não é uma ameaça à vida do espírito. Apenas a forma como se está no mundo a ameaça. Não vale a pena fugir para o deserto ou encerrar-se na clausura. Também aí está o mundo. Está, talvez, de uma forma mais aguda e dilacerante. O mundo é a habitação do homem e foi dado a este para que ele aí estivesse e permanecesse não num lugar hostil, mas como se estivesse em sua própria casa. Fugir do mundo é assim fugir da casa que herdámos. O problema que nasce então é o da forma como habitamos aquilo que nos foi dado habitar. A ideia de dádiva é já o primeiro sintoma de como devemos aí estar: cuidar do que nos foi doado. Mas esse cuidar não significa que o espírito se prenda à coisa doada, mas se erga ao doador e, na luz que deste emana, olhar cada gesto com que preenchemos o mundo.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Poemas do Viandante (6)

6. se uma folha breve

se uma folha breve
da árvore se vai

uma estrela treme
e logo logo cai

Estar em vigília

Thomas Merton diz, em Semences de contemplation, que "não esperamos na contemplação, evadir-nos da luta, da angústia ou da dúvida." Procurar o caminho do espírito não é uma estratégia de alienação. Se me ponho a caminho não é para fazer disso um analgésico para as dores que o mundo, ou a vida, ou as ilusões que eu próprio crio. Pôr-se a caminho é manter-se atento e desperto. Em vigília. Estar em vigília é abrir-se para o conflito entre a minha mundanidade e aquilo que está para além dela e nela se oculta. Estar em vigília é aceitar plenamente a angústia da incerteza ou o tormento da dúvida sobre o caminho que se tomou. O caminho do espírito não é uma diminuição da nossa natureza humana. Pelo contrário, é o começo de nos tornarmos verdadeira e completamente humanos.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Poemas do Viandante (5)

5. cai a flor

cai a flor 
da amendoeira
e nos barcos 
o pavilhão arvorado

se sabes a cor do tempo 
desenha uma flor
no oceano
da eternidade

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Eu não sou eu

Eu não sou eu. Terrível infracção do princípio de contradição. É por aqui que talvez comece o caminho. Ilógico caminho, dir-se-á. Sim, é ilógico o caminho que vai do eu que eu não sou para aquele que, não o sabendo, sou-o. Talvez toda a lógica, essa obra assente na tautologia da identidade e na exclusão da contradição, tenha por finalidade assegurar que esse eu que não sou pareça ter uma existência própria, e possua uma realidade efectiva. Mas a via verdadeira deverá começar pela contradição, pela negação de si, pela experiência de que não sou o eu que estou convicto ser. Não preciso de me afirmar nem de me confirmar. A única coisa que preciso é de desconfirmação. O medo, porém, dessa desconfirmação do meu eu é tanto que logo me agarro a ele e o exibo aos olhos dos outros para que eles o confirmem perante mim. Eu não sou eu, eis o terrível portal que temo passar. Para lá dessa limiar espera-me a escuridão ou a luz mais intensa.

domingo, 3 de maio de 2009

Poemas do Viandante (4)

4. faz do rio metáfora


faz do rio metáfora
e das águas metonímia

deixa a floresta
e cobre a face
de invernos a arder

ouve a voz do vento
e a noite
esquecer-se-á de ti

Liberdade

O espírito dispersa-se nos afazeres quotidianos, mas isto é apenas o sinal de um espírito ainda incapaz da liberdade. Que entender por liberdade aqui? Talvez um fazer como se não estivesse fazendo, um fazer desapegado e, ao mesmo tempo, atento ao que se faz e à fonte de onde jorra essa liberdade. O sentimento amargo de que, com as tarefas que o dever impõe, estamos a perder tempo, um tempo essencial, é ainda a ilusão de um espírito que se deixa prender nas artimanhas do eu. Fazer como se não se esperasse nada. Estar plenamente nesse fazer como na ausência do fazer. Mas o meu espírito ainda é incapaz de tal liberdade. A amargura é o sintoma dessa impotência e o sinal de que se está ainda demasiado preso ao mundo.

sábado, 2 de maio de 2009

Poemas do Viandante (3)

3. não tragas a razão para casa

não tragas a razão para casa
deixa-a vaguear pela tarde
sentar-se ao crepúsculo
gritar no terror da noite

não tragas a razão para casa

sexta-feira, 1 de maio de 2009

O terceiro excluído

Se penso na alma cindida, nessa divisão que me opõe a mim mesmo, nesse acontecimento em que quero o bem, mas é o mal que pratico, fico perplexo. Não são dois aqueles que encontro em mim, mas três. Um que quer o bem que o dever traz consigo, o outro que, como Paulo de Tarso, pratica o mal que sempre acabo por fazer. Mas para além deles, desses que querem em mim ora o bem ora o mal, há um outro que nada sabe do bem e do mal e que vive na luz duma inocência que se inocentou. Só nesse sinto a força que pode soldar a alma e reconstituir-me numa unidade que a vida rompeu. Na lógica que triunfou, esse é sempre o terceiro excluído. Mas será a vida uma questão de lógica?

Poemas do Viandante (2)

2. tocada pela voz

tocada pela voz
a sombra 
dessa boca 
prende-me aos lábios 
que dizias meus

era o tempo 
em que tinha
corpo 
e na luz de julho 
o via como se fora teu

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Escrevo da desolação

Escrevo do sítio da desolação, não da desolação do corpo ou da alma, mas da desolação do espírito perdido num deserto tão cheio de gente. Sento-me e observo e espero que venha a mim aquilo que terá de vir. Mas tudo me dispersa e me envia para o excesso. Febril, oiço as vozes que cantam a Primavera, que teima em não partir. Para que quererás tu, pobre viandante, o calor do Verão? Não sabes o que sofres quando a temperatura cresce e a sombra, como num prolongado meio-dia, desaparece? Ainda agora, passados todos estes anos, nada sabes. Ficas a rememorar passados, a contar futuros que nunca virão, a perderes-te desse súbito presente que, mal irrompe, a sombra o traga. Escrevo da desolação desse meu espírito tão incapaz de olhar o que há para ver.

Poemas do Viandante (1)

1. chegará maio

chegará  maio
e o seu desamparo

na mão um fruto
hasteado ao vento

a pressa cansada
de uma metáfora

o corpo que se rasga
e abre para o verão

Terra da alegria

Quantas vezes o silêncio prolongado nada mais é do que a sombra do ruído? Há quantos dias ou meses não venho aqui? Perdi-lhe o conto e nem quero ver a data da última coisa que deitei neste mar de cinza. Terei esquecido a caminhada? Como seria possível fazê-lo? Apenas a dissolução da vontade tem crescido e o escrever tornou-se penoso. Olho a noite travestida de néon e vejo o desespero dos faróis a relampejar na avenida. Pequena cidade a minha, tudo nela tolhe o caminho. Aqui não ha quem peregrine. Mas que sei eu do mistério que há nesses outros todos que tenho vindo a desconhecer? Caminham como eu, por certo, e eu andarei tão perdido quanto eles. Mas andar perdido não é o destino daquele que ainda não chegou à terra da alegria?