segunda-feira, 19 de maio de 2008

A morte da vontade

Luto contra a inércia e a indolência. Sento-me e obrigo-me a escrever e a trabalhar. O corpo, porém, é arrastado por um espírito em devaneio e por uma sombra nebulosa que parece cair sobre o cérebro e invadir os braços e o peito. Há um desfalecimento da vontade, mas este desfalecer é tão físico que quase o posso tocar. Talvez agora perceba por que motivo a preguiça é um pecado mortal. Nela habita a morte da vontade, de qualquer vontade, boa ou má. Mas, se olho com mais atenção, surpreende-me que ela seja considerada um pecado, como uma má escolha do meu livre-arbítrio. Eu não quero a preguiça, a indolência, a inércia da vontade. Apenas as sofro e sofro dolorosamente como se me atingissem no mais fundo do meu ser e me destruíssem, lentamente e com determinação. Por vezes, a quantidade de força para vencer a inércia é tão grande que me desgasto só na mobilização da vontade. Na base da preguiça existe uma desordem no ser, como se os elementos estivessem desestruturados e para conduzir a vontade à acção fosse necessário um árduo trabalho de reconstrução. Ao fim de tantos anos, sei que sozinho jamais conseguirei triunfar sobre este desarranjo estrutural. Mas será que sei abrir-me àquilo que ainda há de saudável no fundo do meu ser? Sim, pois apesar das contínuas derrotas de uma vontade frágil, nunca, até hoje, deixei de ter esperança de que as coisas acabariam por ser de outra forma, embora não saiba como será essa outra forma.

domingo, 18 de maio de 2008

O corpo desejado

O desejo de um corpo é muitas vezes mais do que um desejo corporal, de satisfação dos sentidos, se é que esta expressão descreve seja o que for na paixão erótica. A imaginação trabalha sobre o corpo desejado e, se esse desejo nunca foi consumado, ela abre uma clareira onde tudo se ilumina. Desejo aquela pessoa, pressinto o seu corpo a chegar junto do meu, a sua na minha boca. Mas não é aqui que está a verdade desse desejo. Há qualquer coisa inapreensível que me faz querer aquela pessoa e não outras, ou não muitas das outras que existem. É esse “qualquer coisa” que contém um segredo e é nesse segredo que se inscreve o meu desejo. É um facto que desejo aquele corpo, aqueles lábios, desejo ter a minha mão sobre aquela pele, desejo fundir-me naquela pessoa e amá-la, desejo a perdição do sexo e o fulgor de um beijo, desejo que aquele corpo me solicite e se torne solícito à minha solicitação. Mas nada disso ainda tem sentido, nada disso é relevante, nada disse me mostra a essência do meu desejo que se manifesta no desejar daquela pessoa. Pressinto que, para além do corpo desejado e da fusão desses corpos no jogo do amor, há um espírito que se reconhece, talvez por breves instantes, noutro espírito e que, mais do que os corpos, são eles, esses estranhos habitantes das nossas pessoas, que se desejam e que, mais de que todo o resto, desejam fundir-se. Não são os corpos que se desejam, são os espíritos que se procuram e atraem através da espessura nebulosa dos corpos, esses santuários onde o espírito vive puro e sem mácula. Talvez não exista outro amor para além do platónico, talvez. Mas para que isso se torne compreensível, há que pôr de lado aquilo que popularmente se entende por amor platónico.

sábado, 17 de maio de 2008

Da dor e da compaixão

Como pode o drama dos outros tocar-nos se, a seus olhos, somos os culpados desse drama? Dito assim, ainda haveria lugar para considerar um sentimento de culpa na compaixão. Mas se somos culpados pelo mero facto de existirmos, como sentir remorsos por esse facto? Como é possível a compaixão quando se pressente no outro o desejo da nossa aniquilação? Talvez seja possível a compaixão. Mas temo que essa compaixão não seja mais do que a exibição de um sentimento inqualificável de superioridade. Ouve-se o outro, desesperado, a falar, escuta-se a angústia que o percorre, a derrota que o atormenta, derrota da qual somos, a seus olhos, culpados, embora não tenhamos jogado qualquer jogo, embora não tenhamos dado um passo nesse sentido. Enquanto se ouve e fala, o espírito interroga-se sobre como trabalhar naquela situação. Sobre o outro, ainda por cima, temos a vantagem de saber que tudo o que o atormenta é insignificante e que a causa daqueles tormentos apenas está na vaidade, num ego dilatado, em alguém que não é capaz de lidar com a derrota, se é que há uma derrota. Nada disto se lhe pode dizer, pois a verdade destas palavras seria sentida como mais uma exibição inqualificável de superioridade. Deixo-o falar, falar, acusar e continuar a falar. De um determinado ponto de vista, é um exercício infinito de humilhação. Sinto que a única compaixão possível é dar-lhe espaço, abrir o campo para que possa falar e enquanto o quiser fazer. Há ali uma dor sem sentido, mas pelo facto de o não ter não deixa de doer. Talvez a compaixão mais verdadeira seja deixar que o outro exiba a dor que o atormenta. A dificuldade, porém, é não alimentar qualquer expectativa sobre a nossa superioridade, como se essa expectativa não fosse exactamente igual a dor que consome aquele que fala.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

A tensão do acontecer

Uma noite mal dormida e cheia de peripécias rocambolescas, um dia vago e vazio, como se o espírito, confundindo-se com o corpo, precisasse de descanso. A tensão do acontecer prende em si o pensamento e este apossa-se de todo o ser, impõe-lhe os seus devaneios e inconsequências. Um dia entre a agitação da possessão pela corrente de consciência e um cansaço de quem precisa de dormir e há muito não o faz. Respiro fundo e anseio pela hora em que posso descansar.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

A matilha de cães

Se tudo em mim se silenciasse, o desejo, a vontade, o intelecto, a memória, talvez alguma coisa pudesse falar nesse silêncio. Mas como poderei calar a matilha de cães que me habita e não pára de ladrar? Se sinto um anseio pela quietude, logo os cães começam a rosnar e a latir e quanto mais os puxo para casa, mais forte se torna a sua voz e maior é o ímpeto com que me arrastam para a rua. Ladram agora em mim todos os cães que me habitam e no silêncio da tarde já não são eles que oiço, mas o lobo que ao uivar anuncia a noite que chega.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

O ego que ri e aquele que olha

Pegar num projecto e pô-lo em funcionamento. O espírito enche-se de vida, a vontade inclina-se para a acção, mas um perigo espreita no horizonte: até que ponto um novo projecto não será mais uma afirmação do meu ego, uma ilusão sobre a minha capacidade criadora, uma forma de me tomar por um pequeno deus? Não é um projecto uma forma de propriedade? Como desprender-me dele mantendo-me ao mesmo tempo firme na sua elaboração e execução? Gostaria de poder dizer: vou agir como se ele fosse uma dádiva gratuita e vou apreciá-lo como uma forma de realização daqueles a quem ele se destina. Mas como poderei acreditar neste jogo? Sinto as forças vitais do meu ser voltado para ele e mesmo que diga que ele não me pertence, o meu pequeno ego ri-se e sente-se confortado na pequena glória que já antevê. Talvez a única solução seja olhar com ironia benevolente as pretensões que esse ego apresenta e fazer o que há a fazer. Mas há aqui um enigma: quem será esse que olha com ironia e benevolência o ego que busca a sua pequena glória?

terça-feira, 13 de maio de 2008

Da propriedade e do desprendimento

Com o passar dos anos a morte biológica torna-se cada vez mais presente, mas, ao mesmo tempo, o temor que nos acomete nos anos da juventude, um temor secreto e inconfessado, vai-se dissipando como se a própria natureza fizesse ouvir no ser biológico a verdade dos seus imperativos. Aprender a morrer e a estar morto era o exercício que Platão, no Fédon, dizia constituir a natureza da filosofia. Mas esta aprendizagem da morte não é o desejo de pôr fim à vida, mas o exercício contínuo do desprendimento. Aprender a desprender-se daquilo que nos rodeia não é indiferença perante o mundo. O desprendimento parece antes ser uma via para a verdade do meu próprio ser. Só na verdade de mim é possível criar o espaço onde tudo o que é ganha um novo sentido. Este sentido nasce das coisas serem consideradas já não a partir da fractura da propriedade, do que é meu em oposição ao que é teu e ao que é do outro. Não é que os direitos de propriedade possam ou devam ser violados, mas devem ser remetidos para a esfera do animal que labora e, apesar desse animal ser humano, a propriedade não é menos, por isso, um instinto animal. Desprender-me da minha propriedade, mesmo que ela continue minha, é aprender a desprender-me da minha dimensão biológica ou, talvez seja o termo mais adequado, zoológica. Aprende-se a morrer morrendo para o que é próprio e aquilo que há de mais próprio no homem é o desejo de propriedade. O próprio escravo deseja-se proprietário de si. Talvez a experiência da liberdade só possa nascer desta aprendizagem do desprendimento.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Princípio de entropia

Tudo se desordena na minha vida, como se um princípio de entropia a regulasse e nada tivesse a força suficiente para a abrir ao essencial, aumentar a ordem e configurar de forma nítida a existência. Os dias passam, as horas, os minutos, os segundos, tudo passa inclemente, e nesta vertigem o real desagrega-se e o princípio que poderia suster-me parece abandonar-me. Se tento recolher-me para encontrar uma direcção, uma multidão de pequenas distracções vem até mim e os múltiplos mundos que podem existir no meu visitam-me e cindem-me ainda mais e mais. Cansado e sem norte, deixo-me atrair por qualquer coisa, desde que evite a realidade e as prescrições que a realidade tem para oferecer. Se ao menos pudesse silenciar o pensamento…

domingo, 11 de maio de 2008

Essa coisa obscura

Uma estranha volúpia arrasta-me para a inacção, deixa-me pregado ao nada, mergulha-me na mais escura preguiça. É um estranho prazer o de ficar a ver o tempo passar e sentir-me incapaz de inscrever seja o que for no curso do mundo. Qualquer coisa serve então como distracção e o espírito agarra-se a ela como ao maior dos bens. Um pequeno nada é suficiente para que o essencial se perca e eu me perca nessa nulidade. É como se de um ponto indistinto qualquer coisa apelasse em mim para a negligência. O mistério de tudo isto não está na tentação, pois essa reconheço-a com facilidade e identifico-a a operar em mim desde há muito, desde os bancos da escola onde aprendi as primeiras letras. O mistério está todo naquilo que me tenta e me arrasta, nessa coisa obscura que toma, de cada vez, novos disfarces e me conduz sempre e sempre à mais desesperante nulidade.

sábado, 10 de maio de 2008

A tempestade da dúvida

Há quem tenha uma fé substancial, uma fé capaz de mover montanhas, uma fé clara e distinta. Eu, porém, sinto-me atravessado pela tempestade da dúvida, da incerteza, da impossibilidade de me tornar num Atlas e carregar às minhas costas um mundo, tão pouco uma montanha. Se a fé é a crença e aceitação da revelação, a dúvida é a natureza do espírito que procura um caminho. Talvez a minha fé só possa nascer desse espírito que procura e a dúvida seja um sintoma da vida que cresce e se fortalece e na força que assim vai nascendo encontra a fidelidade ao que, na obscuridade, me chama. Talvez não haja verdadeira fé sem o tempero da dúvida. Quanto maior for uma, mais forte será a outra.