quinta-feira, 31 de maio de 2018

Haikai do Viandante (356)

William Henry Fox Talbot, The Pencil of Nature, London, 1844

O silêncio passa
pela escada do tempo.
Sombra e solidão.

sábado, 7 de abril de 2018

Haikai urbano (35)

Léonard Misonne, Reflets, c. 1935

Reflexos e sombras
são fantasmas na cidade.
Rituais de Inverno.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Poemas do Viandante (681)

Yves Klein - Peinture de feu sans titre (empreintes de corps) (F 88) (1962)

681. o fogo desce sobre

o fogo desce sobre
o corpo
                das águas
e silva e zumbe
e na combustão
da alma
devora o desejo
o ardor da aurora

(20/12/2016)

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Meditação breve (77) Innuendos

Edward Weston, Shell, 1927

Toda a arte assente na prática do innuendo. Não dizer ou não mostrar nada directamente. A arte é uma praxis de sugestão e um jogo de insinuações. Fora disso é um exercício fútil para alimentar egos ávidos de existência.

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Biografias 13. A mulher caída

John Murphy, Cadere: Outside the Frame, 2008

Arrastou pelas ruas o peso dos sentimentos. Ardeu na fogueira das emoções. Arrojou pelo chão a mobília da vida. Tinha um nome e perdeu-o na praça pública. Exausta, seca e sem nome, deu uns passos, encostou-se à parede e deixou-se cair. Não há desejo que suporte o peso do mundo.

terça-feira, 3 de abril de 2018

Haikai urbano (34)

Karel Plicka, Prague in photographs, 1940s

O secreto centro
onde a cidade germina.
Livros e silêncio.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Meditação breve (76) Ruínas

Fred Boissonnas, Quiet Greece, 1903-1930

A comoção que se sente perante ruínas de um passado - e pouco importa se ele foi glorioso ou não - pouco em a ver com esse passado. Não é nostalgia o que se insinua no coração, mas uma angústia vivaz por sermos expostos ao nosso próprio futuro.

domingo, 1 de abril de 2018

Poemas do Viandante (680)

Yves Klein - Anthropométrie sans titre (ANT 171) (c. 1960)

680. manchas de azul

manchas de azul
crescem
contra a inocência
do mundo
cantam em desvario
e desvalidas
tingem de cobre
o sulfato
da melancolia

(20/12/2016)

sábado, 31 de março de 2018

A beleza

Kishin Shinoyama, 1968

O seu ar era puro e a maneira de andar recatada. Comecei a esperá-la com ansiedade. Um dia, ganhei coragem e falei-lhe. Respondeu-me. Acompanhei-a e disse-lhe que a iria buscar. Disse-me o nome e, para minha surpresa, assentiu. Assim o fiz e quando me aproximava de casa convidei-a a entrar. Não recusou. Ao fechar a porta, toquei-lhe no braço. Ela afastou-me com delicadeza e despiu-se diante de mim. Eu ardia de paixão. Nua, ajoelhou-se, sentou-se sobre os calcanhares, inclinou, levemente, o dorso para trás, a cabeça para a frente e para baixo. Nunca vira nada tão belo. Não resisti, e toquei-lhe. Horror. Estava fria. Sob os meus dedos, uma estátua de mármore. Essa mesmo que vê no jardim.

sexta-feira, 30 de março de 2018

Haikai do Viandante (355)

Clarence H. White, Morning Dew, 1908

O sol rasga a noite
e a aurora desce na terra.
Manhã de orvalho.

quinta-feira, 29 de março de 2018

Biografias 12. A rapariga do chapéu

Julia Margaret Cameron, Ophelia, Study No. 2, 1867

Erguia-se diante do espelho, punha na cabeça um chapéu adornado com uma camélia, sempre o mesmo, deixava os cabelos cair sobre os ombros, enquanto o olhar se inclinava para baixo como se ali estivesse a verdade de todo o seu ser.

quarta-feira, 28 de março de 2018

Meditação breve (75) Rebelião

Arnold Genthe, Isadorable, 1921

Ter corpo é estar sujeito à gravidade. Por isso, a dança é uma rebelião. Não é o corpo em movimento que faz a sua essência. Esta não é outra coisa senão a revolta contra a nossa condição, contra o facto de estarmos submetidos, por inexoráveis leis, à tirania da gravidade. Por um instante, ao dançar, o corpo eleva-se e, nessa eternidade que dura um momento, aquele que dança é livre, como num sonho.

terça-feira, 27 de março de 2018

Poemas do Viandante (679)

Ana Peters - Nuance de Negro (1995)

679. nuances de negro

nuances de negro
nadam no lago
da escuridão
ouve-se barulho
de braços
na água da morte
e um perfume
desenha ilhas
de trevas
nas vísceras da noite

(20/12/2016)

segunda-feira, 26 de março de 2018

Meditação breve (74) Sombras no lago

Alfred Stieglitz, Shadows in Lake, 1916

Os homens estão sempre dispostos a falar de si e da sua excessiva importância no mundo. Esquecem que nem pó sequer são, mas sombras reflectidas num lago. Não é que não existam belas sombras. Existem, aliás sombras belíssimas, mas não deixam de ser sombras que logo se desvanecem e são esquecidas. E aqui estará a maior felicidade de uma sombra: ser esquecida.

domingo, 25 de março de 2018

Uma cegonha

Leo Matiz, Frida Kahlo tomando el sol,1941

Conheceu-a bem, julgo. Talvez o dia mais memorável da minha vida foi aquele em que ela se deitou ali mesmo. Está a ver a sombra da árvore? Foi aí. O sol banhava-a  e ela resplandecia. O vento levantava-lhe o vestido. Não tinha qualquer peça de lingerie, apenas a pele. Esplêndida. Confesso que a desejei. O que me assombrou não foi a beleza do rosto nem o corpo magnífico que vento descobria. Foi a sua partida. A certa altura, pôs-se de cócoras, o vento enfunou-lhe o vestido e, pode crer, este transformou-se em asas enormes e cintilantes. Estremeci, maravilhado. Então, ela levantou voo e desapareceu atrás das nuvens. Era uma cegonha.

sábado, 24 de março de 2018

Haikai do Viandante (355)

JCM, Convento de Cristo, Tomar, 2018

Pedras sobre pedras,
o frio murmúrio do vento.
Um dia que passou.

sexta-feira, 23 de março de 2018

O homem que escutava o mar

Ferdinando Scianna, Jorge Luis Borges listening to a shell, Palermo, 1984

Agarrou numa concha e levou-a ao ouvido. Oiço o oceano, gritou e riu-se. Depois, sentou-se, pegou na caneta e escreveu sobre as ondas que ouvira e o mar que só então passara a existir. De vez em quando, tornava-se a levantar, segurava, com mil cuidados, a concha, levava-a ao ouvido e dizia: oiço o oceano. Depois, ria-se e continuava a escrever as gaivotas que nasciam e os cardumes que passavam ao longe. Quando anoiteceu, da sua caneta saiu um pequeno barco a remos. Então, levantou-se, tirou a gravata, desapertou o colarinho, entrou no barco e remou. Ao largo, um enorme transatlântico esperava-o. Nunca mais voltou.

quinta-feira, 22 de março de 2018

Poemas do Viandante (678)

Takesada Matsutani - Propagando un sueño (1961)

678. os sonhos sonham-se

os sonhos sonham-se
no vazio
propagam-se na pobreza
do coração
e são semente
silenciosa
no húmus do desejo
no útero da terra

(20/12/2016)

quarta-feira, 21 de março de 2018

Meditação breve (73) Noites de luar

Alvin Langdon Coburn, Moonlight, c. 1907

Talvez as noites de luar sejam propícias ao devaneio dos amantes, mas a luz que cai sobre a terra tem o estranho poder de revelar o que há de sombrio no mundo. Não é o amor que essa luz suscita mas o terrível que nele se esconde. O que torna romântica uma noite de luar é o perigo que ela deixa entrever.

terça-feira, 20 de março de 2018

Biografias 11. Arlequim adormecido

Pierre Dubreuil, Harlequin - Still Life, 1923

Cansado de seduzir Colombinas, Arlequim adormece e a máscara cai-lhe do rosto. Assim exposto à devassa do olhar, não passa de uma natureza morta à mão do ciúme de um qualquer Pierrot.

segunda-feira, 19 de março de 2018

Haikai do Viandante (354)

Jean Dieuzaide, Rabello sur le Douro, 1954

Um barco navega
sobre o silêncio do rio.
Luminosas margens.

domingo, 18 de março de 2018

Meditação breve (72) Fogo-de-artifício

Andre de Dienes, Fireworks over Notre-Dame, Paris, 1936

O fogo-de-artifício não é um mero divertimento que, pela associação da luz, da cor e do fogo, nos prende o olhar. Ele simboliza a vida social, a qual não passa de um conjunto intermitente de explosões mais ou menos luminosas e que, na verdade, se reduzem a nada. O fascínio dos fogos-de-artifício reside na sua aparência, tal como os jogos da vida social. Na verdade, um fogo-de-artifício não passa de um fogo-fátuo, tal como a fatuidade é a virtude exigida pela vida em sociedade.

sábado, 17 de março de 2018

Poemas do Viandante (677)

Arnulf Rainer - Sovrapittura nera (1959)

677. o nigredo do negro

o nigredo do negro
resvala
na alvura branca
da cidade
e estende o lençol
da lentidão
nas nuvens da invernia
nos tambores de neve

(20/12/2016)

sexta-feira, 16 de março de 2018

Meditação breve (71) O invisível

Karl Krüger, Frauenhände, 1934

Não é o que se mostra que deve reter a nossa atenção. O que exige o nosso olhar é o que não se vê. Se umas mãos se mostram tapando o rosto, é a este que devemos dar todo o nosso cuidado. O invisível sempre foi muito mais real do que o visível.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Biografias 10. A mulher cansada

René Groebli, Das Auge der Liebe, 1954

A monotonia do amor, o ritual do acasalamento, a grande cerimónia do prazer. Como tudo isso me cansa e escorre para a grande obscuridade que me habita. Não sou virgem consagrada nem prostituta do templo. Deixo correr a minha vida na orla da noite e o corpo pede-me o sono da eternidade.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Aquele que rodopia

Leonard Freed, Whirling Dervishes, Konya, Turkeye, 1976

É tão estranha a minha situação que não haverá quem acredite no que aconteceu. Não hesito em chamar paraíso ao lugar onde estou, mas o melhor é não abusar da benevolência do leitor. O que se passa é que estou no céu e não morri. Após uma crise grave, entrei numa comunidade de dervixes. Empobreci e a minha vida tornou-se casta e austera. Segui os preceitos e orei ao Misericordioso. Aprendi, ao dançar, a abandonar-me. Um dia, ao meditar rodopiando como é habitual na nossa ordem, senti que a gravidade deixara de ter poder sobre o meu corpo. Então, enquanto girava, fui elevado aos céus. Aqui estou, grato ao Todo Poderoso, e sem esperança que o leitor acredite em mim.

terça-feira, 13 de março de 2018

Haikai urbano (33)

Gisèle Freund, Sur les quais, Paris, 1956

Sobre o cais, a neve
fria desliza no inverno
do teu coração.

segunda-feira, 12 de março de 2018

O amante excessivo

Cecil Beaton, Fashion Model, 1950s

Há amores que são excessivos. Foi assim que ele começou a conversa. A princípio fiquei atónito, pois não esperava uma confissão, mas logo me recompus. Contou-me como tinha conhecido a mulher, a paixão que dele se apoderou. Não escondeu sequer alguns episódios picarescos, embora nunca tenha exposto a intimidade desse amor. Descreveu o casamento durante horas. A passagem dos anos não saciou a paixão, confessou-me. A dela, não sei. O que ele me contou foi que, um dia, a mulher lhe disse: o teu amor é excessivo para mim. Nesse instante, alimentada pela obsessão dele, ela começou a desdobrar-se. Primeiro, uma sombra, depois um vulto, por fim outra mulher exactamente igual a ela. Hoje, não sem felicidade, vivem os três.

domingo, 11 de março de 2018

Poemas do Viandante (676)

Ana Peters - Revoloteo Voleteig (1997)

676. pássaros palpitam

pássaros palpitam
e volteiam
brancos e brandos
em céu de fúcsia
suspensos
na luz da cerejeira
num trinado
de púrpura
quase roxo
                quase puro
                               quase quase

(19/12/2016)

sábado, 10 de março de 2018

Biografias 9. O amola-tesouras

Ruth Matilda Anderson, Scissors grinder, 1926

Tornar agudo e cortante aquilo que ficou rombo. Não há profissão mais necessária à vida espiritual que a de amolador. Quando rombo, o espírito divaga na errância incapaz de separar o trigo do joio, a verdade da falsificação. De terra em terra, o amola-tesouras era um portador de esperança e de uma promessa de verdade.