sábado, 6 de fevereiro de 2021

Impressões 72. Exercícios de habituação

René Bertholo, Pintura, 1959

As paisagens antes de serem paisagens são um amontoada heteróclito de cores. Os olhos chocam com elas e estremecem. Tudo parece indefinido, um estado do mundo antes de ser mundo. Com o tempo, o olhar aprende o seu caminho e descobre fronteiras e figuras, lagos e florestas, a rocha dura e a casa a que alguém chamou lar. As paisagens são exercício de habituação. Instituídos os hábitos do olhar, descobre-se o mundo onde antes só havia o acaso das cores. 

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Histórias sem nexo 23. O clã

Fernand Léger, Los acróbatas del circo, 1918

Cláudia, Clélia, Claudomiro e Clóvis, o clã dos clipes e dos cliques, o clã que clamou com o cláxon. Um clamor clongoroso. Clemência, clemência, só cleptómanos e cleptocratas. No clube, o clérigo, clemente, clonou o cloreto de cloro. O clã clandestino claudicou no clarão da clarabóia. Clop.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

A Sarça Ardente - 65

Fernando Lerín, Sin título, 1985
Um prelúdio no clarão do amanhecer.
Os olhos inclinam-se para longe,
esperam a chegada do Outono
com os seus deuses de folhas mortas.

Vagaroso, soletro as letras do alfabeto,
componho palavras para as escrever
em farrapos de papel que deixarei
levedar na transparência do dia.

Dobrado sobre a véspera do que virá,
oiço o fluir dos murmúrios da rua,
o rastejar do desejo na sombra
do fogo vindo da várzea do vento.

Janeiro de 2021

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Haikai urbano (66)

Júlio Pomar, Ruínas do Carmo, 1956
Ruínas do Carmo,
luz perdida na cidade.
Vozes de Lisboa.
 

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

O sal do silêncio (50)

Alfred Eisenstaedt, Mother and child in Hiroshima, Japan, 1945
Há silêncios tão salgados que empestam os ares com o aroma do enxofre. Nascem rutilantes da luz do inferno, crescem em campos de destruição e pairam na atmosfera como uma ameaça de morte e um véu de translúcida tristeza. 

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

A pergunta

Ingmar Bergman - Gunnar Fischer, do filme Morangos Selvagens, 1957

O que vês? – Ouvi a pergunta, enquanto os olhos caíam sobre o espelho que ela levantava diante de mim. Olhei. E ouvi de novo: o que vês? Perturbado, não sabia o que responder. A pergunta trazia consigo um imperativo, exigia-me uma resposta. Balbuciei algumas palavras, mas ela não as compreendeu e retornou: O que vês? Sim, por certo via-me a mim, mas pela primeira vez eu via outra coisa, além de mim, algo que eu era, mas não o sabia. O espelho exigia de mim palavras que não tinha e, confesso-o, não sabia que resposta dar. Levantei os olhos para ela e perguntei: Quem és tu para me interrogar assim? Posso ser a tua filha, ou a tua mãe, ou a tua primeira mulher, ou a tua morte. O que te interessa saber quem sou? O que vês

domingo, 31 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (49)

Bill Perlmutter, Along the Banks of the Main, Germany, 1955
As árvores despidas ao longo do rio ou a ponte como um fantasma vindo do passado são exercícios que anunciam o Inverno. A neve cai, desce em flocos leves como o lume e poisa no chão, a tudo cobrindo da mais branca brancura. Então, os homens passeiam devagar, levando o silêncio no coração e a graça do espanto perdida no fundo dos olhos.

sábado, 30 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 64

Pier Luigi Lavagnino, Collina, 1954
Fogo sobre as falésias, um cântico
de pedra no rumor
da montanha.

A floresta ergue-se num manto
de verde e sombra
onde poisam os pássaros do Sul.

Uma palavra escapa-me dos lábios
e ecoa no vazio do vale,
na sonâmbula claridade do céu.

Janeiro de 2021

 

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Meditação Breve (149) A morte

Carl Friedrich Lessing, Cloister Cemetery in the Snow, 1833
Um manto de neve cobre a morte. O que viam os antigos que já não vemos hoje? A neve ainda a vemos, a morte, porém, tornou-se invisível, mesmo se ela não pára e a sua colheita está longe de a deixar na falência. Como, estando tão presente, se conseguiu subtrair aos nossos olhos?

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Micronarrativa (46) Meditação

Micha Bar Am, Father Neophitus, St. Katharina Monastery, Sinai, 1967

Talvez o cigarro seja um símbolo da condição humana, pensou o velho monge exausto. Enquanto arde sob o império do desejo, continuou, o fumo, como o espírito, eleva-se aos céus e deambula errante pelas alturas. Acabado o cigarro, é deixado no sarcófago do cinzeiro, sem que o espírito se recorde do lugar de onde partiu.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (48)

Lord Snowdon, Svetlana Berisova, 1957
No instante em que a bailarina atingiu o ponto mais elevado, antes que a gravidade lhe roubasse o desejo de ser ave e a devolvesse a terra, a música parou. A sala ficou suspensa e o tempo formou um casulo intemporal onde o corpo daquela mulher-pássaro permaneceu estático, pura imobilidade, movimento tocado pelo sal da eternidade.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Arqueologias do espírito 17

Gioacchino La Pira, Veduta di Capri al chiaro di luna

As águas retêm o murmúrio e deixam que o grande manto do silêncio cubra o mundo. Então, a Lua desce do seu pedestal etéreo e aproxima-se da Terra. A sua luz funde-se no silêncio. Quem, escondido e incógnito, observa o mistério não sabe se está perante um silêncio luminoso ou uma luz silenciosa, apenas abre o coração para que seja tocado pelo que acontece e os sinais desçam no seu ser, o revolvam e inscrevam nele o poder de caminhar sobre as águas e de discernir aquilo que é daquilo que não é e nunca será. 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 63

Maxfield Parrish, Winter Sunrise, 1949
O frio trazido pelas aves
da madrugada
cai sobre o rumor dos campos.

A luz anuncia-se e solene
cobre os cumes
abertos ao mistério do dia.

Na volúpia do acordar
abro os braços
e ato-os ao êxtase da aurora.

Janeiro de 2021

domingo, 24 de janeiro de 2021

Impressões 71. A longa espera

Alfred Stieglitz, The Street, Fifth Avenue, 1900-1901

A longa espera é um exercício destinado à provação da paciência. O dia gélido, a neve pelo chão, o céu de chumbo. A cidade parece entregue à dura dolência do sono. Nas ruas, apenas sonâmbulos caminham sem destino, sem saber onde estão, sem um desejo que lhes anime as vontades. Em fila, homens e animais esperam e essa espera é todo o seu ser e todo o seu mundo.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Haikai urbano (65)

Marcel Dieulafoy, Basílica da Estrela, anterior a 1913

As torres da Estrela
erguem-se aos céus de Lisboa.
Coração tão trémulo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Diálogos morais 55. Sobre a cidade

Alfred Eisenstaedt, View of Los Angeles by night from the hills above city, 1936

- Não admira que se percam.
- É verdade. O excesso de luz cega-os.
- A noite é tempo para descansar.
- Eles já não sabem o que é isso.
- Andam por ali levados por um movimento sem fim.
- O coração fica tolhido.
- Pior, a vontade perverte-se e está sempre a suceder o pior.
- Estás a ver aquela rapariga, ali à direita.
- Parece exausta e o que pensa não é o melhor.
- Vais tu ou vou eu?
- Ambos, pois um já não tem poder para a salvar.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (47)

Johann Wilhelm Cordes, Nach dem Sturm, 1855
Depois da tempestade vem o silêncio com o seu sal dourado para salgar o mar e libertar os estranhos monstros que o tempo aprisionara na recôndita caverna escondida no fundo oceano.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 62

Claude Monet, Road to Louveciennes, Melting Snow, Sunset, 1870
O silêncio vem no alvoroço
do crepúsculo, nos ramos
das tílias,
na luminosa humidade
da relva a sangrar pela cidade.

Anjos de cetim pisam sombras,
se a tarde se inclina
para a mudez
nacarada das tuas mãos
erguidas na imensidão do poente.

Janeiro de 2021

 

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Meditação Breve (148) Espanto

Fred Herzog, Lucy, Georgia, 1968

Sobre a banalidade da vida e o curso normal do trânsito, um olhar anuncia o espanto, não esse espanto que conduz à casa da sabedoria, mas um outro que espelha o terror que nasce perante a decepcionante trivialidade do real.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Impressões 70. Canção da Terra

Rafael Estrany, Cursa de cavalls
O troar dos cascos pelo chão, o galope desenfreado em busca do destino, os gritos de incitamento dos jóqueis, o ulular dos espectadores, tudo isso se abre como um movimento ondulante de uma melodia arcaica e poderosa, uma canção da Terra erguendo-se para o mistério do céu.

domingo, 17 de janeiro de 2021

Pintura e haikus (21)

Amadeo de Souza-Cardoso, Castelo, 1911
 Um casto castelo
de inocente geometria.
Visão que se abria.

sábado, 16 de janeiro de 2021

O desejo

Yale Joel, Ribbon Hats, not dated
Encontrei as quatro pela primeira vez num café. Estavam todas juntas e segredavam entre o chá e risinhos de cumplicidade. Havia nelas beleza e mistério. Procurava-as e sempre as encontrava. Discretamente, foram-me atraindo. Como um pássaro inconsciente deixei-me ir. Por vezes, permitiam-me partilhar algum tempo com elas. Eu não amava nenhuma, mas desejava-as a todas. Até que um dia me prenderam e disseram-me: sentimos bem o teu desejo. Tens de escolher uma de nós, mas depois terás de enfrentar a fúria das rejeitadas. Senti a morte próxima. Valeu-me a presença de espírito e o pendor para aceitar o mal menor. Respondi que não rejeitaria nenhuma, mas casaria com aquela que um sorteio ditasse. Não posso dizer que seja um casamento feliz.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 61

Jorge Barradas, Casario – Barquinha, 1922
Havia palavras como cântaros
e infusas, uma laranjeira
perdida no centro do quintal,
pequenos caminhos de tijolo,
um poço onde se escondiam
tesouros e mouras encantadas,
a água escura na luz da tarde.
Os dias nasciam e declinavam
ao som do bronze dos sinos
e todos os meus desejos
levitavam no lume da inocência.

Dezembro de 2020

 

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (46)

Johann Jungblut, Land folk on a frozen river

Nos dias gélidos em que os rios se tornam lençóis de vidro translúcido, mesmo se caminham lado a lado, dentro da paisagem invernal, os homens ensimesmam-se e fazem do silêncio o sal que lhes tempera a alma, como se rememorassem outros mundos onde nunca estiveram, mas que sonham nas noite em que a neve cai e os lobos uivam ao longe.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Histórias sem nexo 22. Festa

Francisco Bores, Personages à table, 1955

Os figos da figueira foram-se. No faval, febris as favas ficaram feiosas. Uma fada fadou a Fátima, que de felpuda fatiota falou: Ó Fernando, que falta de fé, filho. Finaram-se os figos, finaram-se as favas. A febre as fez, a fome os fanicou, farfalhou feliz a Felicidade. Uma festa.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Diálogos morais 54. A rainha da Primavera

Yale Joel, Salesman is demonstrating a spring hat, 1962
- Magnífico, fica-lhe muito bem.
- Tem a certeza?
- Repare, olhe para o espelho.
- Sim, sim, eu olho.
- Vai ser a rainha desta Primavera.
- Tem a certeza?
- Já viu como combina com os seus olhos, o tom da pele.
- E serei a rainha desta Primavera?
- Claro. Não uma mera princesa, mas a mais bela rainha da Primavera.
- Então, não quero o chapéu.
- Não quer?
- Não. A Primavera passa depressa.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Arqueologias do espírito 16

Johann Anton Castell, Romantisches Lagerfeuer im Mondschein, 1850

Noite de lua cheia, fogo e mar. Três figuras de mistérios e uma de iluminação. Os grandes mistérios da noite, do oceano e da lua, com a sua luz tamisada, crescem dentro do coração de homens e mulheres. O temor da noite, o murmúrio das águas, a secreta vibração da lua, tudo isso se esconde no mais recôndito da alma, enquanto o fogo traz o calor e a luz que iluminando a tudo vela. E assim nasce o amor com os seus jogos nocturnos, preces lunares, rumores marítimos, como se fosse um fogo que arde sem se ver.

domingo, 10 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 60

Max Ernst, El bosque embalsamado, 1933
O bosque de cedros e ciprestes
fecha-se no silvo do silêncio,
uma vidraça de verde
sob a inclemência das chuvas.

Uma mulher atravessa a praça,
leva o enxoval da vida
preso num saco de compras,
entra no limbo da lavandaria.

A vida saltita como uma rã perdida
nas águas paradas do charco,
coaxa no tumulto da tarde
e espera no enigma do calendário.

Dezembro de 2020

sábado, 9 de janeiro de 2021

Meditação Breve (147) Esfinge

Frank Eugene, The sphinx of Giza at midnight, Egypt, 1901

Ali, onde a encontraram, ela vê passar o tempo. Perdeu já a conta aos dias e às noites, às horas em que, imóvel e presa na pedra, contempla o horizonte. Da boca nunca se desprendeu uma palavra, mas nunca deixou de falar, pois a sua voz é a do silêncio. Não tem enigmas a propor aos mortais perdidos na viagem, pois ela é o próprio enigma onde se oculta o mistério do homem.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Impressões 69. Ataque de lanceiros

Eugène Atget, Le Château, fin Octobre, le soir, effet d'orage,  1903

De súbito, a tempestade aproxima-se com o seu exército de lanceiros. Ouve-se o galope dos cavalos e o troar dos gritos que incitam ao combate. Grande bátegas de água, raios e coriscos iluminados pela rapidez do relâmpago são lanças ferinas que se abatem sobre a esquadria silenciosa e pura da razão humana.