terça-feira, 17 de novembro de 2020

A viúva traída

Bruce Davidson, Widow of Montmartre. Paris, 1956
Há coisas que acontecem porque alguém se esqueceu de cumprir uma promessa ou honrar um pacto. Era assim que ela respondia quando a questionavam sobre a razão de se entregar ao álcool. Se lhe perguntavam quem a enganara, encolhia os ombros. Um dia prometeu-me a verdade, caso lhe levasse algumas garrafas de álcool. Levei. Então, lúcida, contou. Fora muito bela e casara com o homem mais belo que havia ao cimo da terra. Amava-o, perdidamente. A morte, porém, enciumada disputou-lho. Fez-lhe frente. A morte perguntou-lhe que condição punha para o deixar ir. Ela respondeu: Nenhuma, mas se o levas, não me deixes entre os vivos. De acordo, respondeu a morte. O meu marido morreu há trinta anos, disse, e a morte traiu o acordo que fizera comigo.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

A Sarça Ardente - 49

Jesús María Cormán, 2.3 Richter Scale, 2001

A folha pálida da madrugada 
chega trazida 
pelo uivo virginal do vento. 

Pássaros sem nome desenham 
cornucópias invisíveis 
na névoa presa ao nascente. 

Alguém deixa cair um copo, 
e a praça ilumina-se 
no tilintar trepidante do vidro. 

Novembro de 2020

domingo, 15 de novembro de 2020

Arqueologias do espírito 10

Ricardo Bensaúde, Crianças correndo atrás de um pássaro, 1958

É um longo fascínio aquele que prende o coração dos homens ao voo dos pássaros. Presos à terra, a imaginação trabalha para se elevar aos céus. Os olhos brilham perante dança volátil, as horas de observação sem fim, a esperança sempre renascida e sempre frustrada de um dia ganharem asas e voar. Essa observação arcaica daqueles que voam tornou-se uma duradoura tradição. Como aprendem a caminhar na terra e a usar a linguagem, todas as crianças aprendem a olhar os céus, pois no seu coração, ainda antes de nascerem, habita já o desejo de voar. 

sábado, 14 de novembro de 2020

Diálogos morais 50. O princípio da felicidade

Walker Evans, Subway Passengers, New York, 1941
- Ainda não percebi o que te diverte.

- Não me estou a divertir.

- Não?

- Não.

- Esse ar de superioridade.

- Poupa-me, por favor.

- E quem me poupa a mim?

- Eu poupo-te, bem sabes.

- Bem sei? Sempre o mesmo sorriso cínico.

- Sempre os mesmos comentários idiotas.


sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O sal do silêncio (40)

Ansel Adams, Road after Rain, Northern California, 1960

A luz vacilante toca a estrada vazia, onde a chuva espalhou uma humidade e prata. Se algum solitário por ali se perder, os pássaros de Inverno virão em seu socorro, cobrindo-o com o véu de sombra do seu voo, com a seda refulgente do seu silêncio.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

O Espírito da Terra (1)

Ilda David, Espírito da Terra, 1999

Ali, nesse lugar onde uma árvore se enraíza e ganha alento para se elevar ao alto, reside o espírito da terra. Não a poeira fugidia, não a rocha dura, mas a matéria dúctil que, como uma mãe silenciosa, acolhe o pássaro vegetal e a metáfora de luz.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

A Sarça Ardente - 48

Adelaide Cad’Oro, sem título, 1983
Os lódãos oscilam
presos na poeira
do silêncio.

Sombras suspensas
dançam no ouro
do lusco-fusco.

Um pássaro poisa
num ramo,
e a terra treme.

Ondula a noite,
se uma folha cai
rente ao regaço.

Outubro de 2020

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Histórias sem nexo 17. A vibrátil viagem

José Caballero, Dos personajes en un automóvil, 1920

O Vanderlei e a Valquíria vão de viagem ver o venerado vigário. Viajam ora velozes ora vagarosos. Vêem no vinho vida viciosa, desses vultos vulcânicos, dessas víboras valdevinas, desses vermes verrumantes. Ao vento, vibram na visão dos vales. Ó Vanderlei, ventilou a Valquíria, verificaste se veio o velhaco do vibrador? Vrum, Vrum, e, no velho Volvo, lá vão volteando na via virtuosa.
 

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Pintura e haikus (19)

Mark Tobey, Entre la Sérénité et l'Inquiétude, 1956
 Redes neuronais
na inquietação de Outono.
Serenas sinapses. 

domingo, 8 de novembro de 2020

Meditação Breve (143) Pobres Penélopes

Júlio Resende, Mulheres de pescadores, 1951
Mulheres de pescadores, pobres Penélopes a tecer redes de sombra e aço para que os seus Ulisses lhes tragam do mar uma rosa, um rubi, o restolho de água enrodilhado no lençol violáceo da morte.

sábado, 7 de novembro de 2020

Arqueologias do espírito 9

Amadeo de Souza-Cardoso, Janellas e postigos, 1914
O espírito é um exímio construtor de fronteiras. A cada momento, delimita espaços, assinala estremas, tece linhas inultrapassáveis. Descontente, porém, com esse seu talento para conter a vastidão, entrega-se à tarefa de abrir fissuras no que tinha muralhado. A tentação do isolamento fecha-o, o medo da claustrofobia abre-o. Uma casa, da mais pequena e pobre ao grande palácio senhorial, não é mais do que esse jogo arquetípico de oclusão e abertura que assombra continuamente o espírito.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A Sarça Ardente - 47

René Bertholo, Pintura, 1959

Um prelúdio de pólen e poeira vibra
na música vacilante
nascida na teia do tempo.

Atmosferas de prata e néon,
o rasto de um cometa,
estrelas à deriva na esfera celeste.

Sobre a relva do jardim, salgueiros
pendem para o leito
onde salobra dorme a água da solidão.

Outubro de 2020

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Meditação Breve (142) Sinais dos tempos

Dorothea Lange, A sign of times - depression, 1934
Não há como o tempo para produzir sinais. Não fora a desatenção congénita, a indiferença cultivada e o temor das notícias, e a cada instante o homem disporia de signos e sinais que o abririam para a verdade do mundo, para o saber da terra e para os arautos dos céus. O tempo, não há outro mensageiro como ele.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Arqueologias do espírito 8

Júlio Pomar, Campinos, 1963

Tocar os animais pela lezíria, traçar rotas que só os cavalos conhecem, viver da aurora ao crepúsculo no silêncio onde rumoreja a erva e o murmurar sibilante do vento. Depois, estender a mão sobre o touro, e a noite eleva-se do animal, para que uma lua de feno e sargaço encontre aí a sua casa e dela derrame a luz virginal, onde se celebrarão as núpcias sagradas entre o dia e a noite.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Haikai do Viandante (404)

Benvenuto Benvenuti, Frate Foco, 1925
 Na velha cabana,
espero o dom do Inverno.
Silêncio e fogo.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

O sal do silêncio (39)

William Turner, Barco a arder, 1826

Um barco arde no silêncio do mar. Aos céus elevam-se águas em fogo e as colunas de fumo lembram o dia em que Ifigénia foi imolada, para que os helenos tomassem o rumo da perdição de Tróia. Num bote oculto pelas ondas, o deus dos oceanos faz a contabilidade dos vivos e dos mortos, enquanto o vento sopra e as nuvens se avermelham, reverberando como um lençol de cobre batido pela inclemência solar.
 

domingo, 1 de novembro de 2020

A Sarça Ardente - 46

Fernando Calhau, S/Título #706, 1967
Aos domingos, as aparências
descem pelos olhos,
vêm vestidas de seda e sombra.

Seres de sisal desfilam em cortejo
diante da comoção
de espectadores sem fé.

No céu, as constelações irradiam
uma luz lenta, demorada,
ondas de sal sobre as rosas.

A cidade sonâmbula espera
pelo cristal de um deus,
vindo no resplendor do meio-dia.

Outubro de 2020

sábado, 31 de outubro de 2020

Estranha condição

Sarah Moon, Masako from Coïncidences, 1989
Um dia, vi-a ao longe e senti um grande desassossego. Persegui-a, sobressaltado, ela alimentou a perseguição. O seu ar oriental, a sua estranheza, depressa transformaram o desassossego em paixão. Cheguei à fala com ela. Não me rejeitou. Perguntei-lhe o nome. Espero nunca to dizer, respondeu. Quando confessei o meu amor, confessou o seu. Havia felicidade nos seus olhos. Impôs uma condição. Tudo menos tocarmo-nos. Estranhei a exigência, mas o amor não pensa. Os dias passaram e o meu desejo cresceu, tornou-se impossível de conter. Passeávamos por um bosque ao crepúsculo. Não resisti, e a minha mão caiu sobre o seu corpo. Da boca saiu-lhe a palavra Eurídice e como uma sombra desvaneceu-se perante a incredulidade dos meus olhos.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Impressões 65. O nascimento da água

Fernando Lemos, Pintura, 1951
Após a florescência do fogo e antes de as constelações encontrarem moradia na vastidão dos céus, chegaram indiferenciadas as cores. O grande incêndio a tudo avermelhara, mas com o passar dos tempos os materiais, sequiosos, foram arrefecendo, para que surgissem os castanhos, os laranjas, os amarelos, depois os verdes, até que fosse o tempo dos azuis e deles houvesse água pura que a tudo matasse a sede.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Histórias sem nexo 16. Uma história em erre

Salette Tavares, O Rato Roeu, 1979

Ruminam os ruminantes, rumina a Rute, rumina o Rui. Roem os roedores, rói a Rosa, rói o Roque. Riem os risíveis, ri a Rita, ri o Ricardo. Remam os remadores, rema a Regina, rema o Renato. Ramalham os ramos, ramalha a Raquel, ramalha o Rafael. Ah a raiva rente ao rio roda na rua.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Micronarrativa (42) Os músicos

Jorge Vieira, Sem título (músicos), c. 1957
Era uma aldeia silenciosa e no silêncio nascia uma violência sobre os dias. Exaustos pela maldade, fizeram uma festa, a primeira da aldeia. Vieram músicos e tocaram. A maldade apagou-se nos corações e os aldeões, gratos a quem os libertara do mal, transformaram os músicos em estátuas para eternizar o som salvador.
 

terça-feira, 27 de outubro de 2020

A Sarça Ardente - 45

Caspar David Friedrich, Autumn, 1826
Os domingos de Outono
deslizam na tristeza
das folhas secas
a tilintar nas tílias.

Trazem uma canção
de água
fervida pelo fogo
do vento ao crepúsculo.

Nos jardins, a inocência
dos anjos cintila,
se uma pétala voa
na luz do firmamento.

Outubro de 2020

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

O sal do silêncio (38)

Francesca Woodman, Untitled, 1975-80
Tocado pelo dedo do pavor, o corpo recolhe-se e rasteja como um réptil à procura de uma sombra, de um abrigo rasgado na parede do tormento, de um canto no cântico do silêncio, de uma casa de cal onde possa repousar perdido no aroma dos juncos a arder em segredo.

domingo, 25 de outubro de 2020

A cadeira

Ilse Bing, Chairs with Leaves, Luxembourg Gardens, Paris, 1952

Ela sentava-se nessa cadeira todas as manhãs. Contemplava o jardim durante dez minutos e ia-se embora. Eu observava-a, de longe e fascinado. Um dia não se levantou. Prosseguiu a contemplação. Estranhei, mas tive de sair. Quando voltei, na manhã seguinte, ela aí continuava, imóvel. Aproximei-me e toquei-lhe pela primeira vez. Era mármore do mais puro que já vira. Fiquei desconcertado, mas a sua transformação em estátua eternizava-lhe a beleza. O pior foi o dia em que os serviços camarários descobriram a irregularidade daquela estátua. Quando os funcionários lhe tocaram para a remover, o mármore desfez-se em poeira, e a única mulher que amei foi levada pelo vendaval que se levantou.

sábado, 24 de outubro de 2020

Haikai do Viandante (403)

Celestino Alves, Caminho, 1960

Caminhos de Outono
recortam brancas aldeias.
Tumulto e poeira.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Impressões 64. Cosmogonia

Mário de Oliveira, Paisagem, 1961
Primeiro era o nada, pura ausência, nem quietude nem perturbação. Depois, veio o caos em alvoroço, movido a desassossego, pleno de transtorno. Por fim, chegou a paisagem, quase um nada, quase um tumulto, uma ponte entre uma e outra margem.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

A Sarça Ardente - 44

António Carneiro, Paisagem – Leça da Palmeira, 1905
De que fonte nasce
a servidão do segredo?

De que luz sopra
a virgindade do vento?

De que oceano chega
a palidez dos pássaros?

De que lume se ateia
o ouro do Outono?

De que água se veste
a rudeza do relâmpago?

Eis a sílaba onde cintila
o silvo da sombra.

Outubro de 2020

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Diálogos morais 49. O prémio

Bruce Davidson, Women with baby carriages. London, England, 1960
- Espera por mim.
- Despacha-te!
- Estou cansada. O carro e o bebé pesam.
- Poupa-me.
- Isto não é uma competição.
- Estás enganada.
- Estou?
- Como sempre.
- Se é uma competição, então qual é o prémio.
- Quanto mais depressa chegar... 
- Sim...
- mais depressa me vejo livre desta peste.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

O sal do silêncio (37)

Thomas Hart Benton, Cézannesque Landscape, 1912
Paisagens depuradas, onde tudo se deixa ver na sua essência, perpassam pelos meus olhos. Aproximam-se na leveza da lentidão e desaparecem na curva do caminho, deixando um rasto de silêncio, um rumor de luz, o silvo que anuncia a véspera de uma estrela ou uns lábios abertos para o desejo infinito de outros.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Impressões 63. Um rasto de verde

Johann Barthold Jongkind, Colline à la Côte-Saint-André, 1880

Um rasto de verde passa rente à terra. Chega com o vento e caminha de estação em estação, até que o Verão, privado do fulgor das águas, o leva para a caverna onde dormem, como mortas, as ervas que o Outono fará renascer da poeira sombria gerada no vente das folhas mortas.