Maria Helena Vieira da Silva, Bibliothèque, 1949 Pura biblioteca, de que são feitos os teus livros? De água, luz e sal. |
domingo, 28 de junho de 2020
Pintura e haikus (17)
sexta-feira, 26 de junho de 2020
Micronarrativa (34) Na fronteira
Ara Güler, Children playing among the tombstones in the Seyhülislam Yahya Efendi cemetery at Ortaköy, Turkey, 1985 |
Entre lápides e túmulos, a vida é mais sossegada. Na cidade dos mortos, crianças vivas brincam nesse limiar que divide dois mundos. Quem está na fronteira, vê-os a ambos e caminha para cá e para lá sem passaporte nem autorização especial.
quarta-feira, 24 de junho de 2020
A Sarça Ardente - 23
Francisco Suñer, Cabeza azul, 1984 |
Fantasio dias de sol tolhidos
no labirinto da luz.
Sombras furtivas
descem
e traçam sinais
na verdura dos
caminhos.
Mulheres azuis pelas
rua,
trazem nos seios
o desejo que me
incendeia,
promessa de água
na cornucópia do
vento.
Recordo-me das primeiras
letras.
Escrevo-as rente à
noite
e espero nelas
a revelação de um nome
no silêncio do teu
silêncio.
Abril de 2020
segunda-feira, 22 de junho de 2020
Micronarrativa (33) Uma sombra
Constantine Manos, Daytona Beach, Florida, 1997 |
Chegou tarde, apesar de vir de bicicleta. Quando se aproximou da cabine de telefone pública, já alguém tinha tinha atendido a chamada que há tanto tempo esperava. Uns segundos, pensou, e foi o suficiente para perder a minha oportunidade. Não passo de uma sombra.
sábado, 20 de junho de 2020
Haikai urbano (55)
quinta-feira, 18 de junho de 2020
Meditação Breve (129) Em baixo e em cima
Alfred Stieglitz, The Steerage, 1907 |
Uns viajam no convés de cima e outros no debaixo, o que nunca se sabe é se os que estão em cima são na verdade mais elevados do que aqueles que estão em baixo. Não convém comparar estaturas, e ainda menos estaturas morais, quando os corpos se encontram desalinhados no lugar que ocupam no mundo.
terça-feira, 16 de junho de 2020
Diálogos morais 40. Tempo
Weegee, Time is Short, 1940s |
- É verdade, não há minuto que não conte.
- O tempo é curto.
- Falso.
- Falso?
- O tempo é longo, excessivamente longo.
- Se cada minuto conta...
- Curta é a vida esmagada pelo desejo do tempo.
- O tempo tem desejos?
- Tem, de se alongar até à eternidade.
domingo, 14 de junho de 2020
A Sarça Ardente - 22
Zao Wou-Ki - 27-6-79 |
Os primeiros dias de
Primavera
descem ao palco
do ano envoltos num
vestido
de sombra e cinza.
Hoje choveu e as ruas
abandonadas
cantaram canções de
água
sob o olhar de pedra
das tílias tocadas
pelo tempo.
Como num sonho chego à
encruzilhada,
espera-me um enigma.
Vacilo, mas o
crepúsculo
anuncia-me a claridade
da manhã.
Março de 2020
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sexta-feira, 12 de junho de 2020
Diálogos morais 39. Perfeição
Garry Winogrand, Austin, Texas, 1974 |
- O que aprendemos nós com os antigos?
- A perfeição da imobilidade.
- Então, por que motivo nos movemos constantemente?
- Queremos chegar à perfeição.
- Como, se estamos continuamente mobilizados, em movimento?
- Procuramos o lugar...
- O lugar, qual lugar?
- O lugar onde a perfeição nos imobilizará.
quarta-feira, 10 de junho de 2020
O sedutor
André Hambourg, La conversation, 1929 |
Querem
que vos conte uma história, perguntou o homem. Sou toda ouvidos, responderam as
duas desconhecidas. Numa noite de Inverno há muitos anos, neste mesmo lugar, um
homem encontrou duas mulheres que nunca vira. Era um sedutor e elas, de
imediato, sentiram-se atraídas por ele. A certa altura, perguntou-lhes se queriam
que ele lhes contasse uma história. Responderam que sim. Ele contou-lhes que há
muitos anos, numa noite de Inverno, um homem tinha encontrado duas
desconhecidas, que se sentiram de imediato atraídas por ele. Depois de lhes ter
contado a história saíram os três. E o que aconteceu ao sedutor, casou com
alguma? Quando a polícia o interrogou, confessou que sim, fora ele que as
matara.
segunda-feira, 8 de junho de 2020
Impressões 53. Incerteza
sábado, 6 de junho de 2020
quinta-feira, 4 de junho de 2020
A Sarça Ardente - 21
Lucio Fontana, Ambiente spaziale (Labirinto bianco), 1968 |
Os frutos de Setembro
vêm longe
e no caderno azul
há páginas brancas,
presas por fio de
sisal.
Vão estreitos os dias,
a luz do sol
coalha no mantel de
linho
esquecido sobre a
mesa.
Não guardei nenhuma
palavra
das que me deste.
Dissipei-as
na tristeza do
entardecer.
Sem mácula, deixo os
olhos
correr em silêncio
e uma rosa abre-se em
rumor.
Março de 2020
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terça-feira, 2 de junho de 2020
O tempo
Charles Marville, Rue de Constantine, ca.1865 |
Tem
razão, no século XIX, o tempo deslizava mais lentamente do que hoje. Não se
confunda. Eu não quero dizer que um minuto, então, tinha mais segundos. Como
hoje, tinha apenas sessenta. Os segundos porém eram mais dilatados, o que
tornava os minutos maiores, mais pesados. O efeito sobre as horas era notável.
Comparadas com as de hoje, aquelas eram muito mais lentas. Terríveis se havia
pressa em que passassem. Lutavam contra a tentação da velocidade. O sucesso foi
relativo, como sabe. Se retroceder ainda mais dois ou três séculos, a situação
é então incompreensível. Os homens viviam muito menos anos, mas duravam muito
mais. Não, não é especulação, nunca falo do que não vi ou experimentei.
domingo, 31 de maio de 2020
Histórias sem nexo 8. A trineta
Julio Romero de Torres, La niña de la trenza |
A
trineta da trança trocou de trisavô ao troar da trombeta. Transferiu-o para
outra trineta e, enquanto tricotava e a trisavó lhe dizia traz-me o trisavô, troou
três vezes o trombone. A tribo levou-a ao tribunal para a trucidar. Ela trocou-lhes
a tragédia, desfez-lhes os truques e, transparente, transferiu-se como
trapezista para trupe de Trancoso.
sexta-feira, 29 de maio de 2020
Impressões 52. A sombra
quarta-feira, 27 de maio de 2020
Micronarrativa (32) O sonho da modelo
Carl Mydans, Art students at the painting class. Texas, 1939 |
Era uma modelo muito requisitado nas escolas de pintura. Pousava não por necessidade ou vocação. Alimentava, não sem teimosia, uma secreta esperança. Um dia, depois de acabar a última sessão, ao levantar-se viu saírem vivas dos quadros réplicas suas. Eu sabia, gritou. Um dia haveriam de vir comigo.
segunda-feira, 25 de maio de 2020
A Sarça Ardente - 20
Jaime Burguillos, Ocaso, 1976 |
O teu silêncio preenche-me
o coração.
Dele faço palavras
e semeio-as na terra
virgem
presas na pétala pura
do provir.
O teu silêncio preenche-me
o coração.
Oiço-te no murmúrio
do mundo, na cidade
cercada
pela sarça ardente do
esquecimento.
O teu silêncio preenche-me
o coração.
A música das esferas
celestes
cai em cataratas
de abandono e rios de
verde e melancolia.
O teu silêncio preenche-me
o coração.
Atravesso o mundo
e a maçã que colhi
levo-a
na púrpura de seda dos teus segredos.
Março de 2020
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sábado, 23 de maio de 2020
Haikai do Viandante (394)
quinta-feira, 21 de maio de 2020
Meditação Breve (128) A sagrada família
Eve Arnold, Fisherman and family. Island girl. Bahia Honda, Cuba, 1954 |
Um homem, uma mulher e uma criança. De imediato reconhecemos aí a realização de um dos mais poderosos arquétipos da cultura ocidental, o da sagrada família. O que torna algo num arquétipo? A excepcionalidade. O que institui Maria, José e o Menino num arquétipo é o carácter absolutamente excepcional e inusitado daquilo que os junta. É a sua não normalidade que lhes permite constituir-se como uma norma que durante séculos ordenou o caos que é a família dos seres humanos.
terça-feira, 19 de maio de 2020
Meditação Breve (127) A verdadeira sabedoria
Robert Capa, German soldiers surrender to American troops. Cherbourg, France. June 26th, 1944 |
Todos acabaremos por nos render, por maiores que tenham sido as nossas vitórias. Uma moral repelente que cultuava super-homens julgou que poderia fugir à capitulação. Enganou-se. Também uma rendição demasiado humana esperava quem se louvou nessas fantasias da adolescência. A verdadeira sabedoria começa quando se descobre quando e a quem nos devemos render.
domingo, 17 de maio de 2020
Uma surpresa
Gjon Mili, Stroboscopic image of ballerina Nora Kaye leaping. 1947 |
A
primeira vez que a vi foi numa fotografia estroboscópica, onde o seu corpo se
decompunha numa multiplicidade indefinida de imagens. A técnica permite muitas
coisas, das quais nunca se imagina a realidade. Conheci-a num grupo de amigos
dados às artes. Os dias passaram e acabámos comprometidos. Daí ao casamento foi
um curto passo. Infelicidade ou cansaço não serão as palavras adequadas.
Passados alguns meses descobri que a fotografia que me atraíra era falsa. Não
era uma ilusão mas a própria realidade. Ela era muitas. O sonho de qualquer
homem? Duvido. Casei com uma mulher e agora tinha um harém em que todas as
minhas mulheres eram a mesma, que continuamente se multiplicava.
sexta-feira, 15 de maio de 2020
A Sarça Ardente - 19
Joan Hernández Pijoan, Paistge amb una alzina, 1974 |
Coração sitiado pelos
tambores do inimigo,
coração perdido no
feno
dos dias sombreados na
luz de Setembro.
Os lábios abrem-se
para o visco de um fruto,
desenham uma auréola
na penumbra breve da
boca.
Oiço então um rumor no
vidro da janela.
Pássaros tocados pela
graça
abrem-se para a memória
da madrugada.
Março de 2020
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quarta-feira, 13 de maio de 2020
segunda-feira, 11 de maio de 2020
Diálogos morais 38. Abandono
sábado, 9 de maio de 2020
quinta-feira, 7 de maio de 2020
Meditação Breve (126) Entregues à Fortuna
terça-feira, 5 de maio de 2020
A Sarça Ardente - 18
Ana Peters, Homenaje C.D.F., 1995-98 |
As paredes florescem
de dor,
se o sol da manhã
as toca com lanças de
silvas e sargaços.
Uma mulher caminha
presa na sombra
e leva nos dedos anéis
roubados ao ardor da
aurora.
Extenuado, hesito na
vereda a seguir
e recolho-me na gruta da
tarde.
Pego no tear do tempo e
teço as túlipas do Verão.
Março de 2020
domingo, 3 de maio de 2020
O seu mundo
Horst P. Horst, Elsa Schiaparelli, c. 1934 |
Casei
com ela seis meses depois de a conhecer. Foi amor à primeira vista. Recíproco,
pelo menos foi o que pensei. Uma vez por outra, dizia que não pertencia a este
mundo e sorria. Não havia enigmas no sorriso. Não tivemos filhos, não tinha
chegado a altura, pensava eu. Passava muito tempo diante do espelho, mas não
mais que outras mulheres. Entre espelhos e mulheres há um trato muito antigo e
com ela não seria diferente. Um sábado, antes de sairmos para um jantar de
amigos, ela estava diante do espelho. Olhava-o fixamente. De súbito, o seu
corpo é sugado pela imagem do espelho e funde-se nela. Volta-se e começa a
afastar-se. Olha para mim e diz este é o meu mundo. Nunca voltou.
sexta-feira, 1 de maio de 2020
Diálogos morais 37. A recusa
Mac Adams, Mystery #17, 1976 |
- Por que razão haveria de ir contigo?
- Não estás aqui para isso?
- Há limites para tudo, até eu tenho os meus limites.
- Não terei problemas em tornar a compensação mais interessante.
- Dispenso eufemismos.
- Diz o teu preço.
- Esquece, nunca acompanharia ninguém com umas botas dessas.
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