Não apenas o sal habita no silêncio, mas também o fermento.
É ali, no silêncio sepulcral que habita o centro do mundo, que fermenta vida,
corroendo os grilhões de aço da morte. Chegada a hora, ela irrompe banhada pela luz do segredo. Em
cada irrupção há um ressurgir no qual, sob o véu silente, se escuta a
música eterna das esferas celestes.
Paul Wolff, Housewife, grass-bleaching the linen, 1930s
Há gestos, tão vivos, congelados no passado que parecem querer soltar-se das férreas grades do calendário, para abraçarem o húmus da terra e entregarem-se ao ardor que, na maresia das manhãs, se desprende já dos raios solares.
Quando alguém se sente chamado para um território inóspito, então é porque chegou a hora do abandono. Não de se sentir abandonado, mas de abandonar-se, para que o vento que sopra onde quer lhe possa falar e indicar-lhe o caminho que o espera.
Yale Joel, Night traffic on the Major Deegan Expressway. New York, June 1958
Os carros deslizam como larvas no território da noite. Abrem valas de luz por onde caminham em busca de um destino, dessa morada onde o silêncio lhes paga cada pergunta com o mistério de uma resposta.
Uma inquieta presença insinuava-se à entrada. A sua vida fora sempre um lago de indecisão. Chegava ali e hesitava longamente se devia entrar ou ir-se embora. Acabava sempre por se ir. No dia que entrou, a sua mão ficou agarrada longas horas à porta entreaberta, como se fosse possível apagar o precipitado passo.
Sentava-me ao lado dela e observávamos o oceano, comentando os
veraneantes, a ondulação, o destino dos barcos que passavam. Por vezes,
convidava-a a jantar, mas ela nem sempre acedia, protestando cansaço ou algum
incómodo ocasional. Era uma amizade intermitente. Num dia à tarde, sentados um
ao lado do outro, brilhavam-lhe os olhos. Disse-me: acabou a minha pena, posso
voltar para casa. Olhei-a estupefacto. Pena? Sim. Venha comigo. Pegou-me na mão
e levou-me para o mar. Dentro de água beijou-me longamente. Depois, dando umas braçadas,
disse-me adeus. Volto para casa, acrescentou. E enquanto se afastava mar
adentro, soltou um canto belíssimo. Quando se calou, o seu silêncio quase me
enlouqueceu.
Expectante, a ave olha o rumor do silêncio, enquanto o tempo, levedado pela brisa, passa em direcção ao futuro. Na ramagem das árvores, sob um céu anónimo, esconde-se a esperança e a mão que há-de pintar de cinza a sombra efémera que a luz sempre consigo traz.
Olho e reconheço-me na imagem que a esfinge me devolve. Se pergunto quem sou, nunca oiço a resposta, apenas o ecoar da pergunta no impenitente vazio do deserto chega aos meus ouvidos, devolvendo-me a angústia da pergunta e a incerteza que me habita.
- Não podes querer o Sol. Está longe, é muito grande e quente.
- Não interessa. Eu não desisto.
- Não desistes? Como assim?
- Vou crescer, vou ser maior que tu e então, este barco maior que o sol leva-me até ele. Quando lá chegar, mergulho-o na água e ele arrefece. Então trago-o comigo. Eu não sou como tu. Eu não desisto.
Jean Dieuzaide, Castelo dos Sarmiento, Ribadavia, 1960s
O murmúrio das pedras foi arrastado pelo vento para o desfiladeiro do silêncio. Feitas ruínas, as muralhas são agora fantasmas mudos que dormem embalados pelo arbusto do esquecimento.
A chuva cai impiedosa, dilacera a terra seca, enquanto a trovoada abre, com o frenesim de um caçador em busca da presa, um buraco no coração dos homens. Uma tempestade é sempre uma ameaça, mas também é uma porta por onde a luz, por breves instantes, relampeja.
Tom McCrea, Pruitt-Igoe complex, St. Louis, Missouri, 1955
Facilmente as cidades se excedem e ultrapassam a dimensão em que uma humanidade, espiritualmente saudável, é possível. Entre a penúria da aldeia e a desmedida urbana, abre-se o território da possibilidade, esse lugar onde o pequeno e o grande, o alto e o baixo, a tradição e o novo podem conviver e abrir as portas para que os homens dêem sentido à existência.
O rigor das pedras alimentava o silêncio das manhãs. Por vezes, passavam mulheres carregadas de pão e frutas. Quando chegava o meio-dia, o sol cintilava no chão, anunciado a estiagem e a luz que a noite traria presa à ondulação das estrelas.
Henri Le Sidaner, Neige, Boulevard de la Reine, 1928
Os flocos de neve lembram folhas envelhecidas perdidas pelo chão. Não há pássaros que sobre eles poisem, mas vindo o sol, uma seiva fresca entrará pelos poros da terra e um hálito de água selvagem subirá aos céus para chamar as primeiras aves da Primavera.
Uma casa construída no frágil reflexo das águas abrigava todas as esperanças. De uma das janelas, via-se o passar do tempo no barco triste dos dias. Na outra, ouvia-se o canto das aves que descia e pousava no coração de quem ali se sentava. Depois, havia quem mergulhasse e deixasse o corpo flutuar na luz do entardecer. Então o vento erguia-se e espirais de poeira agitavam-se no ar para caírem inclementes na trémula memória da casa.
Teria sido uma ave ou um raio de luz, talvez a maçã da árvore do paraíso. Agora, é um manto de silêncio sob a penumbra da manhã, a promessa obstinada do Estio que espera, no murmúrio do olhar, o rumor da água na folhagem dos campos.
Foi lenta a metamorfose. As coisas mais surpreendentes acabam por
parecer banais se o tempo nos habituar a elas. Contrariamente ao hábito, ela
abriu a janela. O facto, por inusitado, provou comentários. Também muito notado
foi o caso de, passados dias, aparecer no parapeito da janela um gato. Demorou
mais de meio ano para que ela, naquela altura ainda muito bela, surgir na
janela. Foi o alvoroço. Depois, tornou-se rotina. Passado um ano, nem ela nem o
gato saíram mais daquele lugar. Murmurou-se, mas o rumor depressa acabou.
Habituamo-nos a tudo e nem sequer foi problemática a descoberta que o
único ser vivo era, apesar de cortado, o ramo preso nas mãos dela. Floresce uma
vez por ano.