sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Biografias 5. O homem da luz

Dmitri Badermants, Buoy Keeper, 1960

Não é pelo peso da tarefa, mas não há no mundo maior responsabilidade. Ao crepúsculo, o homem ergue-se e, bordejando precipícios, leva, com mão firme, um grão de luz para que as trevas da terra não façam presa.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Haikai do Viandante (350)

Guy Le Querrec, Paris, Rue Louis Morard, 1989 - Magnum Photos

No hálito da noite
um gato poisa à janela.
O vento ronrona.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Meditação breve (65) Na margem

Alexey Titarenko, Old woman, St. Petersburg, Russia, 1999

Há no rio tempestuoso da vida uma crueldade para com aqueles que envelhecem. São deixados na margem à espera que o tempo passe e os sepulte na grande pátria do esquecimento. E o que não gostamos de ver, durante os anos gloriosos da existência, é que, mal nascidos, os nossos passos dirigem-se, guiados por instinto infalível, para essa margem de onde não há retorno.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Poemas do Viandante (671)

Salvador Soria - Forma,materia, color y espacio (1984)

671. a forma e a matéria e o espaço

a forma e a matéria e o espaço
dão cor ao corpo
                pêndulo perdido
na paisagem
a oscilar em ondas
tocadas pela vibração
um começo e um fim
e entre eles
a mandíbula do movimento

(19/12/2016)

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Meditação breve (64) No canto do café

Václav Chochola, Adolf Hoffmeister au deux Magots, 1969

O canto do café é um lugar privilegiado. Não porque seja um sítio excelente de observação da comédia humana, mas porque torna manifesta a nossa natureza lateral. Talvez ainda hoje a espécie humana se pense como centro do universo, mas na verdade não passa de um bando marginal no concerto da criação.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Biografias 4. O homem do chapéu

Duane Michals, Magritte and hat, 1965

Na ideia de chapéu, um homem sem biografia espera a solenidade da sombra e investe-a com a aura que anuncia, ao mundo e à cidade, a santidade de um pecador ou a perdição de um santo.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Haikai urbano (31)

Erich Lessing, Budapest, 1956

Um rumor de música
na rua roída de miséria.
A cidade morre.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

A minha mulher

Hannah Höch, Self portrait with Raoul Hausman, ca. 1919


Conheceu a minha mulher. Lembra-se, por certo, da sua figura e da sua maneira de ser misteriosa. Como ela adquiriu os papéis de identidade, nunca o soube. Quando casámos, estava tudo na mais perfeita ordem. O problema é que ela não tinha pai, nem mãe, tão pouco nasceu ou teve uma infância. Um dia, ao crepúsculo, senti uma leve tontura. Não cheguei a cair, mas de dentro de mim começou a sair uma sombra. Não tive medo. O processo não foi demorado. Quando a noite caiu ouvi uma voz, uma bela voz. Tremi. Vinha da sombra, agora um vulto, e tocou-me o coração como nenhuma outra. Quando acendi a luz, o vulto era uma mulher. Olhei-a no fundo dos olhos e soube de imediato que seria a minha mulher.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Poemas do Viandante (670)

Joan Hernández Pijoan - Flors per als campions (1990)

670. os vencedores vestem-se

os vencedores vestem-se
de flores
restos de natureza
na nudez
vocálica da voz
uma sombra triste
no regaço breve
e vítreo
tão vítreo no v da vitória

(18/12/2016)

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Meditação breve (63) Imperfeição

Manuel Álvarez Bravo, Ventana al coro, Mexico, 1930s

A coisa mais surpreendente, e também a mais preciosa, nas obras humanas é a sua imperfeição. Esta é a porta por onde entra aquele que procura ir mais além. A imperfeição incita-nos e abre-nos ao que nos ultrapassa. A perfeição apenas apela àquelas terríveis palavras de Cristo na cruz, após as quais entregou o espírito: Está consumado.

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Meditação breve (62) Refúgio

Myron Wood, Boy and Sculpture, 1960

A criança sentada numa escultura antropomórfica de Henry Moore encontrou ali o seu refúgio. Não porque as estátuas mimassem figuras humanas, mas porque, ao distorcê-las, se tornassem mais humanas que os próprios seres humanos.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Haikai do Viandante (349)

Max Baur, Park Sanssouci, Potsdam, 1930

Ciprestes tardios
erguem-se leves aos céus.
Sombras e murmúrios.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Poemas do Viandante (669)

Gonzalo Torné - El mundo de Ceballos (1994)

669. mundo mapa mudo

mundo mapa mudo
de anémonas
                tisnado
no sol marítimo
                carcomido
pelo passar da barca
sujo       ó tão sujo
pelo açúcar
                a florir
na erva das encostas

(18/12/2016)

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Biografias 3. Mulher hesitante

Walde Huth - Model Patricia in Jaques Fath, Paris, France, 1955

Parada e pensativa, a mulher, inábil nas artes da tecelagem, hesita. Voltar para trás ou entregar-se ao murmúrio sombrio do desejo dos pretendentes?

domingo, 28 de janeiro de 2018

Haikai do Viandante (348)

Camille Pissarro - Morning, Sunshine Effect Winter, 1895

Uma ave cantou
no frio silêncio da neve.
Manhã de Inverno.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A vida que se retira

Arthur Tress - Cards and Checkerboard in Abandoned Locker Room for Railroad Workers c. 1970

Os espaços que perderam o préstimo e ficaram entregues à ruína têm sempre o condão de abrir no coração do espectador a chaga da nostalgia. Uma chaga suave mas irremissível. Um tabuleiro de xadrez, o resto de um baralho de cartas não são, porém e apesar da degradação trazida pelo tempo, mero lixo, antes símbolos de uma vida que se retirou. Não a vida física e material mas a vida do espírito. Olhamos e quase se sente o ambiente espiritual que animava quem se servia daquelas instalações, aqueles que jogavam às cartas ou os que se mediam no xadrez. A ruína que os olhos vêem é o que restou dos pensamentos, palavras e desejos que ali ecoaram e que agora são silêncio e fragmentos materiais a deslizar para fora do tempo.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Poemas do Viandante (668)

Gonzalo Torné - Espejos para Ceballos (1994)

668. a viagem é um espelho

a viagem é um espelho
onde se reflecte
o viajante coroado
de léguas
                e memórias
tão pesadas
                as memórias
que o vidro
se quebra e quebrado
                o feitiço
resta o girassol
o sol      do silêncio

(18/12/2016)

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Interrupção

Andrea Mantegna - Adoration of the Shepherds (1451-53)

Com a adoração dos pastores, de Andrea Mantegna, o Homo Viator interrompe por uns dias a sua actividade. Voltará no início de Janeiro, passadas as Festas e os mil compromissos que elas trazem consigo. A todos um Bom Natal e um Feliz Ano Novo.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Um casal

André Kertész, Couple devant un coucher de soleil, Lágymányos, Hongrie, 1920

Chegavam ao pôr-do-sol. Vinham de mãos dadas, depois olhavam o horizonte e ele punha-lhe a mão sobre o ombro. Então, ela encostava-se, e assim ficavam largos minutos, depois partiam. Que eu tivesse visto, nunca se beijaram. Se pareciam felizes? Não lho sei dizer. Nunca lhes vi o rosto. Não sei se ela era bela ou se ele tinha um ar altivo. Um dia ficaram mais tempo. O sol pôs-se e eles permaneceram ali, abraçados e luminosos, banhados pelo crepúsculo. Quando a luz estava quase a desaparecer, entraram devagar dentro de água e caminharam sem pressa. Submergiram no momento em que a noite se cerrou. Nem nesse momento houve um beijo, se isso o interessa. Não, não os tornei a ver.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Poemas do Viandante (667)

Joan Hernández Pijoan - Els negres i el violeta (1983)

667. uma violeta vazia

uma violeta vazia
chora
na escura escuridão
do negro
alça os espinhos
e é uma rosa
a desfazer-se em
água e areia
na tábua aplainada
pelo divino carpinteiro

(17/12/2016)

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Haikai urbano (30)

Ted Croner, untitled, 1947-52

Um tempo de Natal
desce no frio da cidade.
Um anjo de luz.

domingo, 17 de dezembro de 2017

Para toda a vida

Tóth Zsuzsanna, Egy életen át

- Lembras-te do que me segredaste quando, no dia de casamento, saímos da Igreja?
- Nada de impróprio. Ou foi?
- Não, não foi, embora fosses capaz de o fazer. Não te faltava atrevimento. Não te lembras mesmo?
- Aos dezanove anos, somos capazes de segredar qualquer coisa.
- Ainda não tinhas dezanove anos, faltava uma semana.
- Como era nova. Bem, não era assim tão atrevida... Nunca te deixei tocar-me. Lembras-te?
- Se lembro, atrevida, mas...
- Nunca pensei que ia parecer a minha avó. O que te disse?
- Faz um esforço. Cumpriste.
- Cumpri? Ainda bem, mas, nesse dia, estava tão atordoada que devo ter prometido este e o outro mundo.
- Não foi, propriamente, uma promessa.
- Não? Ainda bem, se o fosse e com o esquecimento poderia acontecer que faltasse à palavra.
- Não. Fizeste uma espécie de constatação.
- Uma constatação? Mas o que constatei?
- Que era para toda a vida. Murmuraste: para toda a vida. E eu senti-me eterno. Eras um anjo, atrevida, mas um anjo.
- Mas, mas a vida ainda não acabou.

sábado, 16 de dezembro de 2017

Haikai do Viandante (347)

Harry Callahan, New Hampshire, 1961

Silêncios da noite
Ecoam no bosque vazio.
Vento, Inverno e frio.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Biografias 2. Rapariga girassol

Édouard Boubat, Tournesol, 1985

Solícita, a rapariga pousou nua ao sol. E da terra calcada pelos seus pés nasceu-lhe, perdido entre a seara, um casto e cruel girassol.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Poemas do Viandante (666)

Julião Sarmento - Dias de Reis (1985-86)

666. os reis ruminam pelas ruas

os reis ruminam pelas ruas
uma amargura
feita de bolos
a cair nos olhos
da infância
tocados pelo sopro
das estrelas
erguem-se em camelos
de ráfia
por caminhos de musgo
à procura da luz
macerada no lodo da água

(17/12/2016)

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Biografias 1. Rapariga sentada

Alfred Stieglitz, Girl mending nets,1896

Sentada em silêncio, a rapariga remenda as redes que, lançadas no mar encapelado, apanharão o peixe voraz que há-de devorar o vendaval da sua solidão.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Meditação breve (61) Vestígios

Henri Cartier-Bresson, Pergamon, The Acropolis, Turkey, 1964

Como alguém dizia, o passado é um país estrangeiro. E nunca sabemos se os vestígios que ele nos deixa servem para rememoração piedosa do que desapareceu ou se são o sinal de escárnio com que o que passou olha para a nossa azáfama.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Meditação breve (60) Sombras

Leni Riefenstahl - Their Shadows, 1936

Corremos à frente da nossa sombra e ela, ameaçadora, persegue-nos com denodo. O que tememos para assim corrermos? Que nos apanhe? Que nos ultrapasse? Não. Nem uma coisa nem outra. Tememos apenas que nós sejamos a nossa própria e única sombra. 

sábado, 9 de dezembro de 2017

Haikai do Viandante (346)

Brett Weston, Bamboo Forest, Japan, 1970

O vento desliza
na floresta de bambu. 
Pássaros de Outono.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Poemas do Viandante (665)

Max Cantrell - Bullfight (1995)

665. o touro enreda-se na rede

o touro enreda-se na rede
da morte
capeado no comércio
sombra e sol
entre olés e olas
de vibração
bandarilhas de sangue
e sombreros de feltro
a pelica porosa
da espada da perdição

(17/12/2016)