domingo, 10 de dezembro de 2017

Meditação breve (60) Sombras

Leni Riefenstahl - Their Shadows, 1936

Corremos à frente da nossa sombra e ela, ameaçadora, persegue-nos com denodo. O que tememos para assim corrermos? Que nos apanhe? Que nos ultrapasse? Não. Nem uma coisa nem outra. Tememos apenas que nós sejamos a nossa própria e única sombra. 

sábado, 9 de dezembro de 2017

Haikai do Viandante (346)

Brett Weston, Bamboo Forest, Japan, 1970

O vento desliza
na floresta de bambu. 
Pássaros de Outono.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Poemas do Viandante (665)

Max Cantrell - Bullfight (1995)

665. o touro enreda-se na rede

o touro enreda-se na rede
da morte
capeado no comércio
sombra e sol
entre olés e olas
de vibração
bandarilhas de sangue
e sombreros de feltro
a pelica porosa
da espada da perdição

(17/12/2016)

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Nesta terra

Jean Dieuzaide, Turquie, la chevauchée, désert de Konya, 1954

Atravessamos um mundo após outro para chegar a este. E o que nos espera? Um deserto vazio como o esquecimento, um calor infernal e nuvens de poeira que lembram sabe-se lá o quê. Melhor seria termos evitado esta Terra, mas as informações nunca são certas e os vendedores de mundos há muito que perderam os escrúpulos. Os negócios estão mal, queixam-se, como se isso lhes aliviasse a consciência. Pobres cavalos. Estão cansado e não sabemos onde haverá lugar para descanso. Nunca pensei. De todos os mundos possíveis, logo haveríamos de vir a este. Maldita poeira do deserto. Ainda morremos todos nesta Terra.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Ilusão

Edward Weston, The Marion Morgan Dancers, California,1921

- Vê-as? Está mesmo a vê-las?
- Sim, já lhe disse que sim. Por que pergunta?
- Vejo-as, há muito, mas nunca me aproximei delas. Com o passar do tempo comecei a convencer-me que eram uma ilusão.
- Uma ilusão? Talvez tenha razão. Uma ilusão...
- Uma alucinação, como a daqueles que se perdem no deserto e vêem oásis onde só existe areia.
- E elas estão sempre assim?
- Sim, despem-se, riem e olham para as imagens reflectidas no lago. Depois, pegam na roupa e desaparecem.
- Nunca se sentiu tentado...
- Todos os dias.
- E nunca se aproximou?
- Ó não. E se fossem apenas uma miragem? 
- Compreendo-o, nunca devemos trocar o certo pelo incerto. 
- Já tenho anos suficientes para não trocar um belo engano pela crua realidade. Olho-as e isso basta à minha solidão.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Haikai do Viandante (345)

Florence Henri, Une grappe de raisin, c. 1934

Um cacho de uvas.
Um rio que corre em silêncio.
Um deus que passou.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Meditação breve (59) Sombras

Jean Dieuzaide, La mode à Cologne du Gers, 1987

Sombras são fogos de artifício tão obscuros que diminuem os homens até os tornarem crianças, antes de os esmagarem pelo terror que espalham, ao projectarem-se no ecrã da consciência, sem que um antídoto as detenha.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Poemas do Viandante (664)

Joan Hernández Pijoan – A partir de les albes (1983)

664. um galo ou uma magnólia

um galo ou uma magnólia
entram pela luz
da manhã
e cantam a alba
sobre
a elegia ébria
da noite
ao ritmo e ruído
da árvore da alvorada

(17/12/2016)

sábado, 2 de dezembro de 2017

A espera

Elliott Erwitt - Musée de l'Orangerie, Paris, 1998

- Encosto-me ao silêncio frio da parede e espero. 
- Um museu é um belo sítio para esperar. Será que vem? 
- Outrora, estaria inquieta e jamais ficaria impassível. 
- Era tão impulsiva? 
- Se era, mas isso foi há muito. 
- E continua a esperar?
- Há que manter a disciplina.
- Mas, espera por...
- Por ninguém. Nunca falta. 

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Dilaceração

Paul Wolff, Audi cabriolet, 1939

Sentimo-nos sempre dilacerados. Também se sente assim, não é? Muitas vezes, confundimos o desejo com a realidade. Pensamos que o sentir-se dividido é um acidente, talvez uma patologia, e não a natureza dos homens. Isso, porém, é uma ilusão que nasce do desejo de aplacar uma dor. Pode crer no que lhe digo. Não fomos feitos para o sofrimento. Como é que a cisão nasce, é isso que quer saber? Vejamos o que lhe posso contar. Trago sempre em mim duas imagens. Uma fala-me do passado e transporta uma nostalgia que nunca se desvanece. A outra aponta para o futuro e nunca me deixa tranquilo. O resto é a carne a rasgar-se entre uma e outra. Por vezes, sangra.

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Haikai urbano (29)

Giuseppe Moder, Puglia, ca. 1960

Rudes ruas de pedra
roem o silêncio da tarde.
A criança grita.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Vestígios

André Kertész - Luxembourg Gardens, Paris, 1925

Quantas vezes, inopinadamente, nos deparamos com vestígios da infância? Olhamo-los e eles respondem ao nosso olhar, interpelando-nos: como te afastaste tão depressa desse tempo em que eu fazia parte do teu mundo? E o nosso silêncio é o sinal de uma ignorância fundamental. Balbuciamos uma explicação sem nexo e sentimos a consciência culpada de termos deixado escapar, sem explicação, o território encantado em que o simulacro de um cavalo era um cavalo verdadeiro que nos levava para este e para qualquer outro mundo que a imaginação criasse.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Poemas do Viandante (663)

Julião Sarmento - Vícios (1988-89)

663. o silêncio é um vício

o silêncio é um vício
desliza
sobre os lábios
toca a boca
abre-a furtivo
para o furúnculo
feroz
da ferida felicidade

(16/12/2016)

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Haikai do Viandante (344)

Bill Perlmutter - Along the Banks of the Main, Germany, 1955

Desceu o Inverno
envolto na neve fria.
Arrojo e silêncio.

domingo, 26 de novembro de 2017

Mitos

Frank Eugene - Adam and Eva, 1910

Os mitos nunca deixam de nos atormentar. Decretamo-los mortos e eles revivescem e revigorados perseguem-nos, de noite, nos sonhos, ou então nesses outros sonhos, os da vigília, a que damos o nome de arte. O triunfo da razão no mundo moderno sempre foi acompanhado pela presença persistente do mito. Cerramos os olhos e logo um paraíso parece estar ali mesmo à mão. Abrimo-los e logo se insinua uma nostalgia desse Adão e dessa Eva que um dia fomos e que, por um qualquer acto inexplicável, deixámos de ser para cairmos na deplorável situação que é a da humanidade finita, limitada, insensata. Mortal, numa palavra.

sábado, 25 de novembro de 2017

Meditação breve (58) Brechas

Aníbal Sequeira - Água fresca

Há, por parte do homem, uma luta contumaz contra a desagregação do mundo. O espírito, porém, cansa-se desses rituais de idolatria e, no tecido das coisas quotidianas, vai abrindo brechas. Por elas, entra um sopro que a tudo e a todos transporta para outro mundo, tão diferente daquele que os homens, em desespero, teimam em perpetuar.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

No seu lugar

 Norwegian Film Institute © - Liv Ullmann

Via-a assim e nunca quis sequer imaginar o que passava pela sua cabeça. A cabeça de uma mulher é um país estrangeiro. Se somos novos temos a ilusão de que é possível aprender a língua e penetrar naquela pátria. O tempo, porém, trata de matar as ilusões e mostrar que não é apenas o vocabulário que nos separa. A morfologia é inaudita e a sintaxe obedece a uma lógica que, sem remissão, desconhecemos. Se eu não a quis compreender? Não, conheci-a já bem maduro. Bastava-me olhar para ela. Tinha descoberto, há muito, que a felicidade é maior na incompreensão mútua. Ela olhava para além e eu observava-a em silêncio. E tudo estava no seu lugar.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Poemas do Viandante (662)

Javier Rodríguez Quesada - Altar

662. pedra e luz e um rumor

pedra e luz e um rumor
de lume e lua
o cântico
cansado do louco
espelho
do mundo
escuridão da alma
um animal
na alvura do altar

(16/12/2016)

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Haikai urbano (28)

Saul Leiter - Purple Umbrella, Paris, 1950s

A purple umbrella
sob a chuva de Paris.
Um anjo passou.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Haikai urbano (27)

Raoul Hausmann - Nos Dames de Paris, 1939

Um caleidoscópio
dança febril nos meus olhos.
Pedras de Paris.

domingo, 19 de novembro de 2017

A cadeira

André Kertész - Acapulco,1955

Vê aquela cadeira? Não está a ver? Parece uma sombra, mas é bem real, se é que alguma coisa há que o seja. Não, não se preocupe, não vou discutir metafísica consigo. Aliás, é assunto que não me interessa. Quer saber o que ela tem de tão especial? Mudei-me para aqui há 70 anos, já a cadeira ali estava, e até hoje nunca vi ninguém sentado nela, apesar de todos os dias uma pessoa, que foi mudando ao longo dos anos, a limpar e cuidar. Dizem, certamente por superstição, que é o lugar do morto. Parece, agora, interessado. Quer saber porque lhe falo disto? É simples. A cadeira está ali e é evidente que está à espera. E sempre que chega um forasteiro, pergunto-me se não é ele que ela, há tanto tempo, aguarda.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Meditação breve (57) Desejo

John Loengard, Henry Moore’s Sheep Piece, Hertfordshire, England, 1983

O que a fotografia de John Loengard nos mostra, aparentemente, é a desproporção entre a realidade e os artefactos. No entanto, o que vemos é a desmesura do desejo humano expressa no trabalho de Henry Moore. O deseja celebra-se no seu excesso e este excesso é o sinal de um desejar infinito.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Poemas do Viandante (661)

Jesús María Cormán - Moor n.º 10 (2001)

661. chove na charneca

chove na charneca
um lago de saudade
vibra
em ondas verdes
rasgadas
pelo odor de poeira
uma catástrofe
de violetas
no vitríolo dos céus

(16/12/2016)

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Intimação

Otto Steinert - Call, 1950

A vida do espírito começa com um chamamento. Este dá-nos a dimensão da alteridade, do outro, daquele que toma a palavra e, com a sua voz, no chama. Esses outro que nos chama, contudo, não está, necessariamente, fora de nós. Esse outro podemos ser nós. Quando esse outro, que somos nós, nos chama, então é porque temos uma vocação. Se o chamamento vier de fora, ele não passe de uma solicitação. Se vier de nós, então estamos perante uma intimação. Somos intimados a responder.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Haikai urbano (26)

Artur Pastor - Cais das Colunas, Lisboa, 1950-69

No cais das colunas,
Lisboa perde-se nas águas.
Tejo, a luz do mar.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Haikai do Viandante (343)

Jeanne Carbonetti - Bétulas no Inverno (1997)

As bétulas despem-se
no silêncio do inverno.
Um ramo caiu.

domingo, 12 de novembro de 2017

O sopro do vento

Wolf Suschitzky - Milkman, Charing Cross road, London, 1935

Uma das formas de resistência que os seres humanos opõem ao espírito é a nostalgia. Olham o passado, paradoxalmente, como uma promessa de um mundo melhor. Na verdade, o que vêem são apenas simulacros desse passado despidos da sua vida real e de todo o trágico que ali houve. Essa saudade evita o exercício da escuta. O que devemos escutar? A resposta é simples: o vento. O vento sopra onde quer e nele repousa a energia, a virtude e a vontade do espírito.

sábado, 11 de novembro de 2017

Poemas do Viandante (660)

Jesús María Cormán - White event N.º 8 (2000)

660. espuma escorre

espuma escorre
tocada
pelo carbúnculo
do desejo
fio de água fiado
na roca do oceano
as mãos vazias
e
quase puras
tão puras as mãos do tempo

(16/12/2016)

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Evocações

Deborah Turbeville - Isabella at École Des Beaux Arts, Paris, 1977

Quando o espírito mergulha na evocação, como acontece nesta fotografia de Deborah Turbeville, nunca é com a finalidade de rememorar o passado ou, tão pouco, de o comemorar. A evocação não é um jogo memorial mas, antes, uma reconfiguração de elementos dispersos, que, de súbito, se unem para nos darem a ver uma presença inédita num presente nunca vivido. Evocar não é convocar o passado mas promover o presente.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Intimidade

Giorgio de Chirico - Entrevista (1927)

Naquilo a que se dá o nome de intimidade não existe apenas, e ao contrário do que muitas vezes se pensa, o que é mais próprio, autêntico e verdadeiro. A intimidade é um espaço de negociação entre o público e o privado, entre os desejos e afecções subjectivas e as convenções exteriores. A fronteira entre o íntimo e o público é de tal maneira porosa que, muitas vezes, se perde a noção daquilo que se deve reservar e aquilo que se deve ostentar. O segredo não é intrínseco à intimidade, mas resulta de uma conduta que exige esforço e persistência.