domingo, 27 de agosto de 2017

Poemas do Viandante (645)

Ellsworth Kelly - Four Blacks (1952)

645. no verão as folhas

no verão as folhas
tingem-se de negro
carcomidas
pela fuligem
oxidadas pelo ódio
tomadas pelo pavor
da queda
anunciada
em seiva ansiosa
de sombras e outonos


(13/12/2016)

sábado, 26 de agosto de 2017

Haikai do Viandante (333)

Paul Klee - Clearing in the Forest (1926)

dissipam-se as sombras
na assombração da floresta
chega a madrugada

sábado, 19 de agosto de 2017

Meditação breve (39) - Máscara

Annie Leibovitz - Meryl Streep, New York, 1981

Debaixo da máscara o que encontramos? Outra máscara. E debaixo desta? Uma nova. Enquanto alguém pensar que é alguma coisa, o que descobre por detrás da máscara com que representa o seu papel social é apenas uma nova máscara. O desejo de que por debaixo da aparência exista a realidade não passa disso mesmo, um desejo.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Meditação breve (38) - Árvores

Pier Luigi Lavagnino - Alberi (1969)

Uma árvore não é mais do que um silêncio que tomou corpo. Do alto da sua mudez, ela olha com condescendência para a bavardage onde os homens, sem parar, se afogam. 

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Vida interior

Meyer Schapiro - Abstract Interior (1950)

Um dos equívocos mais perigosos para a vida interior é confundi-la com uma existência plena de abstracções. Um conceito, por exemplo, é uma mera representação, enquanto a vida é sempre uma presença, um estar presente aqui e agora. O caminho do espírito começa sempre por um elevar-se da inocência concreta ao domínio da abstracção - é o momento da representação - para, de seguida, conquistar-se a si mesmo como realidade viva e plena, como presença pura no devir. Este é o tempo da sabedoria.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Poemas do Viandante (644)

Gerardo Rueda - De levante a poniente (1974)

644. de levante a poente

de levante a poente
sigo o rumo
do astro
escuto a erva
a ronronar
na palidez da planície
e
se o oriente se afasta
o mar em mágoa
afoga um diadema de fogo

(13/12/2016)

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Haikai urbano (18)

Ara Güler - Traffic on the old Galata Bridge, Turkey, 1956

cidade nocturna
sombra e secreto segredo
da noite a luz

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

A necessitada

Deborah Turbeville - Clothes by Romeo Gigli, Mirabella Magazine, 
École des Beaux Arts, Paris, 1989

O sangue corre-me um pouco mais rápido nos lábios, sinto a pressão contra a pele, a boca lateja. Engulo a saliva e passo com a língua pelos lábios. Vejo os dele e sinto que a pressão dos meus, o latejar do sangue no seu interior, é um sinal. Sinal de uma falta. Quase sinto o que me falta, uma ausência física. O coração estremece ao de leve e respiro. O ar entra muito lentamente pelas narinas e a tensão cresce. Penso nele e o coração é lacerado por uma dor. Inclino-me mas não está ali, apenas uma necessidade sem fim de lhe sorver os lábios, de os arrepanhar. Os lábios, os meus latejam no vazio.

domingo, 13 de agosto de 2017

Haikai do Viandante (332)

Filippo de Pisis - Paesaggio alpestre con case (1927)

casa na montanha
presa ao silêncio do dia
a sombra irrompe

sábado, 12 de agosto de 2017

A estátua

Josef Breitenbach - Sculpture Academy, Paris, c. 1935

Tenho frio. Não, o estúdio não está frio. Nem é o estar despida que me traz o frio. É o olhar deles nas minhas costas. Olham para mim e não me desejam, o olhar deles é frio, ao dirigiram os olhos para mim é gelo que deles sai. Só as pobres estátuas que saem das suas mãos recebem o seu desejo, o calor dos seus olhos. Tenho frio, muito. Os músculos começam a perder a flexibilidade, sinto-os duros, o sangue parou e os pulmões já não se movem. Quero, mas não consigo mover os braços. Aquela olhares gelam-me. Toda eu cheio a mármore. Sou uma pedra que nasceu dos olhos deles, a sua estátua, malditos sejam.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Poemas do Viandante (643)

Fernando Lerín - Sem título (1985)

643. uma névoa de azul

uma névoa de azul
e pedra
desce na manhã
embriagada
cobre de glicínias
as colinas de mogno
onde sangram
rosas de água
a escorrer púrpura
para o rio de cal e anil

(12/12/2016)

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Ofícios e profissões

Joaquín Mir - Carpintero

O que se perdeu na transição dos antigos ofícios para as modernas profissões? O essencial da perda reside no desaparecimento do espírito ligado ao trabalho. As modernas profissões visam apenas a eficácia externa e não pressupõem nelas nenhuma metamorfose espiritual. Quanto muito, exigem adequação psicológica. Os antigos ofícios, porém, eram verdadeiros programas de transformação espiritual. O afeiçoar da matéria era também um programa de transformação de si mesmo. O que se ganhou em objectos que, a cada instante, se tornam obsoletos, perdeu-se na vida interior de quem os produz.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

A fugitiva

Jeanloup Sieff - Alfred Hitchcock and Ina Balke, 1962

Pertenço-lhe. Se não lhe pertencesse não fugia. Corro, mas ele aproxima-se. Não suporto mais aquelas mãos. Ele aproxima-se. Uma provação, um teste. Definitivo. Se ele me agarrar, entrego-me ao seu império. Se conseguir escapar, serei livre, não mais lhe pertencerei. Essa sombra que me persegue quase me faz cair, sinto o ardor das suas mãos, o fogo que se desprende dos olhos. O ódio move-me. Oiço os gritos e fujo. Malditas ervas. Tantas pedras, vou cair. Não, ele ainda não me apanhou. É apenas uma sombra e as sombras não prendem as pessoas. Ou prendem. Corro. Ele corre, uma sombra. Aproxima-se e eu corro, fujo. Serei agarrada?

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Haikai do Viandante (331)

Modesto Ciruelos - Caballos (1952)

os cavalos dançam
à porta da eternidade
silêncio na estepe

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

A acossada

Gerda Taro - Republican militiawoman training on the beach, outside Barcelona, Spain, 1936

Apontar, a mão firme. Não hesitar, nunca hesitar. Não há coisa pior do que hesitar. Hesito e intrometem-se nos meus sentimentos. Estarei perdida. Não me amam. Olham-me e sinto os olhos do inimigo a rodear-me. As suas mãos na minha pele, as suas palavras de amor. Não quero que me toquem, sinto a pele suja. Não posso hesitar. Apontar, a mão firme e desfazer-me deles. O joelho por terra, alvejá-los antes que se aproximem e tragam o ronco das suas vozes, o martelar dos seus dedos. Rodeiam-me, aproximam-se, o que faço? Hesito, não hesito? Disparo. Para quê?

domingo, 6 de agosto de 2017

Poemas do Viandante (642)

Esteban Vicente - Matices del rojo (1986)

642. o vermelho abre-se em

o vermelho abre-se em
mil matizes
o poder cego do ocre
o delírio do vinho
o casto caminho
do castanho
a terra de saibro
e a casa de tijolo
pairam no poder cego
e deslumbrante
da ferida em carne viva

(12/12/2016)

sábado, 5 de agosto de 2017

A abandonada

Francesca Woodman - Untitled, Providence, Rhode Island, 1976

Ela desce, desce, penetra o soalho e vai desaparecer. A sombra que vivia a meu lado, vai-se embora. Temia-a tanto e já sinto a angústia da sua ausência. Que fazer agora que não tenho de me proteger dela, das suas solicitações, das suas manobras esquivas? Não, não me vou vestir. Para quê, se ninguém me vem ver, a própria sombra me deixou. Eu sou como estas paredes. Abandonadas, desintegram-se dia após dia, como se o nada as chamasse para dentro da sua imensa algibeira vazia. Medo? Não tenho medo, apenas um pouco de cansaço. Sim cansaço, o abandono é um exercício violento, tão violento. Sento-me cansada e espero. É tudo.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

A enclausurada

Deborah Turbeville, Self Portrait, Versailles, 1981

Enlouqueço. Sim, quase louca. Onde ponho os pés? Fechada, fechada aqui, para sempre. Para sempre? O que é a eternidade? E aqui o que é? Lá fora, o mundo espera-me. As pessoas falam e eu aqui presa. Se ao menos fosse um convento... São oito da manhã, quantas horas até o dia acabar? Caminhar, não parar. Não posso esquecer. Talvez fosse melhor esquecer, ou então morrer. Se eu soubesse cantar, mas não quero cantar. Quero rasgar as veias e deixar o sangue... ou cantar, talvez cantar fosse um remédio ou talvez não. Não posso mais, vou andar devagar, muito devagar e contar os passos. Quantos passos até ao fim? Um, dois, três, quatro...

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Meditação breve (37) - Revelação

Yoshiyuki Iwase - Nude (1950)

É no desequilíbrio, nessa ameaça de desarmonia, que sobressai a harmonia de um corpo, a sua obediência a uma ordem estética com que a natureza conspira para que, através desse corpo, o espírito se revele e revele no seu mais íntimo esplendor.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Haikai do Viandante (330)

Modesto Ciruelos - Abstracción (1975)

um barco desliza
pela água do mar de verão
sol céu infinito 

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Poemas do Viandante (641)

Eugène Leroy - Poisson (1974)

641. o peixe perde-se na paisagem

o peixe perde-se na paisagem
devorado por
uma ostra de volúpia
e
canta ao ritmo
dos remos
preso no veludo
da rede
preso na sílaba
de bronze
preso
                no anzol do amor

(12/12/2016)

segunda-feira, 31 de julho de 2017

A luz

Odilon Redon - L'Homme ailé ou L'ange déchu (1880)

A ambiguidade do título do quadro de Redon, independentemente das razões que assistiram ao pintor, marca um dos traços da nossa cultura. O desejo de se elevar e o temor de cair. O destino tanto de Ícaro como do anjo decaído está relacionado com a luz. Um aproxima-se tanto da fonte da luz, o Sol, que as asas derretem. Outro, Lúcifer, o anjo da luz, não resiste à desmedida de ser portador da luz. Em cada uma destas figuras, o espírito ocidental exprimiu a dificuldade de se relacionar com a Luz. Não por acaso, João, o evangelista, escreveu: a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.

domingo, 30 de julho de 2017

Um Cristo crucificado

Odilon Redon - Crucificação (1910)

Olhamos o quadro de Odilon Redon e, perante a data, perguntamos, perplexos, o que faz ele ali. Ali não se trata do Museu de Orsay onde se encontra, mas de 1910. Depois do Iluminismo, do positivismo e dos diversos materialismos, por que razão tornar a apresentar um Cristo crucificado? Se nos deixarmos instruir pela pintura, talvez seja possível compreender alguma coisa. O que vemos é a solidão e o abandono do Cristo. Elas são o negativo que permitiram construir o mundo que ainda é o nosso. Pensa-se muitas vezes que a grande vantagem que o Ocidente construiu se deve à ciência e à técnica. Isso, porém, não passa de uma aparência. A vantagem que nos permitiu inclusive chegar à ciência e à técnica funda-se toda ela nessa consciência difusa de que a solidão e o abandono experimentados pelo Cristo na cruz são a nossa verdadeira condição. Sobre este alicerce construímos o resto. Umas vezes para o bem, quando aceitámos a verdade do homem; outras para o mal, quando o medo foi mais forte do que a aceitação.

sábado, 29 de julho de 2017

Haikai do Viandante (329)

Modesto Ciruelos - Abstracción (1975)

terras do levante
paisagens de fogo e mágoa
as cigarras cantam

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Os músicos ambulantes

Tomislav Peternek, Fajront  (Closing time), Fruska Gora, 1962

Quando não chovia, punham-se a caminho. De onde vinham? Há quem diga que não vinham de lado nenhum. Surgiam do nada, mas a opinião é incerta. Nunca ninguém os ouviu tocar. Não há notícia, por outro lado, de terem sido avistados sem ser a arrastar os pesados contrabaixos. Caminhavam, iam de aldeia em aldeia. Evitavam as cidades. Se os cumprimentavam, sorriam, inclinavam a cabeça e seguiam. O nome deles? Não conheço quem o saiba. Talvez uma semana depois de passarem, ouvia-se um diálogo musical entre dois contrabaixos, mas não se via ninguém. Eles? Não me parece. A essa mesma hora eram avistados demasiado longe para que aquela música viesse dos seus instrumentos.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Poemas do Viandante (640)

Eugène Leroy - Mer sombre (1991)

640. o mar é uma flecha

o mar é uma flecha
de sombra
um dardo de dor
na fímbria
do coração
dardeja na pedra
frecha nos campos
adormece
no sal da melancolia

(12/12/2016)

Vida espiritual (2)

Erik Petersen, Copenhagen, 1940-1945

É surpreendente o que a fotografia tem para nos ensinar sobre a vida espiritual. Como no post de ontem, também aqui é acentuada de forma deliberada uma certa qualidade inerente a qualquer fotografia. O que nos é dado a ver, pela escolha de um ângulo inabitual, é que toda a fotografia é perspectivística. Ora não é apenas o olhar que é perspectivístico. Qualquer actividade espiritual do homem implica sempre esse perspectivismo, essa negação de uma apreensão absoluta e de uma posição absoluta. A vida espiritual começa com a compreensão de que o caminho é singular, deliberadamente singular, e um processo de construção de uma singularidade. Aquela que somos.

terça-feira, 25 de julho de 2017

Vida espiritual

Rodney Smith - Skyline, New York, 1992

O que nos ensina esta fotografia sobre a vida do espírito? Para o percebermos é necessário compreender o que ela faz. Toda a fotografia é um corte no tempo, um momento que foi subtraído ao fluxo da duração. Ao olhar a fotografia, percebe-se de imediato que os figurantes estão a encenar esse momento excluído do decurso da temporalidade. Aquilo que qualquer fotografia faz espontaneamente esta fá-lo deliberadamente, como se retornasse sobre si mesma e transformasse a inocência original e espontânea numa virtude adquirida por um longo exercício de ascese. A vida espiritual é essa ascese para tornar deliberado aquilo que um dia foi espontâneo.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Haikai do Viandante (328)

Kees Scherer, Cannes, 1954-1959

o mar de agosto
envolto em areia e espuma
sol e solidão

domingo, 23 de julho de 2017

As Cárites

Sarah Moon - Invite, front (1977)

Sei, claro, o nome delas, mas isso servir-lhe-ia de alguma coisa? Contemple-as, apenas. Houve um tempo em que as viam nuas e entregues à dança. Pode ser que tenham vivido assim, mas também pode ser que isso fosse apenas o desejo de quem julgou vê-las. Hoje, porém, são circunspectas. Uma, inquiridora, olha o mundo como se quisesse interrogá-lo para descobrir algum crime. As outras olham para dentro de si mesmas. O que procuram? Diz-se que elas traziam a alegria, a claridade e o florescimento ao mundo. Talvez procurem esse mundo que se perdeu ou queiram apenas que as esqueçamos no esquecimento que os nossos dias sobre elas fizeram cair.