sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (296)

Paul Caponigro - Monument Valley, Utah (1970)

a rocha cinzenta
desdobra-se em mil portas
segredos de pedra

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Do caminho

Max Klinger - O caminho

Toma-se com frequência o caminho como metáfora indicativa de um percurso de vida, de uma aventura espiritual, de uma demanda da verdade. No entanto, dever-se-ia ser mais sensível à ideia heideggeriana de caminhos que levam a lado nenhum. Esse é o verdadeiro caminho. Não há lado algum aonde ir, nem lado algum de onde sair, pois o lugar de partida e o sítio de chegada são um e o mesmo. 

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

A escolha

Hermen Anglada-Camarasa - As opalas (1904)

Não sei se as sonhei. Há muito que não distingo sonho e realidade. Não é esta o fruto do nosso desejo ou do nosso temor? Sentava-me na varanda e olhava a floresta. Apaziguava-me. Uma noite distingui algumas configurações luminosas, uma luz leitosa com reflexos irisados. O fenómeno repetia-se em noites de lua-nova. Inquieto, decidi ver o que era. Quando me aproximei, descobri seis estátuas femininas. Não soube identificar o material. O coração tremeu ao não perceber de onde vinha a luz que as iluminava. Quando toquei na primeira, ela disse: os teus olhos iluminaram-nos, agora os teus dedos dão-me vida. Escolheste-me.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

A metáfora da criação

Frantisek Kupka - Criação (1911-20)

Normalmente, vê-se a criação do mundo por Deus, narrada no Génesis bíblico, ou como um facto histórico (o fundamentalismo cristão ou outro), ou como uma alegoria onde se transmite, por imagens, o trabalho de Deus na criação do mundo (o cristianismo aberto à modernidade), ou como uma mera ilusão proveniente da superstição (o ateísmo). A criação pode ser vista, porém, como uma metáfora, uma metáfora utilizada para designar algo que não tem nome. 

E o que não tem nome, neste caso, é o mistério da emergência do mundo. A metáfora não diz nada acerca do conteúdo desse mistério. No entanto, ela dá-nos uma indicação. Indica-nos que esse mistério dá que pensar ao homem. Ela não nos diz nada do que se passou, mas diz-nos que isso nos interessa radicalmente. A criação, enquanto metáfora, aponta menos para uma hipotética actividade de Deus no passado e mais para uma preocupação humana sempre aberta ao futuro. A meditação dessa metáfora não é apenas estética. É também existencial. Compromete aquele que medita nela não com uma fé mas com a própria existência. Daí a sua força.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (572)

Franz Marc - Animal in Landscape (Painting with Bulls II) (1914)

572. touros terríveis

touros terríveis
touros
pintam a paisagem
de sangue
e ocre
e no ócio
do seu furor
desenham
um vitral de vidro
uma salina de sal

(09/08/2016)

domingo, 4 de setembro de 2016

Do obstáculo

Béla Uitz - Luta (1922)

Na vida material dos homens, a ideia de luta tem um lugar central. Está associada ao esforço com que alguém pretende realizar um projecto, à sua capacidade de ultrapassar obstáculos e de imprimir, no mundo, a sua impressão. A capacidade para lutar é vista como virtuosa. Na vida espiritual, porém, a necessidade de lutar é ainda o sintoma de um excesso de materialidade e de uma visão de si oposto ao outro e ao mundo. Não se trata de vencer obstáculos, mas de compreender que não existe nem aquele que quer ultrapassar o obstáculo nem o obstáculo a ser ultrapassado. Essa cisão é ainda uma ilusão da vida material. Obstáculo e obstaculizado são uma e a mesma coisa. Não há impressão alguma a imprimir no mundo.

sábado, 3 de setembro de 2016

O regresso

Giorgio de Chirico - O enigma da chegada da tarde (1912)

Sentia-se um velho Orfeu. Não, não era o luto pela morte de qualquer Eurídice. Nem sequer a consciência da sua fraqueza ao não ser capaz de suster a tentação do olhar. Quando a tarde caía, era impelido, como Orfeu o fora para a lira, a sentar-se ao piano. Deixava as mãos perderem-se nas teclas. Improvisava. Na música, doía-lhe o enigma do entardecer. Os sons tornavam-se água, um oceano sem fim. Então, ele entrava no grande navio. Fugia. Fugia do mistério do poente, do enigma do entardecer. O outro lado do mar esperava-o. Chegada a noite, exultava, o exílio terminara. Era a sua pátria.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (295)

Piet Mondrian - Sheepfold in the Evening (1906)

no campo anoitece
as ovelhas no redil
sombra sobre sombra

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (571)

Jackson Pollock - Convergence (1952)

571. moléculas movem-se

moléculas convergem
num oceano
de mágoa
giram e rodam
rodopiam
traçam
um lago
de sombra
no
                silêncio
e na
                solidão

(05/08/2016)

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Inquietações e incertezas

Luis Prades - Ángeles inquietantes (1964)

A inquietação não é apenas um mero estado psicológico. Ela é também uma experiência existencial. A inquietação traduz uma crença profunda alicerçada na certeza de que o mundo é tal como estamos habituados. Quando a realidade se torna incerta, a incerteza traduz-se na inquietação. Deparam-se então dois caminhos ao viandante. O primeiro liga-se à tentativa de recuperar o mundo da certeza, para que a crença não se desfaça e a inquietação desapareça. Este é um caminho reactivo. O segundo caminho funda-se na aceitação da incerteza, no fazer dela a estrada por onde se vai, e aceita que a nossa crença na estabilidade do mundo é uma projecção da nossa necessidade de segurança e nada tem a ver com a realidade. Este é o caminho do espírito, que aprende que o vento soprar onde quer.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Eclipses e conversões

José María Yturralde - Eclipse (1996)

E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. (João 1:5)

O acto da conversão está longe de pertencer apenas ao domínio da religião. Ele é inerente a toda a vida espiritual do homem. Thomas S. Kuhn vê a transição, na ciência, de uma matriz disciplinar a outra como uma conversão, pela qual o cientista passa a olhar a realidade e a ciência de uma outra perspectiva. Encontramos isso também na arte e até em fenómenos mais prosaicos como a política. A conversão é sempre a adopção de um outro ponto de vista. Ela não é, contudo, apenas isso. É também o desfazer de um eclipse, a remoção de um objecto opaco que oculta a fonte luminosa. Não se trata apenas de olhar de outra maneira. A própria luz também é outra. Toda a vida espiritual do homem começa - e continua - com o enfrentar de um eclipse, um eclipse onde um ego obscurece a luz que vem do ipse, de si mesmo.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Encontro no bosque

Carlos Morago - Arboleda (1998)

Os bosques são lugares românticos, tem razão. O sussurro do vento no arvoredo, o rumor da água, o jogo infinito de luzes e sombras. Há muito, porém, que não entro em nenhum. Tenho um ar assombrado? Talvez. O que vou contar guarde-o para si. Numa tarde de Junho entrei num bosque. A certa altura, deu-me sono. Sentei-me e encostei-me a um velho carvalho. Quando acordei vi diante de mim alguém. Era muito velho. À minha volta, as árvores tinham desaparecido, o rio secara, apenas uma erva seca e rala... e aquele velho. Olhava-me. Reconheci-o. Não voltarei a entrar num bosque. Não quero tornar a encontrar-me.

domingo, 28 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (570)

Eusebio Sempere - Ritmo lineal (1953)

570. um ritmo roxo

um ritmo roxo
quasi linear
floresce
no centro da linha
um ponto
uma flor
castelos de cartas
que se abrem
e desabam
desabam
no silêncio da cor

(05/08/2016)

sábado, 27 de agosto de 2016

Cataclismos e catástrofes

Javier Calvo - Cataclismo (1986)

Designamos por cataclismo todas as grandes catástrofes naturais e, por extensão, as sociais. Originariamente, no grego antigo e no latim, o termo estava ligado ao elemento água. Um cataclismo era uma inundação para os gregos e um dilúvio para os romanos. O que terá permitido esta transferência metonímica, onde uma palavra, cataclismo, que designa uma parte das catástrofes, aquelas que estão ligadas à agua, passa a designar todo o tipo de catástrofes, sejam naturais ou sociais? Todas as catástrofes têm um elemento fluido. Nelas, aquilo que é sólido perde a sua solidez e arrasta a vida dos homens como uma enxurrada impetuosa. 

Perante a força destruidora da água, pode-se perguntar que sentido haverá que o cristianismo tenha feito da água - através do baptismo - um símbolo central. A resposta óbvia está ligada às propriedades lustrais da água. Há, contudo, uma resposta menos óbvia e mais funda: aquilo que traz a morte também traz a vida. Cataclismos são catástrofes terríveis e dolorosas, mas são ainda uma forma de a vida se afirmar perante e sobre a dor e a morte. O estado líquido onde o mundo parece encontrar-se, onde tudo o que um dia foi sólido parece desabar, apela ao trabalho do espírito para que, no cataclismo universal em que vivemos, inscreva uma nova vida.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Correspondências

Georges Braque - O porto de Havre (1903)

Os portos são lugares especiais, não tanto por estarem ligados à navegação, mas porque condensam em si experiências que se transformaram, ao longo dos milénios, em símbolo da vida espiritual. Esta é feita de partidas e de chegadas. Também nela o viandante aporta, por instantes, em lugar seguro, para depois retomar a viagem num ambiente tão fluido e perigoso quanto a água. É esta correspondência entre a vida material e a vida espiritual que torna cada porto num lugar de fascínio  de rememoração.

Metamorfoses

Paula Rego - Bad Dog (1994)

Melhor fora que tivesse o destino de Gregor Samsa, mas isso só o descobri muito mais tarde. Agora isto... Chegar à consciência e ter palavras. Sinto já saudades dessa vida anterior, onde tinha tudo. Não é que o merecesse. Nem sempre me comportava conforme o esperado, mas a minha natureza justificava tudo. Uma manhã acordei e já não conseguia latir. O meu corpo tinha crescido e na minha boca formavam-se palavras. Levantei-me confuso. Um espelho devolveu-me uma imagem. Percebi que era eu. Não o cão que sempre tinha sido, mas um ser humano. Pior, cheirei-me e confirmei o que vi no espelho. Eu era a minha dona.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (569)

Antonio Rojas - Caminos de luz (1996)

569. a cisterna da solidão

a cisterna da solidão
enche-se de luz
tão líquida
e tão leve
se as primeiras
chuvas
do outono
trazem de
contrabando
um punhal de sol
uma lua de inverno

(04/08/2016)

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Criar contrastes

Doménec Pascual Badía - Contraste (1970)

Contrastar é uma das acções fundamentais da vida do espírito. Criar um contraste é tornar claro a diferença, retirar algo da névoa da indiferença. Criar, através do acto de contrastar, oposições não é criar conflitos, mas determinar os opostos que, ao diferenciarem-se, se harmonizam. Na vida do espírito, a harmonia nasce da oposição, do contraste, da diferença.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Haikai do Viandante (294)

JCM - Rio Cávado (2016)

no sol de verão
um rio desliza entre montes
água azul e verde

domingo, 21 de agosto de 2016

Jardins e festas

Louis Valtat - Festa no jardim (1888)

O jardim é um símbolo fundador da cultura ocidental. A dor e a morte vêm com a expulsão da humanidade do jardim do Éden. Facilmente se entende a ligação entre jardins e festas. O jardim, ao contrário do espaço que lhe é exterior, é o lugar da felicidade e do prazer inocente, o sítio da festa. Sempre que as festividades humanas se realizam num jardim, há como que uma actualização da felicidade mítica  e do prazer inocente perdidos. Toda a viagem do homem é, em última análise, uma demanda do jardim originário de onde se sente expulso.

sábado, 20 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (568)

Antonio Rojas - Autentica linea de sombra (1996)

568. na lâmina do perigo

na lâmina do perigo
resvala a linha
risca uma 
sombra
entre a luz
da queda
e a noite
da redenção

(04/08/2016)

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Voltar a si

Mery Sales - Ensimismados (1996-99)

Voltar-se para si mesmo - encerrar-se em si - pode ser sinal de uma patologia, o resultado de uma incapacidade de lidar com os outros e o mundo, o medo do estranho e do ameaçador. O ensimesmamento pode ser, contudo, um processo de cura espiritual, um retorno a si para ultrapassar as múltiplas cisões que o mundo impõe. Mais do que um encerrar-se em si será um voltar a si, um retorno a casa para, de um outra forma e ultrapassada a fragmentação, viver com os outros e no mundo. Onde reside o perigo reside também a cura.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Haikai do Viandante (293)

Javier Martinez de Aguirre - Árbol caído

árvore caída
sobre as águas da ribeira
a vida floresce

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

A sombra da solidão

Ernesto Murillo - A través del muro (1997-99)

Foi aqui que cheguei. Outros foram longe, muito longe. A vida corre-lhes bem. Invejo-os? Em tempos, pensei que sim. Hoje, não. A vida brilhante, o mundo como palco onde representam o seu papel. Nunca tive talento para o teatro e a sociedade exige-o. A princípio nem dei por isso, mas lentamente percebi que tinha optado. Fechei-me neste lugar onde não precisava de representar. Foram-me esquecendo, mas eu nunca os esqueci. Com paciência, escavei um buraco no muro. É de lá, sem que me vejam, que os observo. Tornei-me um voyeur. Sou a sombra que os assombra. A minha solidão é a sombra da sua solidão.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (567)

Charles Marq - A un poète (1984)

567. a poesia é um

a poesia é um
vestígio de luz
a cilada sombria
vinda da terra
o vértice onde dobro
e desdobro
a língua e
uma sílaba
bebe-me o sangue
e canta na secura
do deserto

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Liberdade e solidão

Joan Abelló i Prat - Competición motorista en la Isla de Man (1967)

A vida social é marcada por duas orientações que, aparentemente, entram em choque: a competição e a cooperação. Na verdade, estas formas de viver em sociedade referem-se à necessidade de adaptação ao meio que é dado ao homem para viver. A liberdade está, todavia, para além do competir e do cooperar. Começa na assumpção da solidão como ponto de partida da vida do espírito, a qual não se coaduna nem com o fascínio competitivo nem com o instinto gregário do rebanho. A liberdade, como tudo o que é essencial na vida espiritual do homem, exige o confronto com a singularidade de si mesmo e a solidão que essa singularidade exige.

domingo, 14 de agosto de 2016

O jogo de xadrez

Paul Ackerman - La partie d'échecs

Umas vezes ganha ela; outras, eu. Amei-a? Já não me recordo. O tempo passa e a memória compõe fábulas para aliviar a consciência. De um momento para o outro, descobrimos o xadrez. Dispomos as pedras em silêncio, depois jogamos. Não precisamos de falar. Com o passar dos anos, todos os nossos contactos se resumiram ao jogo. Casámos, descobrimo-lo há muito, para um jogo sem fim. Em cada cheque-mate o meu coração vibra de alegria, como se a matasse. Quando ganha ela, os seus olhos vitoriam a minha morte. O importante é não empatarmos. Isso seria uma espécie de acordo, a destruição da guerra que nos une.

sábado, 13 de agosto de 2016

Sob o império dos objectos

Carlo Carra - Ritmi di Oggetti (1911)

Presos ao fascínio dos objectos, mede-se, de forma pouco meditada, o vigor espiritual de uma civilização pelos objectos nela produzidos ou, quando objectos naturais, por ela valorizados. Os objectos, contudo, possuem os seus próprios ritmos e estes estão longe de ser os ritmos do espírito humano. Seduzidos pelo dinamismo das coisas, os homens esquecem o seu próprio ritmo e alienam-se a si mesmos, ao sujeitar a sua vida espiritual ao ritmo das coisas. Tornam-se, sob o império dos objectos, coisas entre coisas, objectos entre objectos.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (566)

Maria Helena Vieira Da Silva - Batalha de vermelhos e azuis (1953)

566. vermelhos ao vento

vermelhos ao vento
eriçados na
angústia do azul
marcham pelo campo
e esperam
a fénix ou a esfinge
ou a grande batalha
a vir nos dias
de calor
a vir nas chuvas
de inverno

(04/08/2016)

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A cegueira de Édipo

André Masson - Édipo (1939)

Das múltiplas peripécias da vida de Édipo, a mais decisiva de todas é a que ocorre quando ele se cega. Nem o abandono à morte pelos pais, nem o salvamento miraculoso e a subsequente adopção por Pólibo, rei de Corinto, nem o assassinato do verdadeiro pai, tão pouco a derrota da esfinge e o casamento com a sua mãe e a coroação como rei de Tebas possuem o significado espiritual da cegueira auto-infligida. Em todos os momentos anteriores, Édipo move-se segundo o senso comum que pertencia à sua casta. E esse mover-se no que é comum está intimamente ligado ao seu desconhecimento de si mesmo. A revelação da identidade tonou-o cego para o que é o comum, tornou-o indivíduo e abriu os seus olhos para uma luz que não é visível. Édipo, ao cegar-se, tornou-se indivíduo e sábio. Abandonou o caminho do herói, a procura da glória, e a vida do espírito, como um caminho apenas seu, abriu-se diante dele.