segunda-feira, 27 de junho de 2016

Poemas do Viandante (555)

Modesto Ciruelos González - Abstracção (1975)

555. ergue-se o texto

ergue-se o texto
da textura
do papel
um traço de noite
uma mancha
maculada
de tinta e trevas
e uma nuvem
de sentido
cobre e descobre
a luz tão lenta
e quase luminosa

domingo, 26 de junho de 2016

Mudanças

Ludwig Meidner - Revolution (1912)

Eram outros tempos e eu... eu era outro. Tem razão, somos a cada instante outros, mas há um momento em que tomamos consciência de uma alteração nas nossas crenças. Eu acreditava na revolução. Um instinto ancestral acendia-se em mim perante as multidões e o esvoaçar das bandeiras. Não fez essa experiência? Então não pode compreender. Como é que mudei? Diz-me que perdi a fé em revoluções e, por isso, mudei. Está enganado. Foram as revoluções que perderam a fé em mim. Fui abandonado pelo espírito revolucionário e deixei de sonhar com bandeiras. Agora vejo o tempo passar e só espero que passe lentamente.

sábado, 25 de junho de 2016

Tempestade

Jeffrey Smart - Approaching storm by railway (1955)

Pode-se olhar a tempestade do ponto de vista estético e encontrar nela a encarnação do sublime. Pode-se encará-la do ponto de vista ético como um teste à coragem daqueles que por ela são apanhados. O sublime e a coragem, porém, estão longe de ser o essencial ao atravessar a tempestade. A revelação fáctica da nossa fragilidade e da nossa finitude são o fundamental e é essa revelação que permitirá fazer a experiência plena do extraordinário que irrompe do ordinário, do extra-normal que irrompe na norma. A tempestade é um lugar de epifania.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Música e vida

John Yardley - A break in Rehearsal

Tome-se a música como uma metáfora da vida. Na analogia que sustenta a metáfora, porém, há que considerar apenas  a ideia de um fluir dos sons de um princípio em direcção a um fim. Aquilo que se deve excluir, porém, é a ideia de ensaio. Os músicos ensaiam uma e outra vez até chegarem ao palco. Nós caímos no palco e sem qualquer ensaio temos de levar o concerto ou a sinfonia do princípio até ao fim. Sem pauta e, muitas vezes, sem maestro.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Poemas do Viandante (554)

Antonio Tápies - "70"

554. números são navios

números são navios
no deserto
onde te espero
palavras perdidas
na rua
e no rumor
do desespero
uivos que uivam
no silêncio
e
na cinza dos ciprestes

quarta-feira, 22 de junho de 2016

A santíssima trindade

Raoul Dufy - The Three Umbrellas (1906)

Noutros tempos chamavam-lhes sombrinhas. Ainda há quem chame? Pois, não sei. Estava retirado do convívio com o mundo, como sabe, e comecei a perder as referências. Como lhe dizia, aquelas sombrinhas eram a minha santíssima trindade. Daqui, aguardava, que sob a inclemência do sol, elas passassem. Vinham como uma promessa. Sempre pela mesma ordem. Aqueles chapéus-de-sol eram uma bandeira, a bandeira da minha pátria. Passavam lentamente. Por vezes, trocavam breves palavras com alguém conhecido. Nunca lhes vi o rosto. Oh não, não era Eros que falava em mim. Passavam e eu sentia-me salvo no vexame da minha prisão.

terça-feira, 21 de junho de 2016

Um corpo a corpo

Thomas Hart Benton - Boxing match (1930)

Um corpo a corpo, um combate de boxe, e não o refúgio numa hiper-realidade ou num qualquer além que a imaginação humana, demasiada humana, está sempre pronta a criar para nos proteger da crueza da existência. Falo da vida espiritual, seja qual for o âmbito em que esta se desenrole. Não é uma fuga mundi, mas um estar no mundo. Não é o lugar da paz mas o da espada. Começa sempre com um corpo a corpo consigo mesmo. A vida espiritual não é tema para revistas cor-de-rosa.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Relógios e rios

André Louis Derain - Big Ben (1906)

Não percebe por que falo da sensatez dos londrinos? Não sei onde li, se é que alguma vez a li, a ideia de que todos os relógios trazem consigo um princípio de irrealidade. Não está a compreender? A questão é simples. Os relógios obedecem a uma lógica cíclica. Os ponteiros retornam, no tempo aprazado, ao mesmo lugar, como se fossem uma promessa do eterno retorno do mesmo. Veja, porém, como o Big Ben se combina com o fluir do rio. Para que não nos deixemos embalar pela doce ilusão da eternidade, o fluxo das águas, com a palavra de Heraclito ao longe, lembra-nos, sensatamente, minha amiga, que não mais viveremos este momento.

domingo, 19 de junho de 2016

Poemas do Viandante (553)

Manuel Quejido - 24 Levitaciones (1972-73)

553. leves levitam

leves levitam
os levitadores
e o tempo
breve
em que puros
se erguem
aos céus
pára imponderável
na mão
que lavra na terra
a queda
dos graves

sábado, 18 de junho de 2016

Ser ninguém

Frantisek Kupka - Elogio (1912, 1919-23)

Não sei o que lhe diga. Acha, então, injusto a ausência de um elogio. Dar-lhe-ia ânimo e, diz-me, precisa de ânimo. Compreendo a sua necessidade de reconhecimento, mas não partilho a carência. Não pense que sobre mim caem elogios. Não caem, pode crer. Aliás, faço tudo para que não cheguem. Se alguém me faz um elogio, eu agradeço. Prefiro, porém, que o evitem. Não quero ser reconhecido? Um dia aspirei a isso, mas o tempo ensinou-me outra coisa. Mais importante do que o reconhecimento é ser desconhecido, é ser ninguém. Quando você, um dia, for ninguém, talvez mereça um elogio. Talvez.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Haikai do Viandante (286)

Charles Bentey - A Squall Approaching the Northern French Coast

cai a tempestade
sobre a costa fria e pálida
aves à deriva

quinta-feira, 16 de junho de 2016

O anjo músico

Raúl Soldi - Ángel músico I (1960)

Também eu duvidava da história. Ouvi-a, tal como o meu amigo, por acaso. Aos domingos, antes de almoço, ia ao café. Numa dessas idas, sentei-me na mesa habitual. Ao lado, alguém contava o episódio. O homem fremia de excitação e falava, como acontece nessas ocasiões, alto. Desisti de ler o jornal e sorri da fábula do anjo. Quando cheguei a casa, naquele tempo vivia sozinho, ouvi uma estranha música. Estremeci, o som chegava do meu quarto. Ao abrir a porta, deparo-me com um anjo a tocar violoncelo. Sentada na borda da cama, uma mulher. Nunca a vira. Sobre o anjo músico não tenho provas. Quanto à invasora desconhecida, acabei por casar com ela.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Poemas do Viandante (552)

Georgia O'keeffe - The dark iris nº II (1926)

552. um frio quase

um frio quase
frívolo
desce em mim
trazido no vento
do verão
no sopro
resplandecente
dos lírios irisados
de luz e maio

terça-feira, 14 de junho de 2016

Composição cósmica

Oscar Dominguez - Composição cósmica (1938)

Olhamos o mundo e tomamos aquilo que apreendemos como sendo a realidade objectiva. Não vemos que grande parte do que chamamos real é trabalho do nosso próprio espírito. O mundo para nós não passa de um grande trabalho de tecelagem, a realização das nossa faculdades sob o efeito dos estímulos externos, um exercício espiritual, aparentemente, espontâneo, um trabalho de composição cósmica.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

A grande batalha

Yves Klein - La Grande Bataille

Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá. (João 14:27)

A vida é entendida, muitas vezes, através da metáfora da guerra. É compreendida como uma sucessão de batalhas. Por maiores que sejam os conflitos que um ser humano atravessa na existência, está ainda perante pequenas batalhas. A grande batalha é a da paz que foi doada aos homens, lhes foi deixada em herança. Grandes são os perigos que ela traz consigo, pois o maior dos perigos está ligado ao que é misterioso, e nada é mais misterioso do que essa paz que o homem herdou e que o mundo não compreende.

domingo, 12 de junho de 2016

A dinâmica das formas

Gino Severini - Dinamismo de formas

A arte capta muitas vezes aquilo que é o núcleo essencial da vida do espírito. A dinâmica das formas é o sinal de que a vida espiritual não encontra repousa em qualquer forma em que se manifeste. O espírito instaura uma forma e logo encontra nela um limite que anseia ultrapassar. Incansável, deixa-se guiar, na vida formal que é sempre a sua, pelo desejo daquilo que não tem forma e, dessa a-formalidade, chama por ele.

sábado, 11 de junho de 2016

Poemas do Viandante (551)

Friedl Dicker - Forme négative et forme positive dans un champ de force (1941)

551. sou um sim

sou um sim
ao dizer não
e tudo o que digo
se o digo
se o calo
se o trago em mim
ainda é
um não
que me diz
sou assim

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Um study case

Elmer Bischoff - #1 (1974)

Produz conhecimento, investiga, diz-me. Desculpe o sorriso impertinente. Também eu acreditei que era possível conhecer a realidade. Não, não era uma visão ingénua. Parece, porém, que sou um study case. Como foi, pergunta-me. Que lhe hei-de dizer? Primeiros as cores perderam a constância. Depois, os contornos começaram a desaparecer e as formas, falo das formas das coisas, ficaram fluidas. A realidade - não ligue ao meu sorriso - espacial tornou-se uma amálgama, onde nada é discernível. E agora está aqui e quer saber o meu segredo. Como me oriento? Não me oriento. Ajo ao acaso e espero acertar. Não é isso que acontece também consigo?

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Haikai do Viandante (285)

Lyonel Feininger - Blue Coast (1944)

azul sobre azul
barcos rendidos ao mar
ventos de verão

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Mito e liberdade

Ker-Xavier Roussel - Cena mitológica

Por muito que a razão se esforce, por muito que ela reivindique a supremacia e a legitimidade, uma legitimidade fundada no conhecimento e, não menos, na técnica, o mito acaba sempre por retornar e invadir a cena do mundo. Com ele triunfa, uma e outra vez, a ambiguidade, a pluralidade de sentidos, as múltiplas possibilidades. Muitas vezes pensa-se que a liberdade está ligada à ordem moral da razão. Podemos, porém, contar outra história e vê-la emergir na plurivocidade que nasce do mito, como se este fosse uma fonte, frágil e equívoca, de onde nascem diversos e caudalosos rios, os quais se abrem à livre navegação.

terça-feira, 7 de junho de 2016

Poemas do Viandante (550)

Mario Merz - Alga (1995)

550. na água viva

na água viva
de uma alga
cresce
alucinada
e lenta a luz
das ondas
do mar de vigo
das flores de
verde-verde pino
     ai deus i u é
e ai deus se verrá cedo
     ai deus i u é

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Pregadores da vida beata

Lucio Muñoz - 8-86 (1986)

Tempo lamentável este. Não por ser uma época de desolação, embora o seja. Enquanto a ruína cresce aos nossos olhos, também não param de crescer os vendedores de beatitudes. A cada esquina, até nos lugares mais insuspeitos e outrora dignos de respeito, se ouve apregoar a venda da felicidade, aquela que espera por si ao virar da esquina. Não deixa de ser paradoxal que, no momento em que a actividade espiritual do Ocidente mais se retrai, a pregação da vida beata atinja um insuportável paroxismo.

domingo, 5 de junho de 2016

Construtores de labirintos

Felo Monzón - Construção (1975)

Podemos pensar na vida como uma construção. Não dessas construções que trazem o reconhecimento dos outros, mas a construção de um labirinto. De um labirinto secreto, como o devem ser todos os labirintos. Construímo-lo para podermos encontrar o Minotauro. Para o matar? Não. Para nos reconciliarmos com ele, isto é, connosco.

sábado, 4 de junho de 2016

Europa: escutar os mitos

Fernando Botero - Rapto de Europa (1955)

Nunca devemos deixar de interrogar os mitos. Têm sempre alguma coisa a dizer a quem anda perdido no caminho. Também hoje a Europa está a ser raptada por um deus impetuoso. A Europa é o conjunto de valores espirituais que durante séculos se tornaram uma marca distintiva no reino do espírito. Não sabemos, porém, o que se esconde sob a figura do touro. Será ainda um deus que assim nos fala ou é antes um emissário da morte que nos anuncia um fim e nos vem dizer que os nossos valores caducaram e que o espírito se retirou para outras paragens?

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Poemas do Viandante (549)

Markus Luepertz - Composicón en gris (2001)

549. componho na cinza

componho na cinza
do cinzento
um veneno
feito de cianeto e
líquidas violetas
a escorrer
no violão da tarde

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Haikai do Viandante (285)

Paul Cézanne - Houses on the Hill (1900 -1906)

casas na colina
crescem dentro do verão
sombras tão sombrias

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Caminhar por caminhar

Isabel Villar - Ciclistas llegando a la meta (1964)

Uma boa educação prepara a nova geração para colocar e atingir metas. Ter um objectivo na vida e lutar por ele. E nisto está tudo o que a sociedade pode desejar. É isto, caso se alcance o objectivo, que se chama sucesso. Mas se o essencial não for chegar a uma meta, mas antes dissolver metas, libertar a vida de objectivos, deixar que o vento sopre onde quiser? E se não houver mesmo meta alguma para alcançar? Se a finalidade não passar de uma ilusão? Para que servirá tal educação? Não seria melhor que se aprendesse a caminhar apenas pelo caminhar?

terça-feira, 31 de maio de 2016

Portas e metáforas

Pierre Bonnard - La Porte Ouverte (1910)

A porta aberta funciona muitas vezes, fundamentalmente, na linguagem corrente, como uma metáfora. Esta contaminação pela linguagem quotidiana roubou-lhe o brilho metafórico. No entanto, a expressão continua a ser essencial para compreender a própria metáfora. Esta é interpretada, por norma, na base da analogia. Se dissermos, porém, que a metáfora é uma porta aberta, talvez estejamos mais perto de perceber o que nela se joga. Semeadas no texto, as metáforas são portas por onde entramos num outro mundo, num mundo que a literalidade esconde ao espírito mas que este, através, dos ardis da imaginação abre, para que neles possamos encontrar o nosso lugar.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Poemas do Viandante (548)

Mark Tobey – À Cheval la Nuit (1958)

548. um cavalo cavalga

um cavalo cavalga
a noite
relincha na sombra
escura e estreita
ergue o
peito ao voo
da águia alada
e galopa
com asas de névoa
as
noites de novembro

domingo, 29 de maio de 2016

O jogo do afastamento e do retorno

Giorgio de Chirico - Ritorno del fliglio prodigo (1965)

O jogo do afastamento e do retorno ocupa um lugar central na vida dos homens. O afastamento significa a ruptura com a inocência originária, uma inocência feita de inconsciência, de não conhecimento, de ignorância. A ruptura abre o homem para a experiência e para os limites que esta lhe mostra. Tendo experimentado os limites, o homem retorna a si, à sua inocência. Agora, porém, a uma inocência que conhece a culpa e que se torna continuamente inocente. Uma inocência que sabe o que são as mãos sujas. Uma inocência que, conhecendo a culpa trazida pela experiência, sabe que a bela alma da inocência originária é uma ilusão. A parábola do filho pródigo não trata de outra coisa.