sábado, 14 de maio de 2016

Poemas do Viandante (544)

Thomas Cole - Expulsión. Luna y luz de fuego (1828)

544. o fogo: água

o fogo: água
gélida e fria
corre nas veias
e sangra
ensanguentado
                vertigem veloz
e
sedento
fulgura no
incenso da invernia

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Idade de ouro

André Louis Derain - L'âge d'or (Paradis terrestre, la chasse) (1939)

A temporalização do mito da idade de ouro assume uma dupla perspectiva. Para os não-modernos, a idade de ouro reside no passado e, para o homem, ela é uma reminiscência. Para os modernos, a idade de ouro está no futuro, no que há-de vir. É uma expectativa. O que faz, porém, a pregnância do mito da idade de ouro, ou de qualquer outro, é a sua não ligação ao tempo. O mito não remete nem para o passado nem para o futuro, mas para a vida interior e espiritual do homem. Não há idade de ouro fora de si-mesmo, fora da coincidência de si consigo mesmo. Aí, o mito toma a figura da promessa e da aliança.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Poemas do Viandante (543)

Philip Guston - Outono (1950)

543. outono rimo-o com

outono rimo-o com
abandono
e na folha que
se desfolha
na cerejeira vejo
a mão do dono
aberta
para o ramo
onde s’amarra
o touro d’outono

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Nenhuma casa

Filippo de Pisis - Paisagem alpina com casa (1927)

Olho a casa de longe, e tudo é pura memória, esteira que a partida abre sobre o mar rumoroso da montanha. O ar frio gela-me os pulmões, mas caminho. Não posso voltar atrás. Não tenho para onde voltar. A casa, aquela onde nasci, tornou-se-me estranha. Ainda ontem eu chamava-lhe, bem alto, a minha casa. A noite, porém, desceu sobre ela. De manhã, o velho corvo estava morto. A casa tremeu sob o ranger da mobília. Sombras corriam pelos quartos. Uma voz, tão escura e tão rouca, nunca a ouvira, soou imperativa: pensas que esta é a tua casa? Vai-te! O corvo está morto e nenhuma casa é a tua casa. Não voltarei.

terça-feira, 10 de maio de 2016

O bezerro de ouro

Emil Nolde - Danza alrededor del becerro de oro (1910)

A dança à volta do bezerro de ouro. Não se trata de dançar em torno de um ídolo material, da estátua de um animal elevado à condição de um deus. Trata-se de dançar em torno de si-mesmo, não para chegar ao interior de si, mas para se tomar como o ídolo que se deve, a cada momento da vida, adorar. O bezerro de ouro não existe fora do homem. Habita-o, é esse hóspede indesejável a quem, quando tomamos a palavra, nos referimos como eu.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Céu negro

Jacqueline Lamba - Ciel Noir (1986)

A tonalidade negra do céu anuncia um fenómeno tempestuoso, mais ou menos intenso, mas sempre em contradição com o que o hábito faz desejar ao homem como normal. Na vida espiritual, porém, a ruptura com a normalidade, o pôr em causa o hábito e o desafio das rotinas é um elemento central na criação de alguma coisa que torne a vida mais digna de ser vivida. O céu negro ou a negra noite do espírito são, desse modo, não o pronúncio de uma desgraça, mas o sinal de que uma graça se apresta para descer sobre o homem.

domingo, 8 de maio de 2016

Poemas do Viandante (542)

Elmer Bischoff - #88 (1985)

542. caem as cores

caem as cores
na inocência
da tela e
abrem círculos
para que estrelas
desçam por
elas e
sejam sombra
verde e  laranja
na cintilação
da infância

sábado, 7 de maio de 2016

A elasticidade da vida

Umberto Boccioni - Elasticity (1912)

Podemos sempre pensar que a vida quotidiana, com o seu cortejo de necessidades, logros e submissões, é um exercício contínuo de deformação, no qual as forças exteriores se conjugam para distorcer a figura humana. A vida espiritual, seja qual for o seu âmbito, é a prova da elasticidade do indivíduo, a propriedade de restaurar na sua forma originária o que vida deformou e tornou disforme. Se esta esta vida espiritual, porém, estiver completamente morta, o destino do disforme é a monstruosidade.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Em configuração

Joost Schmidt - Estudio de una figura (1930)

Chegar à sua própria figura, configurar-se, é o destino daquele que foi lançado na vida. A vida espiritual dos homens não é outra coisa senão uma preparação da sua figura, um conjunto de ensaios e erros até que, inopinadamente o rosto, o seu verdadeiro rosto, brote na luz da clareira. Configurado, o viandante lança-se de novo ao caminho. Novas configurações o esperam.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Numa noite de Verão

Edvard Munch - Os solitários (1907)

As noites de Verão são propícias a acontecimentos singulares. Tão estranhos que aqueles que os vivem preferem esquecê-los. Também eu quis esquecer o que me aconteceu numa dessas noites de calor. Não fui, não sou capaz. Resignado, sento-me e deixo-me assaltar pela memória. Ela, que vi mil vezes na sua beleza vibrante, ali tão perto e tão tocável. Caminho ao seu encontro, o coração descompassa-se ansioso, um cão rosna ao longe, e a minha mão desce para o seu ombro, tão branco. Toco-lhe e sinto a pele a deslizar nos meus dedos. Ela vira-se lentamente. Ainda hoje não me atrevo a contar o que vi.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Haikai do Viandante (283)

Jean François Millet - A Primavera (1868-1873)

um céu de carvão
desce sobre a primavera
água e sol na terra

terça-feira, 3 de maio de 2016

A tempestade interior

Edvard Munch - The Storm (1893)

A tempestade é sempre um desafio que a vida coloca ao homem. Não propriamente a tempestade exterior, a exibição de violência e desarranjo dos elementos climatéricos, mas a tempestade interior, aquela que se abate sobre o homem, quando ele menos espera. Ao desarticular as estruturas em que uma vida se tinha consolidado e tornado em mera rotina, a tempestade interior abre o caminho para si mesmo, caminho alienado nos hábitos quotidianos.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Do caminho e da viagem

Gonzalo Torné - Camino infinito II (1997)

A viagem que cabe a cada homem parece finita, mas o caminho é sem fim. A natureza infinita do caminho pode significar que este é tão amplo que suporta todas as viagens finitas do homem. Pode ser sinal, porém, de outra coisa: tal como o caminho é infinito, também a viagem que cabe a cada um não tem fim.

domingo, 1 de maio de 2016

Poemas do Viandante (541)

Franz Marc - Blue Horse with Rainbow (1913)

541. Cavalazul

um cavalazul
galopa
veloz e vítreo
sob a chuva
verdanil
de um verão
levedado
na estrela do sul

sábado, 30 de abril de 2016

Dos náufragos

Andrés Cortés Aguilar - El Naufragio

É a condição de náufrago aquela que melhor retrata a situação do homem no mundo. O que nos ensina acerca da condição humana a metáfora do naufrágio? Duas coisas. A primeira, a mais evidente, mostra-nos que a linha que separa a vida da morte está sempre pronta a partir-se. A segunda, a mais surpreendente, mostra-nos que, tal como a água não é o elemento do homem, o mundo, onde ele é um eterno náufrago, também não é a sua casa.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Da ansiedade

Max Klinger - Ansiedade

A ansiedade é o sintoma, senão um símbolo, de um forte apego aquilo que é exterior e não se controla. Nela inscreve-se a vontade de domínio. Uma vontade de domínio defraudada e ultrapassada por tudo aquilo que a vida traz e não é dominável. A ansiedade é sempre o sinal de uma ilusão, a ilusão de um poder que se deseja possuir mas que não existe.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

A luz da clareira

Jacqueline Lamba - Clareira (1942)

A clareira é o lugar onde se manifesta aquilo que a sombra oculta. Trazer à luz da clareira é o fim supremo que se coloca à vida dos homens. É na clareira que o que nunca foi pensado, o que nunca foi dito, o que nunca foi descoberto ganha vida. Cada homem, porém, é para si mesmo o mais difícil de trazer à luz da clareira.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Da janela e da porta

Raoul Dufy - Open Window (1928)

A janela é um lugar de transição entre o mundo interior e o mundo exterior. Como metáfora de uma fronteira é, todavia, diferente da porta. A porta convida ao exercício da entrada e da saída, ao jogo da acção, à mudança contínua entre mundos. A janela, por sua vez, traz consigo uma dimensão mais espiritualizada. Apela à contemplação. E é nela que o viandante encontra a viagem mais difícil e a que contém os maiores perigos. 

terça-feira, 26 de abril de 2016

Poemas do Viandante (540)

Arshile Gorky - Agonia (1947)

540. Agonia

a luz destila-se
em raios
vermelhos
rubros
estrelas
de sangue a
regurgitar
a noitiagonia

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Dia de festa

Raoul Dufy - Dia de Festa (1906)

A cidade esqueceu-se de si e abriu-se a esta gente que festeja. O quê? Ele já nem sabe. Talvez um santo, talvez a história, talvez outra coisa qualquer. Pouco lhe importa. Caminha só entre as pessoas e vê nos seus olhos um brilho baço, uma luz sombria que choca com a sua solidão. Também ele festeja. No silêncio a que se abandona, ouve uma música que o chama. Então começa a dançar perante os olhos atónitos de quem o vê. Ergue-se nos ares, rodopia e todo o seu corpo é vertigem na noite. Fazem um círculo à volta da sua solidão e ele dança, dança com a noite, com o frio, dança consigo até que, exausto, se deixa cair nos braços que, para o aparar, a morte lhe estende.

domingo, 24 de abril de 2016

Haikai do Viandante (282)

Pierre Bonnard - Premier printemps (1908)

chega a primavera
desce dos céus uma luz
ilumina a terra

sábado, 23 de abril de 2016

Da loucura

Alfonso Daniel Rodríguez Castelao - A louca do monte (1912

Em cada ser humano habita a loucura, um princípio de irrazoabilidade. Perante ela, desenham-se três caminhos. O de se deixar submergir pela loucura. O de derrotá-la, recalcando-a dentro de si mesmo, como uma grande e ameaçadora sombra, cujo nome sequer se pode pronunciar. O de estabelecer uma aliança com a sua própria loucura e utilizá-la como a energia que a viagem necessita para se abrir a sempre novas realidade.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Poemas do Viandante (539)

Paul Klee - A garden for Orpheus (1926)

539. na lira de orfeu

na lira de orfeu
ouvem-se aves
no jardim
uma canção
de vento
o vendaval
que se ateia
e te leva daqui

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Da risibilidade

Edward Hopper - Two Comedians (1965)

A velha distinção aristotélica entre tragédia e comédia diz que a primeira trata dos homens superiores e a segunda, dos inferiores. O brilho desta distinção poderá fazer cair num equívoco aquele que se entrega a uma vida do espírito. Não é porque se é um ser superior que as coisas espirituais lhe cabem. É porque se é inferior, risível e se tem a plena consciência dessa risibilidade que se abre um caminho espiritual. A plena consciência dessa natureza digna de ser satirizada e ridicularizada é condição necessária para uma vida espiritual, seja qual for a sua dimensão. Saber que se é digno do riso dos outros é o ponto de partida para a viagem de descoberta de si.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Um monte de cinzas

José de Togores - Figura escondiéndose (1925)

Pousou a cabeça sobre a mesa. A noite chegara ao fim, todos tinham saído. Adormeceu. Sonhou consigo mesma. Desejou desaparecer, fundir-se na matéria do mundo, apagar todas as pistas que, durante a vida, deixara. Havia, no sonho, um grande arquivo. Ali procurou por tudo o que lhe dizia respeito. Queimava o que ia encontrando. Folha a folha, a sua vida ardia. Uma combustão lenta e dolorosa e, ao mesmo tempo, uma experiência única de libertação. Ardia na liberdade assim descoberta. Quando de manhã, como era hábito, a empregada entrou no quarto, tudo estava em silêncio e a cama por desfazer. Sobre a mesa, porém, erguia-se, ainda quente, um monte de cinzas.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Da vida interior

Antonio Guijarro - Interior

Muitas vezes opõe-se a vida interior à vida exterior, como se a primeira fosse um lugar muito mais pacífico e paradisíaco do que a segunda. Ora o mundo interior de cada um pode ser bem mais caótico do que o exterior. Toda a vida espiritual, nas suas diversas dimensões, não é mais do que a luta contra o caos que nos habita, a busca por uma ordem que constantemente ameaça ruir e arrastar-nos para o abismo.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Um furacão contínuo

Gaspard Dughet - O Furacão

O hábito linguístico tornou corrente tomar o furacão como imagem das grandes perturbações da vida. Esta imagem - ou esta metáfora já morta - tem um efeito consolador e tranquilizador, pois esconde que a vida, e não apenas uma parte dela, é uma grande perturbação, um furacão contínuo, contra o qual não há defesa possível. Resta apenas o silêncio interior para que o redemoinho das coisas encontre o seu lugar.

domingo, 17 de abril de 2016

Noites portuárias

Caspar David Friedrich - Porto de noite (1818)

A viagem espiritual dos homens, como qualquer outra viagem, é feita de partidas e chegadas. Também ela vive dos grandes portos e dos cais de embarque. E é nessas noites portuárias, de onde a luz desapareceu e apenas se ouve o marulhar das águas nos cascos das embarcações, que um novo sentido emerge e um novo destino se desenha para aquele que, acabado de chegar a terra, se dispõe já a partir.

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Poemas do Viandante (538)

Lee Krasner - Abstract #2 (1946-48)

538. abstracta sombra

abstracta sombra
semeia
o terrível
ao irromper
de súbito
pelo terror
secreto
da assombração

Visões nocturnas

Joan Miró - Nocturno (1940)

As visões nocturnas, a noite escura da alma de que falava João da Cruz, são, num primeiro olhar, o negativo, em sentido fotográfico, das visões luminosas, aquilo que, verdadeiramente, permite estas. Na verdade, porém, elas são outra coisa. São o encontro com a própria luz, que de tão intensa torna tudo obscuro.