segunda-feira, 11 de abril de 2016

De sombra em sombra

Paul Ackerman - Les choses deviennent peut-être plus claires dans l'ombre

A sombra não é o lugar do sombrio e do ameaçador para o homem. É, na verdade, o lugar cuja luz o homem pode suportar. Quando João, o Evangelista, escreve a luz resplandeceu nas trevas, e as trevas não a compreenderam, estava a dizer isto mesmo: o homem não suporta a luz mais pura. O seu lugar é a sombra. Pode, claro, avançar em direcção à luz, mas é sempre um avanço de sombra em sombra.

domingo, 10 de abril de 2016

O livro e a pauta

José Victoriano González - O Livro (1917)

O livro constituiu, dentro do campo da cultura ocidental, um elemento estruturante e decisivo. Este papel acabou por ocultar o verdadeiro carácter desse objecto. Esta ocultação era já pressentida no Fedro, de Platão, na crítica, que no mito narrado por Sócrates, o rei faz à escrita. Esta provocará nas almas o esquecimento, pois implicará, devido à confiança no registo escrito, a ausência de exercício da memória. A escrita e o livro, como lugar onde a escrita se concentra, acabaram por tomar um valor intrínseco. Ora, na vida espiritual o livro - seja de que âmbito for - não possui um valor por si próprio, mas enquanto objecto de mediação. O valor do livro reside na sua semelhança com a pauta musical. Esta só tem valor porque permite a interpretação. Também o livro e aquilo que ele contém são uma pauta que o leitor interpreta para produzir a música da existência, da sua própria existência.

sábado, 9 de abril de 2016

Criação e redenção

Mère Geneviève Gallois - Creatio - Redemptio

A tensão entre criação e redenção não pertence apenas à esfera da religião. Ela percorre toda a vida do espírito, manifestando-se como uma estrutura essencial dessa vida. Todo o acto de criar, de fazer vir à luz, acaba por exigir, como complemento e acabamento, a necessidade de redenção do que foi criado. A redenção, a sua necessidade, sublinha o carácter finito do que foi criado, da sua necessidade de completude e de elevação acima da temporalidade.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Haikai do Viandante (280)

Umberto Boccioni - April evening (1908)

as noites de abril
chegam ocultas na luz
abertas ao frio

quinta-feira, 7 de abril de 2016

A sombra vazia

Mario Sironi - Ciclista (1916-20)

Pedalo nesta estrada rugosa, neste dia de sombra. Pedalo para fugir à noite. Pedalo para escapar ao dia. Sou um ciclista e corro, em sprint desmedido, para o infinito, para a vitória que me deseja, para os louros que me hão-de coroar. E neste ir está toda a minha essência e estão todos os  meus acidentes. Pego na bicicleta e, ao sentar-me no selim, descubro a minha casa, que é não ter casa nenhuma e ser um eterno viandante. Sinto os músculos dobrarem-se ao imperativo que me guia, sinto o ritmo cardíaco acelerar com a descoberta que me espera. E pedalo, pedalo firme no crepúsculo e corro para a terra oculta onde, passada a meta, me aguarda a minha sombra vazia.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Poemas do Viandante (536)

Ellsworth Kelly - Black, White and Silver (1952)

536. preto, branco e prata

abre-se o branco
na névoa
nebulosa e
o preto é
a pedra 
que empresta
à luz
o fervor
da prata

terça-feira, 5 de abril de 2016

A queda

Antonio Tápies - A Queda (1982)

Podemos ver no mito da queda de Adão e Eva uma explicação simbólica para a nossa finitude. Essa visão inscreve-se ainda numa lógica de racionalização pré-científica da vida humana, um momento em que as faculdades humanas ganham força para se emanciparem e encontrarem explicações racionais. Por exemplo, o criacionismo bíblico seria a ante-câmara da teoria da evolução darwiniana. Do ponto de vista espiritual, contudo, isso é irrelevante. A queda é antes a experiência contínua de um espírito dilacerado entre o seu desejo do alto, do que é elevado, e a força da gravidade que o empurra para o que é baixo e degradante. A queda é o elemento central de toda a vida espiritual.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

A linha do horizonte

Manuel Hernández Mompó - Gente buscando horizonte (1971)

A linha do horizonte circunscreve um espaço de percepção. O que está para além dela deixa de estar ao alcance da visão.Também a vida espiritual dos homens - nas suas diversas manifestações - precisa de uma linha do horizonte. Para quê? Sem linha do horizonte o espírito singular perde-se. A linha do horizonte permite balizar a actividade espiritual do homem, mas não só. A linha do horizonte é aquilo que o homem, na sua aventura espiritual, vai tentar fazer recuar para, assim, alargar o seu campo de experiência. A vida espiritual é o exercício de tornar, através do recuo do horizonte, o além mais próximo do aqui e do agora.

domingo, 3 de abril de 2016

Construções espácio-temporais

Theo van Doesburg - Construcción espaciotemporal II (1923)

Também a vida espiritual é uma construção espácio-temporal. Rasga um caminho na terra ao ritmo do tempo. Não se trata, contudo, do espaço exterior captado tridimensionalmente pelos sentidos nem do tempo cronológico. O tempo é o tempo oportuno, o kairós, e o espaço é aquele que, interior e exteriormente, se traça entre as diversas manifestações desse tempo oportuno, o caminho que torna a vida uma resposta aos desafios que se manifestam segundo o Kairós.

sábado, 2 de abril de 2016

Poemas do Viandante (535)

Jesús María Cormán - 6.6 Richter Scale (2001)

535. a escala de richter

a escala de richter
um segredo
balança 
na terra
o peso de
um dedo
que a abre
e logo logo
a encerra

sexta-feira, 1 de abril de 2016

A mulher e a ave

Pierre Puvis de Chavannes - Le Pigeon (1871)

Eu sou o pássaro que seguro contra o peito e trago em mim o desejo incendiado do voo, o vício impenitente de deixar a terra e elevar-me, como um anjo, aos céus, para, livre da gravidade, poder seguir o caminho no silêncio das alturas. Eu sou a pomba que me toca o seio. No desconcerto de sentir-se presa, a ave funde-se lentamente em mim. Sinto as suas penas na minha pele, o seu coração, vibrátil e ansioso, no meu. Olho o sol e um pássaro terrível chama-me. Ergo um braço, depois outro, e tudo em mim é leveza, ausência de peso. A cidade resplandece ao longe e o sol banha-me o corpo, um corpo tão branco e tão leve. Eu sou a pomba que a mulher segura contra o peito e voo, na liberdade dos céus, no seu corpo alado e quente.

quinta-feira, 31 de março de 2016

Haikai do Viandante (279)

Benvenuto Benvenuti - Inverno - Mattina (1905)

as manhãs de inverno
descem sobre os ciprestes
fogo frio na terra

quarta-feira, 30 de março de 2016

Para lá dos manifestos

Boris Kustodiev - Reading the Manifesto (1909)

A vida do espírito começa para lá de todos os manifestos. Um manifesto é um exercício exacerbado de ruído, a concentração de desejos e ilusões. A vida do espírito brota do silêncio, da solidão, da pura presença perante aquilo que é. O manifesto dirige-se ao rebanho e é sempre a afirmação do poder, ou da sua ânsia, de um pastor. A vida do espírito repousa na singularidade de cada um, quanto muito no encontro de duas singularidades. Nela, não há lugar para manifestos.

terça-feira, 29 de março de 2016

Poemas do Viandante (534)

Edna Araraquara - Amendoeira

534. da brancura da flor

na brancura da flor
eleva-se um
aroma
paira 
na sombra
trémula
de uma pétala
coberta de luz
coberta de assombro

segunda-feira, 28 de março de 2016

Uma dança infinita

Cruzeiro Seixas - Dança Infinita (2007)

Propulsionado pela música, aquele que dança enfrenta o império da gravidade e eleva-se, por instantes, acima da terra, como se do alto uma voz o chamasse. A gravidade devolve-o ao chão, mas a música, a voz que vem do alto, não pára de chamar. E, mais uma vez, o corpo ergue-se e enfrenta aquilo que o arrasta para baixo numa ânsia infinita de responder ao chamamento. A vida do espírito não é outra coisa senão uma dança infinita.

domingo, 27 de março de 2016

A ressurreição

El Greco - Ressureição (1605-1610)

A pintura de El Greco permite perceber uma dimensão da ressurreição do Cristo para além das leituras literais correntes. O que se vê é a elevação de Cristo acima das contingências temporais e mundanas, as quais estão representadas pela confusão e pelo espanto que se apodera dos restantes figurantes da cena. Ressuscitar é então um elevar-se acima das condições do espaço e do tempo, às quais estamos submetidos e são o limite das nossas possibilidades. A ressurreição de Cristo surge como um desafio aos limites e uma ultrapassagem das condições mundanas do homem.

sábado, 26 de março de 2016

Ao pôr-do-sol

Giovanni Boldini - Angeli

A história conta-se em poucas linhas. A verdade fica à consideração do leitor. Ia pela praia, num daqueles passeios que se dão pelo entardecer. Como sempre, caminhava para a duna atrás da qual - temos a ilusão - o Sol se põe. Não havia vento e a ondulação era suave. As gaivotas, por terra, calavam-se. O dia entregava-se e o crepúsculo descia pela baía. Ao desaparecer o Sol, elevou-se não a noite mas luzes em convulsão. Não era uma tempestade. O ritmo do coração acelerou quando decidi subir ao cume da duna. As luzes convulsas não cessavam, mas tudo era silêncio, um silêncio pesado. Ao chegar ao cimo, o leitor é livre de não acreditar, vi enormes seres alados. Havia neles, na face e no corpo, demasiada humanidade. Eram anjos. Flamejantes, coriáceos, combatiam entre si.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Haikai do Viandante (278)

Claude Gellée - Amanhecer

vem sobre os campos
a fria luz da madrugada
o dia anuncia-se

quinta-feira, 24 de março de 2016

Da periferia

Pierre-Albert Marquet - Arredores de Paris (1904)

Aquele que escolhe o caminho da contemplação procura a periferia e não o centro. Ser periférico, estar no arrabalde. A vida do espírito é assim um exercício de descentramento e de abandono de si. A humildade é o lugar da contemplação. A glória, o da coisa contemplada. Até que contemplado e contemplador sejam um e único, até que não haja mais periferia nem centro.

quarta-feira, 23 de março de 2016

A grande tentação

Max Beckmann - Tentação (1936-37)

Há neste mundo as pequenas tentações e as grandes tentação. A maior das tentações, contudo, é a de se eximir a qualquer tentação. Eximir-se à tentação significa esquivar-se ao confronto com a realidade, fingir que não se está presente no mundo e que não se está sujeito ao regime da nossa finitude e a sua concomitante fragilidade. A maior tentação é a de se iludir a si mesmo.

terça-feira, 22 de março de 2016

Poemas do Viandante (533)

Emilio Pettoruti - Armonía - Movimiento Spazio (1914)

533. Um rápido

Um rápido 
movimento 
de mãos
abre rugas, 
tão ruidosas,
no espaço negro
onde do caos 
irrompe
a súbita 
harmonia.

segunda-feira, 21 de março de 2016

As cores

Rodríguez Castelao - As cores (1931)

Também as cores assinalam o caminho na viagem. Primeiro prendem o espírito à sua diversidade. Depois, passado o encantamento estético, tornam-se uma ordem onde o viandante aprende a ler, gradualmente, o progresso no caminho que o conduz das trevas mais densas à luz mais pura.

domingo, 20 de março de 2016

Um triunfo

Laszlo Moholy-Nagy - Homem Sentado (1919)

São assim os meus dias. Levanto-me e, como uma sombra, saio de casa. Vagueio pelas ruas e sinto-me desencarnado. Tento ver-me no reflexo das montras e não encontro a imagem do meu corpo. Perplexo, volto para casa. Sento-me e leio. A vida começa nesse momento. A realidade? Valerá a pena disputar sobre o que é a realidade? Não, claro que não. Os meus olhos caem sobre as palavras e o mundo desenrola-se dentro de mim. Uma ilusão? Já não tenho idade para me iludir. Limito-me a descrever o que se passa. Os meus olhos recebem as palavras. Chegadas a mim, transformam-se, ganham densidade, tomam carne. O meu corpo anima-se, participa nas peripécias da história que leio. As horas passam. Por vezes, olho o espelho ao fundo. Ele devolve de imediato a minha imagem. Sorrio triunfante. Baixo os olhos e continuo a ler.

sábado, 19 de março de 2016

Poemas do Viandante (532)

Albert Bloch - Parable (1936)

532. Também ele falava

Também ele falava
por parábolas.
Tecia um véu de sombra
para que a luz
não incendiasse 
as palavras
e os ouvidos incautos
pudessem escutar
o fogo vocálico
que por elas descia.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Trabalho de pioneiro

Pekka Halonen - Pioneers in Karelia (1900)

A vida do espírito implica também ela um trabalho de pioneiro? Sim, claro, pois ela é um desbravar de um caminho. Contrariamente, porém, a outras dimensões da existência, a vida espiritual não é um trabalho de equipa. O pioneiro desbrava o caminho na mais pura solidão. E porquê em solidão? Porque esse caminho é o seu caminho, só a ele diz respeito, só ele o poderá trilhar. Ele é o pioneiro de si mesmo.

quinta-feira, 17 de março de 2016

Haikai do Viandante (277)

Pekka Halonen - Washing on the Ice (1900)

a desolação
trazida pelo inverno
rio de água gelada

quarta-feira, 16 de março de 2016

Da inclinação

Hsu Wei - Bambous sous la brise

Como um bambu se inclina quando o vento desliza por ele, também o homem se deve inclinar para onde o espírito lhe indicar. O erro é querer permanecer hirto se um vendaval sopra. Inclinar-se é, então, a única forma de se permanecer vertical, pois o alto não está, nessa hora, em cima, mas em frente.

terça-feira, 15 de março de 2016

Desrealização da luz

Albert Bloch - Figures in silver light

A vida do espírito é, antes de mais, uma aprendizagem da visão. Começa com a descoberta de que a visão, para a qual fomos educados e nos dá um mundo, não passa de um artifício, no qual nos prendemos submissos ao que etiquetamos como realidade. Esta, porém, não é mais do que uma realização. A realidade quotidiana não passa de uma realização embotada, que perdeu vigor e repousa na preguiça. O primeiro passo é des-realizar o real, para aprendermos a ver sob uma nova luz. O passo definitivo é descobrir que cada nova luz é sempre um artifício que há que des-realizar. Para o homem não há uma claridade última. A cada etapa ele precisa de aprender a olhar de novo.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Fogos de artifício

Darío de Regoyos y Valdés - Fuegos de Artificio

Muitas vezes, a vida espiritual não é outra coisa senão um fogo de artifício, a produção de uma grande coreografia luminosa para esconder a realidade e a incapacidade para enfrentar e lidar com essa realidade. A vida do espírito, contudo, só começa quando se deixa para trás qualquer ilusão sobre essa mesma vida. Só a realidade conta. O caminho é sempre árduo e nunca está sinalizado. A mais das vezes, é percorrido na noite mais escura.

domingo, 13 de março de 2016

Haikai do Viandante (276)

João Hogan - Paisagem

um rio de silêncio
rasga a pedra da paisagem
sol terra e água