quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (253)

Albert Bierstadt - A Storm in the Rocky Mountains, Mt. Rosalie (1866)

chega a tempestade
desce sobre a montanha
terror sem idade

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Signo sinal 8. A leitura decisiva

Francisco Bores - A leitura (1934)

Uma das principais competências exigidas pela vida espiritual é a da leitura. Não propriamente a leitura de textos, mas a leitura de sinais e de símbolos. Na vida do espírito, mais importante do que a leitura dos diferentes discursos é a leitura daquilo que acontece, seja dentro do viandante seja no ambiente que o envolve. Porém a leitura decisiva será daquilo que não acontece. É preciso aprender a ler lá onde desapareceram todos os símbolos, os signos e os sinais. Ler o silêncio. Esta é a leitura mais difícil e a mais decisiva.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 7

Jorge Apperley - Desnudo (1945)

7. Nesse abandono

Nesse abandono
onde te guardo
na minha memória,
há restos de luz
que descem do rosto
e poisam nos seios
o fogo e a glória.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Raízes e errância

Vincent Van Gogh - Roots and Tree Trunks (1890)

Vivemos numa época em que o enraizamento dos homens perdeu sentido. Num tempo de mobilização contínua, a diáspora e o nomadismo tornaram-se a circunstância do homem. Trazem com eles a destruição da ligação com a terra e da possibilidade de enraizamento. E esta é uma das causas fundamentais do empobrecimento geral da vida espiritual do homem. Aquele que se quer elevar (no sentido de procurar o que é do alto) necessita de se enraizar fundo na terra. Na ausência desse enraizamento, resta a superfície onde os homens se arrastam, errantes, de um lado para o outro.

domingo, 18 de outubro de 2015

O cavalo de Tróia

Oscar Dominguez - O cavalo de Tróia (1947)

Gostamos sempre de nos identificar com os vencedores. Na guerra de Tróia, somos, na nossa imaginação, os companheiros de Ulisses, de Agamémnon e de Aquiles. Esta identificação, porém, oculta a nossa verdadeira situação espiritual. Presos a ilusões, perdido na errância, somos como os troianos que trazem para dentro de casa aquilo que os há-de derrotar. No caminho que cabe a cada um, o mais difícil é resistir à tentação de trazer para dentro de si o cavalo de Tróia de onde sairão os inimigos que nos aniquilarão na viagem.

sábado, 17 de outubro de 2015

O barco vazio

Abert Gleizes - Barcaza atracada en el muelle (1908)

Sento-me na margem, observo os barcos e fecho os olhos. Preso à terra, devaneio com o mar, com o rumorejo das águas no casco, o balancear do barco impelido pela ondulação. Sonho com o além mar, essas outras terras a que nunca irei. Tenho pavor das águas. Sirenes cortam a tarde e a azáfama das gentes do mar embala-me. Adormeço no molhe e tudo desaparece no fundo negro do sono. Quando acordo, noite dentro, a terra desapareceu. O lugar onde estava evaporou-se e à minha volta só há escuridão. Sinto-me balancear e compreendo, ao ouvir o marulhar das águas no casco, que estou no mar. Olho o céu e vejo as estrelas. Levanto-me e corro o barco. Está vazio. Só eu, o mar e as estrelas no fundo negro dos céus.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O chefe de orquestra

Paul Ackerman - A orquestra

O homem não é um ser unidimensional. Pelo contrário, é composto por múltiplas dimensões que, como os instrumentos de uma orquestra, precisam de ser concatenados. O trabalho de concatenação cabe ao chefe da orquestra, ao espírito. Uma parte da vida espiritual está ligada à descoberta do maestro e à sua preparação. A outra parte é o trabalho deste na transformação de uma cacofonia numa peça musical sublime.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Um súbito encontro

Thomas Hart Benton - Figure Study (1919-20)

O que esperam elas de mim? Pensou. Sentiu uma estranha opressão no peito e mastigou em seco. De onde vieram? Vim passear e, cansado, sentei-me aqui, à sombra. Terei dormido. Instantes, horas? Não sei. Ao acordar, senti uma presença. Uma presença indefinida, sem contornos, apenas um hálito, uma respiração. Estou estremunhado, devo ter dormido muito. Levou as mãos aos olhos e esfregou-os. A luz incidia com força, aqui e ali reverberava. Ouviu murmúrios e fixou o olhar. Elas falavam mas não passavam de esboços difusos, figuras intermédias entre a inexistência e a vida. Tenho medo, disse ele de si para si. Fechou os olhos com força, como se suspendesse aquela hora, e voltou a abri-los. Elas olharam-no pela primeira vez. Eram agora figuras definidas, corpos de carne, um rubor maculava-lhes as faces. O que esperam elas de mim? Tornou a interrogar-se. A mais velha, enquanto a outra olhava o chão, levantou-se disse-lhe: vem.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (252)

Henri Delacroix - Arbres au bord de la mer (1906/7)

sendas de verão
árvores junto ao mar
o fruto renasce

terça-feira, 13 de outubro de 2015

O não expectável

Maria Helena Vieira da Silva - O acontecimento (1972-73)

Duas características marcam aquilo que chamamos acontecimento. Por um lado, o facto de ocorrer, de sobrevir; por outro, a sua natureza contingente, não necessária, meramente eventual. Isto faz do acontecimento, ao olhar comum, alguma coisa não essencial, aquilo que ocorre mas que pode não ocorrer. Esta leitura, todavia, é superficial, pois não tem em conta o carácter de epifania que todo o acontecimento traz consigo. Um acontecimento é a revelação de alguma coisa que, ao manifestar-se, rompe com o hábito e com aquilo que é expectável. O não expectável pode ser muito mais essencial do que aquilo que ocorre segundo as marcas da necessidade.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A necessidade de certificação

Marc Chagall - O mito de Orfeu (1977)

Podemos estabelecer uma conexão entre o mito de Orfeu e o destino da mulher de Lot. Alguma coisa terrível acontece quando se olha para trás. Mas o mito de Orfeu, com a perda de Eurídice, talvez nos permita perceber uma outra coisa. A mulher de Lot parece movida pela curiosidade. Orfeu é movido pela necessidade de certificação, de certeza. E quando procura essa certificação perde o alvo da sua viagem. A vida espiritual está para além da certeza e da certificação. Nela nada está dado, nada está garantido. O homem avança no meio do nevoeiro e nada pode esperar a não ser prosseguir o caminho.

domingo, 11 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 6

Paul Ackerman - Femme nue devant une table

6. Sob a luz da sombra

Sob a luz da sombra
Desenho o teu corpo
Preso ao meu desejo.

E o que me assombra
Não é luz nem trevas
Mas o que em ti vejo.

sábado, 10 de outubro de 2015

A reconstrução da totalidade

Georgia O'keeffe - Blue and Green Music (1919)

A realidade sensível que nos atinge cinde-se nas portas de entrada da nossa consciência. Sabor, cor, tacto, som e cheiro são já exercícios que resultam de um processo analítico de abstracção imposto pela nossa natureza. Toda a vida espiritual passa pela reconstrução daquilo que foi cindido, num esforço de apreensão do todo que a nossa sensibilidade fragmentou, numa experiência que espera sempre descobrir que o todo é mais do que a mera soma das partes.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

O ritmo de cada um

Nicolás de Lekuona - O bosque do ritmo (1932)

O ritmo é aquilo que diferencia o caminho de cada um na vida do espírito. Por isso, nenhuma aventura espiritual de um homem pode ser modelo a copiar por outro. A consciência desta diferença radical é essencial. O que está em jogo, na vida espiritual, não é a massificação igualitária mas a singularização de cada um. Que cada um, segundo o ritmo que é o seu, responda à voz que o chamou. 

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (251)

Gustav Klimt - Palácio sobre a água (1908)

imóveis as águas
esperam a luz do estio
árvores na margem

terça-feira, 6 de outubro de 2015

No magma umbroso

Fernando Lerín - Sem título (1985)

No magma umbroso da vida estão contidos todos os possíveis. O lento e doloroso trabalho do espírito acabará por retirar uma e outra figura (um deus, um poema, um quadro, um rapto místico, uma sinfonia), num processo secreto, inesperado, que traz consigo a luz que iluminará por instantes o caminho do viandante.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Do trabalho alienado

George Grosz - Arbeiter (1912-13)

É por demais conhecida a teoria marxista da alienação. O homem, no trabalho moderno ao tornar-se mercadoria, estranha-se da sua própria natureza. O mecanismo económico do estranhamento é, contudo, secundário. A alienação do homem no trabalho reside no facto deste não ser um factor de realização da vida do espírito. Em muito do trabalho que o homem realiza - mesmo em domínios ditos criativos e não apenas no trabalho mecânico - o que existe é uma submissão do espírito a regras que lhe são estranhas. É esta submissão que impede que o trabalho de cada um seja a realização de uma vocação, isto é, uma resposta a uma voz que o chama.

domingo, 4 de outubro de 2015

Fogo de artifício

Darío de Regoyos y Valdés - Fuegos de artificio

O fogo de artifício não é uma mera diversão para alegrar a vida cansada das pessoas. Ele constitui a metáfora por excelência da vida dos homens. Preferem um fogo e uma luz aparentes ao fogo e à luz real e efectiva. O verdadeiro fogo queima e a verdadeira luz cega. Para lidar com eles, um longo e difícil caminho é necessário. É mais fácil fixar-se nas aparências e deixar-se levar pelo artifício do que entregar-se ao esforço que a vida do espírito exige.

sábado, 3 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 5

Aristide Maillol - Dans l'esprit d'une fresque (1930)

5. Silêncio, silêncio

Silêncio, silêncio.
Oiço um rumor,
Nasce no teu ventre.

Silêncio, silêncio.
Vejo o fulgor
Que a ti me prende.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Arrependimento e conversão

Cecilio Pla Gallardo - Arrepentimiento (1896)

Na vida dos homens, o arrependimento é uma das experiências mais equívocas. Arrepender-se significa que a consciência moral sente remorso por actos ou faltas passadas. Arrependimento, exigem-no os pais aos filhos, os professores aos alunos, o confessor aos crentes, o juiz aos condenados. E o bom senso diz-nos que o arrependimento é melhor que a contumácia no erro. Este jogo entre o arrependimento da consciência moral e a orgulhosa obstinação no erro encerra, contudo, o problema no âmbito da consciência e oculta a questão essencial. O problema não é moral mas da ordem do ser, daquilo que se é. Mais do que arrepender-se, há que tornar-se outro, deixar de ser aquilo que conduz ao erro e tornar-se um outro ser. É esta alteração que faz da conversão uma experiência radicalmente diferente da do arrependimento. E só esta experiência pode evitar o retorno à errância.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (250)

Eugene Delacroix - Estudo do céu ao entardecer (1849)

um céu de outono
entardece nos teus olhos
luz sombra e sonho

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O lugar da noite

Edvard Munch - Evening on Karl Johan (1892)

Para onde vou agora que todos voltam para casa? Quando a noite cai, sinto um pequeno alívio. Os dias, com a sua luz, cansam-me. Por vezes, sinto a cabeça vazia; outras, ela parece estoirar de tão cheia. São assim os meus dias, um eterno balancear entre o vazio e a plenitude. Quando a noite cai, todavia, saio de casa e tomo o caminho contrário ao da multidão que volta. Não olham para mim, seguem indiferentes como se eu fosse apenas uma sombra no crepúsculo. Essa indiferença alimenta-me e eu sigo rua fora. Para onde? Apresso-me para o sítio que semeia o medo daqueles que passam por mim. Corro para o lugar onde nasce a noite. E ela, hirta no seu vestido de veludo, lá está à minha espera. Sinto os seus olhos nos meus. Não os vejo, sinto-os. Tremo no silêncio e nunca sei se a manhã chegará.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

O jogo das labaredas

Boris Kustodiev - Fogueira (1916)

A fogueira não é apenas o centro de uma sociabilidade campestre, o lugar à volta do qual os homens se reúnem e dão livre curso à imaginação narrativa. Ela é também um sinal, um indício, em suma um símbolo. Eleva-se da terra para o céu, como se o destino de toda a matéria fosse rarefazer-se para se elevar ao alto. Aturdido, o homem fixa o olhar no jogo das labaredas e, sem dar por isso, recebe uma lição de metafísica.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O desejo e o nada

Remedios Varo - O desejo (1935)

Associamos rapidamente o desejo ao fogo e dizemos coisas como o fogo do desejo ou o desejo ardente. O que muitas vezes desencadeia o desejo é uma carência, a ausência de qualquer coisa. Pensa-se então que a energia que se manifesta no desejo vem do objecto desejado e não do nada que se revela na carência ou na falta. Isso será, todavia, um equívoco. A energia que alimenta o desejo não é o objecto que o há-de satisfazer, e assim matar, mas a própria carência, o próprio o nada que se manifesta no desejar. O desejo alimenta-se de si e é a si que vai buscar a energia com que fulge na noite e arde no dia. O desejo deseja-se a si.

domingo, 27 de setembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 4

Ramón Casas Carbó - Desnudo (1984)

4. Deitada na erva

Deitada na erva
Um rasto de luz
Ergue-se aos céus.

E os teus cabelos
Esperam a voz
Secreta dos meus.

sábado, 26 de setembro de 2015

O livro fechado

Lisa Milroy - Book (1983)

Há dias em que o coração se descompassa. O som de um violino, um raio de sol entre as folhas das árvores, o grito do meu neto no quintal. A razão, nessa hora, cede, torna-se difusa e uma oração sacode-me os lábios. Uma oração que nasce na razão e que desce, tremeluzente, pelo corpo, para se entranhar em cada célula do meu ser. A terra, em convulsão, logo se aquieta e o coração sossega. Esqueço-me de Deus e pego, ao acaso, num livro, num daqueles que está perdido pelo chão do quarto. Abro-o e começo a ler. Seja qual for o livro, são sempre as mesmas palavras que encontro: esqueces-te de mim mas só eu sei o nome que, no grande livro, se esconde no segredo do teu nome. O livro fecha-se; adormeço.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Haikai do Viandante (249)

Herbert Boeckl - Arbres au bord du lac de Klopein (1923)

neste velho lago
árvores crescem nas margens
raízes na água

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Sobre a discussão

Emil Hansen - Discussion (Blue)

No mundo ocidental, a valorização da discussão - sob a denominação de discussão crítica - oculta duas coisas essenciais. O culta o seu real valor e a sua impotência na vida do espírito. O real valor da discussão é o da substituição da violência física pela confrontação simbólica. Esta substituição, contudo, é uma necessidade social e nada tem a ver com o caminho para a verdade. Os limites da discussão estão na sua própria natureza. A confrontação simbólica através de palavras é ainda uma paixão, onde os egos se afirmam e se defendem. O caminho do espírito começa, todavia, quando o ego se cala e abandona o palco onde representa o seu triste papel.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 3

Toulouse-Lautrec - Crouching Woman Red Hair (1897)

3. Avisto o teu corpo

Avisto o teu corpo
E tudo estremece.

Os astros no céu.
As águas na terra.

E a minha mão
Que se desvanece.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Do início e do fim

Paul Klee - Ab ovo (1907)

Que maior ilusão poderá haver do que pensar num início? Tanto na vida da natureza como na do espírito não há um início, mas apenas processo de transição que medeiam dois infinitos, o infinito que vem antes e o infinito que vem depois. Mesmo numa interpretação da criação do mundo ex nihilo só em aparência um início. O criador seria o infinito que precede a criação e a criatura. Se não há um início, haverá um fim? Não se estenderá o infinito infinitamente?