terça-feira, 18 de agosto de 2015

Caminhar sobre as águas

Georges Braque - Porto na Normandia (1909)

Se pensarmos os momentos de suspensão na vida espiritual através da metáfora do aportamento, de lançar âncora no porto, então compreendemos que toda viagem do espírito é uma navegação, um abrir horizontes sobre as águas, que, com a sua fluidez, se constituem como uma outra imagem do espírito não muito diferente da do vento. Toda a viagem espiritual é, desse modo, um caminhar sobre as águas.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Improvisar

Wassily Kandinsky - Improvisation (1909)

Vivemos num mundo de planos e de projectos, no qual as acções requerem um elevado grau de premeditação e de deliberação. Neste sentido, o agir dos homens depende de um raciocínio prático, outra forma de dizer a necessidade de uma racionalização prévia do agir. Isto que é regra na vida mundana pode não se aplicar à vida do espírito. O espírito é como o vento, sopra onde quer. E, se assim é, ao homem resta-lhe a improvisação, a resposta espontânea à solicitação do acontecer.

domingo, 16 de agosto de 2015

Visões outonais

Alson Skinner Clark - Claridade de Outono

Na simbólica das estações do ano, o Outono surge como o tempo do declínio. O grande fulgor, simbolizado pelo Estio, já passou, mas a vida ainda não entrou no frio e negro Inverno, presságio da morte. A vida espiritual, contudo, encontra no Outono uma outra simbolização. A claridade do Outono, de onde desapareceram os efeitos dos ardores primaveris e da efervescência estival, é a mais propícia ao caminho e a que permite ver mais fundo e melhor. Não há visões como as trazidas pelo Outono.

sábado, 15 de agosto de 2015

Poemas do Viandante (518)

Jeanne Carbonetti - Puesta de sol en Turner (1987)

518. um lenço de seda fria

um lenço de seda fria
cai sobre a terra

seda vestida de negro
prende a floresta

num laço de cinza pálida
que a tudo encerra

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Integrar o destruído

Salvador Soria - Integración de lo destruido 91-H (1991)

A vida do espírito não é um caminho que se faça sem processos de destruição. Destroem-se visões do mundo, formas de estar, hábitos essenciais. Não é a destruição que é inimiga da vida espiritual, mas o desperdício. Desperdiçar o que se destrói é pôr de lado um aspecto essencial da viagem. O importante não é evitar a destruição mas saber integrar plenamente em si aquilo que foi destruído.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Agora sou um homem

Francis Bacon - Man Turning on the Light (1973-74)

A velha barata habitava a casa há muitos anos. Era alimentado pela família e acabara por ter um quarto para dormir. Talvez tivesse ali nascido e crescido, e o seu desmedido crescimento tornara-a uma presença inquestionável. O hábito pode tudo. Grete, a filha do casal, dizia aos vizinhos: esta barata repugnante é como se fosse meu irmão. Que nome tem, perguntavam. Ela respondia: Gregor. Gregor Samsa. Um nome melancólico para barata tão grande, respondiam. Tudo isto, ao longo dos anos, fora percebido pelo insecto. O seu cérebro humanizara-se no conforto da casa. Esta noite, porém, o seu sono de barata fora entrecortado por estranhos sonhos e por dores terríveis. Tudo no corpo se lhe tornava insuportável. Na tensão do sofrimento, a barata deu um salto e precipitou-se para o interruptor. O quarto iluminou-se. Toda a cidade foi varrida por um grito pavoroso e ouviu uma voz gigantesca exclamar: meu Deus, piedade, agora sou um homem.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Jardim e utopia

Pierre Bonnard - O grande jardim (1898)

Poder-se-á pensar que a raiz da propensão utópica no mundo ocidental se encontre na República platónica. O livro de Platão, porém, é demasiado abstracto para incendiar a imaginação popular. É no Génesis bíblico que encontramos o fundamento dessa propensão. O Jardim do Éden, esse lar primeiro do homem, não é apenas o modelo de todos os jardins que o engenho do homem ocidental constrói, é o objecto perseguido em cada utopia que ele desenha. Estas utopias, tão diferentes entre si, não são mais do que a aspiração do filho pródigo ao retorno à casa paterna, ao lar originário.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Haikai do Viandante (243)

Benvenuto Benvenuti - Agosto. Noite (1901)

um cheiro a mosto
uma sombra na floresta
as noites de agosto

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Estátuas de sal

Rafael Canogar - Arqueologia III

A psicanálise terá sido uma das invenções que mais influência exerceu - e exerce - no mundo ocidental. Propõe uma espécie de salvação pelo exercício da arqueologia. O paciente é convidado a escavar no seu passado remoto para encontrar o conflito que se manifesta na sua patologia. O processo, porém, é perturbante pois traz à memória o destino da mulher de Lot. Ao olhar para trás foi transformada em estátua de sal. Quando passamos da arqueologia pré-histórica para a arqueologia pessoal, em vez de encontramos a salvação, corremos o risco de sermos transformados em estátuas de sal.

domingo, 9 de agosto de 2015

As primeiras horas

Max Pechstein - Early Morning (1914)

As primeiras horas do dia sempre foram pressentidas pelo homem como um princípio de esperança. Não apenas a esperança de que a luz se suceda à noite e às trevas, mas também a expectativa de que o novo dia seja a hora em que se corte com a rotina quotidiana, e uma nova vida brote da árvore desgastada da existência.

sábado, 8 de agosto de 2015

Como um arquitecto

Ángel Orcajo - Arquitecturas IV (1986)

A viagem espiritual - essa aventura que nos cabe ao recebermos o dom da vida - é tão excessiva que não há imagens que esgotem o seu sentido. Por isso, recorrentemente é necessário voltar à viagem e a uma nova imagem, como, por exemplo, a da arquitectura. A viagem é um exercício de projecção e de construção de estruturas arquitectónicas, um exercício em que o viandante, como o arquitecto que extrai o cosmos do caos, retira do informe e do não sentido aquilo que ostenta uma forma e ganha um sentido. 

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Poemas do Viandante (517)

Jeanne Carbonetti - Hálito de Primavera (1988)

517. Depois da noite de Inverno

Depois da noite de Inverno
desce em nós a luz.

No segredo da floresta
abrem-se clareiras.

Nelas o lenhador canta
os antigos cânticos.

E a vida recomeça:
veio a Primavera.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O desprendimento

Jeanne Carbonetti - Bétulas no outono (1997)

À exuberância do Estio, a natureza responde com o tempo em que as árvores se despem e preparam para a invernia. O Outono traz, para os homens, uma lição decisiva, porventura a mais decisiva de todas. O importante não é acumular. O importante é aprender a despir-se, aprender a abandonar tudo aquilo em que o desejo concentra a sua intencionalidade. Importante não é a posse mas o desprendimento, o desprendimento mesmo de tudo aquilo a que damos a maior das importâncias.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Pontos de contacto

Frantisek Kupka - Pontos de contacto (1934)

A expressão ponto de contacto traz nela uma carga semântica que se presta a uma simbolização da experiência, a qual transcende, pela sua própria natureza, a fisicalidade do tacto e do contacto. Contactar, literalmente, é uma dupla experiência. Passiva, pois recebe-se algo de um corpo exterior, e activa, já que tem uma dimensão exploratória de outros corpos. A vida espiritual é, ela própria, marcada por pontos de contacto, onde o viandante recebe algo que vem gratuitamente a ele, mas onde também é activo na abertura para aquilo que pode descer sobre ele. A viagem não é outra coisa senão um percurso que liga os múltiplos pontos de contacto.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Haikai do Viandante (242)

Prince Eugéne de Suéde - A Summer Night (1895)

noite de verão
frio crepúsculo da terra
sombra e solidão

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Um café

Edward Hopper - Autómata (1927)

Uma bebida naquele sítio estranho, numa terra que vira pela primeira vez. Ao entrar, pensou: está tudo acabado. Um café, pediu, numa voz mecânica, quase sem olhar para a rapariga que a escutava. Um café, e deixou o pensamento vaguear pelo passado, pelos cafés onde entrara nessa vida que acabara. Sentiu a chávena na mão, o calor que lhe subia pelo braço, o cheiro que se desprendia e parecia querer penetrá-la, tomar conta dos seus sentidos. Bebeu o café, lentamente, muito lentamente. A princípio, fê-lo num gesto automático, mas alguma coisa acordou nela. Aquele sabor espesso parecia novo, como fosse a primeira vez que o saboreava. Deixou-se invadir pela novidade, que logo se apossou do seu peito. Ao acabar o café, soube que estava equivocada. Tudo começava agora e o mundo abria-se com uma outra cor, a sua cor.

domingo, 2 de agosto de 2015

Condenados à errância

Ferdinand Hodler - Ahasver, el judío errante (1910)

A história, que se começou a espalhar, ainda na Idade Média, de Ahasver, o judeu errante, é sintomática da vida espiritual e diz respeito a todos homens e não apenas aos que têm a particularidade de serem judeus. Faz parte de um repositório de experiências universais. A narrativa, em resumo, conta que Ahasver ridicularizou Cristo quando este fazia o caminho que o conduziria à crucificação. Recebeu, em troca, a maldição de errar mundo fora até à parusia do Cristo, isto é, até à segunda vinda, em glória, do Messias.

Que sentido podemos encontrar nesta narrativa? Se abstrairmos de uma interpretação histórico-racionalista, encontramos um caminho hermenêutico possível. Ahasver ri-se do seu desejo de vida espiritual (sendo esta figurada na ascese que conduz Cristo à morte na cruz). É este desprezo que o perde e o leva a errar até que se encontre a si mesmo, encontre a sua verdadeira natureza (a qual é configurada, na narrativa, na parusia de Cristo). A história de Ahasver não fala de um judeu particular que cometeu uma certa acção num dado momento histórico. Fala de todos e de cada um de nós que, ao desprezarmos a vida do espírito, nos condenamos à errância.

sábado, 1 de agosto de 2015

Quarta-feira de cinzas

Henri Rousseau - Carnival Evening (1886)

Tomaram o caminho da floresta. Ao chegar a uma clareira, o luar indicou-lhes que era ali o seu lugar. O vento desaparecera e as nuvens ficaram imóveis, para que a lua, a velha companheira do desejo e do mistério, não deixasse de os iluminar. Tudo era silêncio à sua volta. Olharam-se então pela primeira vez. Os olhos levaram tempo a habituarem-se à sombria luz que os envolvia. Quanto mais se olhavam maior era noite que crescia dentro deles. Sem se desfitarem, tiraram a máscara. Depois despiram-se. Estavam nus, um perante o outro, olhos nos olhos, a lua sobre os corpos e a noite, a noite de carnaval, apoderou-se de cada um. Na aurora de quarta-feira, os primeiros lenhadores, ao entrarem na clareira, viram, sob o silêncio do dia que nasce, um monte de cinzas. Ao lado, duas máscaras de carnaval.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Brisa e vendaval

Angel Planells - Acordeonista (1971)

Onde fala o espírito? Sabemos que ele é como o vento, sopra onde quer. Mas entre todas as artes que o homem inventou para que o espírito nelas falasse, é na música onde ele sopra mais tempestuosamente. Na música - mesmo na mais simples - o espírito tanto pode ser brisa suave como vendaval, que desfigura o mundo dos homens, para que seja de novo configurado.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Poemas do Viandante (516)

Thomas Cole - Expulsión. Luna y luz de fuego (1828)

516. pobre cantores do estio

pobres cantores do estio
do ardor e do fogo

que sabeis vós de incêndios
na fímbria do mar

que sabeis vós do silêncio
que crepita pálido

na terra presa na neve
no frio de dezembro

quarta-feira, 29 de julho de 2015

A dialéctica do arrependimento

Ignacio Díaz Olano - Arrependida (1895-96)

A religião, a justiça, a própria vida comum têm um dos seus alicerces na prática do arrependimento. Contritos, os que se arrependem de alguma coisa, ostentam um firme propósito de não mais tornar a fazê-la. Em tudo isto, porém, há uma perversidade que está longe de ser percebida. Ao arrependimento está subjacente a crença de que se é melhor, uma revolta contra a sua própria condição, uma recusa de aceitação de si, uma afirmação de um poder do eu, poder esse que está na base, e foi a mola propulsora, do próprio acto que conduz ao arrependimento e à contrição.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Metamorfose e metanoia

Jackson Pollock - Alchemy (1947)

A viagem do espírito - quero dizer: a vida que somos solicitados a viver - é, na verdade, um processo alquímico, para usar uma metáfora ao gosto revivalista desta época, um processo de transformação do que é vulgar e vil no ser humano em algo que seja nobre e elevado. É uma metamorfose do espírito servil num espírito livre. A questão, porém, é que este caminho só começa se houver uma metanoia, uma conversão. Isto significa que se adopte um outro ponto de vista sobre a vida. A natureza dá-nos um programa em que ela se reproduz e persiste. Conversão significa, porém, que o homem descobre para além da natureza dada, marcada pela estrita necessidade, uma outra natureza, aquela que o solicita a ser mais do que mera necessidade, que lhe dá o imperativo de ser livre.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Fechar e abrir

Alfonso Bonifacio - A traves de la ventana (1995)

Quando pensamos em janelas somos levados por considerações acerca da sua utilidade ou do seu valor estético no enquadramento do edifício que as alberga. Não pensamos - ou pelo menos não pensamos de imediato - que elas resultam de uma espécie de contrato entre entre o espaço privado e o espaço público, entre a intimidade e a publicidade. Esse contrato, de tão difícil negociação, responde, na verdade, a uma necessidade do espírito humano, a um ritmo da vida espiritual. A vida deve ser um balanceamento entre o dentro e o fora, entre o íntimo e o público, entre a reclusão meditativa, secreta e íntima, e o mergulhar activo no mundo que está para além reclusão doméstica. A janela é, deste modo, um símbolo da nossa condição, ao ter o poder paradoxal - paradoxo presente em todos os símbolos - de nos fechar e de nos abrir ao mundo.

domingo, 26 de julho de 2015

A solidão no monte

Henri Matisse - The Sorrows of the King (1952)

Mas Jesus, sabendo que viriam buscá-l'O para O fazerem rei, retirou-Se novamente, sozinho, para o monte. (João 6:15)

Platão ainda viveu a ilusão do Rei-Filósofo, a possibilidade de compreender o poder como o lugar da justiça e do bem. Cristo, porém, não tem qualquer ilusão. Perante a possibilidade de ser aclamado rei, retira-se para a solidão do monte. Este gesto de recusa do poder não é importante apenas para compreender a figura do Cristo. É decisivo para se perceber a natureza do poder. Mais decisivo, contudo, é aquilo que é contraposto à ocupação do poder, a solidão no monte. O que significa isso? O monte simboliza a possibilidade de ver de cima, de compreender, de perscrutar o horizonte, de contemplar. A solidão do monte diz-nos que, para o homem, a contemplação é o bem mais precioso, infinitamente mais precioso do que o poder.

sábado, 25 de julho de 2015

Haikai do Viandante (241)

Jens Juel - A Storm Brewing behind a Farmhouse in Zealand (1795)

chega a tempestade
um céu sulcado de nuvens
na terra tudo arde

sexta-feira, 24 de julho de 2015

O desperdício

José Balmes - Desperdícios (1984)

A sociedade do consumo em que vivemos é, ao mesmo tempo, uma sociedade do desperdício. O problema do desperdício não está na sua irracionalidade económica ou na injustiça que pode haver na existência de um superabundância, que exige que se deite fora o excesso, ao lado de formas extremas de carência. O problema central do desperdício reside na aniquilação que ele supõe do espírito, pois tudo o que o homem faz, seja qual for a forma como isso é feito, é uma emanação e um investimento do espírito. Desperdiçar é, deste modo, retirar sentido ao que o espírito concebe e tornar a actividade espiritual um absurdo.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Os banhos públicos

Hubert Robert - Ancient Ruins Serving as a Public Bath (1798)

Indeciso, olhou para os outros banhistas. Nunca, na sua curta existência, vira ou ouvira falar de alguém que tivesse atravessado a longa piscina. Por que seria? – interrogou-se. Mergulhou então e começou a afastar-se. Ouviu gritos. Chamavam-no, mas era tarde para reverter a sua decisão. Conforme nadava sentiu o corpo a crescer, a tornar-se mais forte e poderoso. Reconfortado, esqueceu quem gritava e persistiu na viagem. A partir de determinada altura, as primeiras sensações de força e crescimento desapareceram, substituídas por uma longa plenitude. Quando se aproximou do fim, o cansaço sobreveio. A viagem era longa, pensou. Ao sair da piscina olhou o espelho. Este, desdenhoso, devolveu-lhe uma imagem, a de um rosto exausto, coberto de rugas, suportado num corpo débil e sem consistência. Tinha chegado ao seu destino.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Poemas do Viandante (515)

Alexander Cozens - A Wooded Path

515. ao entrares na floresta

ao entrares na floresta
tudo é mistério

as vítreas aves que cantam
o vento que sopra

a luz que cresce no dia
e morre na sombra

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Um naufrágio inominável

Claude Joseph Vernet - Um naufrágio

Talvez a metáfora do naufrágio seja a mais esclarecedora da vida dos homens. Não me refiro apenas à vida daqueles que, segundo os padrões humanos, se transviaram e foram conduzidos a uma ou outra forma de errância. Esses ainda têm a consciência, dada pela experiência, da sua condição. Náufragos maiores são, porém, aqueles que se julgam firmes na mais sólida das embarcações. Seguram o leme com empenho, sentem-se resguardados das tempestades e são incapazes de perceber que toda a sua vida, tão bem ordenada, é um naufrágio inominável.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Chegar a casa

Roelant Jacobsz Savery - A Mill Tower on the Moldau near Prague (1613)

Concentrado na condução, nem dava pelos quilómetros que devorava. Rasgava paisagens, deixava cidades e aldeias para trás. Quem o visse, pensaria que queria anular o tempo. Na verdade, não sabia para onde ia. Cansado da ganga do quotidiano, pegou no carro e deixou-se levar pelo destino. Quando anoiteceu, ao fim de cinco horas de estrada, viu uma estranha estrela. Tornou-se o seu guia, mudo e brilhante, que lhe indicava o que fazer a cada instante. Conduzia há muitas horas, mas ainda não sentira o cansaço. Quando avistou a indicação para sair em Praga não hesitou. Mal começou a caminhar em direcção à cidade, uma luz suave caiu sobre ela e a paisagem urbana começou a perder os contornos, até que os bairros se desfizeram em névoa e um velho mundo ocupou o espaço à sua frente. Quando a aurora chegou, avistou ao longe, numa curva do rio, a torre de um antigo moinho, há muito desaparecido. Fixou o olhar, mas o moinho era real, demasiado real. Confuso exclamou: cheguei a casa.