quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Poemas do Viandante (489)

Adolphe-William Bouguereau - Evening mood (1882)

489. canto a distância de onde

canto a distância de onde
te vejo

deixo-a crescer no fundo
de mim

para que de ti se me acorde
o desejo

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Tarefas ociosas

Filippo de Pisis - O arqueólogo (1928)

Segue-me, e deixa os mortos sepultar os seus mortos (Mateus 8:22)

A viagem não é um assunto de arqueólogos, esse entretenimento do mundo moderno onde os mortos se entregam à tarefa de desenterrar os mortos. Se já era vã e ociosa a tarefa dos mortos a sepultar os seus mortos, o que se poderá dizer desta inclinação mórbida pelo que está morto? Seguir o caminho do espírito é procurar o que está vivo, é seguir a via que conduz à verdade e à vida.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O caminho principal

Paul Klee - Caminhos principais e caminhos laterais (1929)

Só a ilusão pode levar o viandante a distinguir entre caminhos principais e caminhos laterais. Seduzidos pelas aparências, os homens traçam estranhos mapas e entregam-se a taxionomias insensatas. Quando a aparência mais densa começa a dissolver-se, o viandante descobre que todos os caminhos são o caminho principal, desde que ele, naquela hora, o esteja a percorrer.

domingo, 14 de dezembro de 2014

O caminho da restauração

JCM - Mitologias (Restauração) (2007)

A cultura ocidental assenta toda ela num estranho pressuposto, o da vida como um projecto de restauração. Herdada da cultura judaico-cristã, a narrativa vetero-testamentária da queda encontra nos textos neo-testamentários o seu complemento na ideia de restauração, em Cristo, do estado adâmico prévio à queda na condição humana. Num tempo em que as percepções de fim do mundo assediam a cultura ocidental, o retorno aos textos fundadores poderá abrir um outro caminho de meditação. A queda e a restauração são os constituintes de uma vida que ganha o seu sentido na tensão entre estes dois pólos. Se a queda parece não ter fim, então é preciso recordar a promessa da restauração.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Poemas do Viandante (488)

Ferdinand Hodler - O dia (uma figura) (1896)

488. toda a inocência que espera

toda a inocência que espera
o anoitecer

toda a ânsia que se exalta
na fria noite

toda a beleza que para ti
me fez nascer

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A abertura infinita

JCM - Mitologias (ó mar salgado...) (2008)

O fascínio que o mar exerce sobre a alma tem a sua raiz na conexão que o espírito faz entre a vastidão das águas e duas ideias que parecem ser parte integrante dessa alma, a abertura e o infinito. Sento-me nas areias e olho a água e, na rebentação reiterada das ondas, oiço o infinito a abrir-se diante de mim, como se chamasse pelo meu nome, aquele nome que só ele sabe.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Rasgar a penumbra

Lyonel Feininger - Calle en penumbras

Rasgar a penumbra para que a luz venha, não de súbito, mas lentamente, à medida que se avança no caminho e que os olhos vão suportando novas e mais intensas claridades.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Estrela polar

Salvador Dali - Visiones de la Eternidad (1936-7)

Ver tudo "sub species aeternitas", mas a vida exige inscrever cada acção no tempo. A viagem é sempre a tensão entre a visão do eterno e a contaminação da temporalidade. O essencial é saber o que faz de estrela polar, se o eterno se o temporal.

domingo, 7 de dezembro de 2014

A relação com a paisagem

Meyer Schapiro - Abstract Landscape (1971)

Há sempre, na viagem existencial, uma dupla relação do viandante com a paisagem, relação marcada pelo afastamento e pela proximidade. Ao longe, a paisagem surge depurada, quase uma ideia, uma linha abstracta no horizonte. Ao tornar-se próxima, a paisagem vai perdendo a sua natureza ideal e ganha a pulsação daquilo que está vivo e se abre para acolher quem assim se aproxima.

sábado, 6 de dezembro de 2014

A apropriação do mérito

Pep Llambías - Serie Gestos 'Dar' (1996)

Recebeste de graça, dai de graça (Mateus, 10:8)

Se de forma inopinada aproximarmos a cena da expulsão, por Cristo, dos vendilhões do templo e a injunção em epígrafe (recebeste de graça, dai de graça), percebemos uma ordem das coisas que antecede - não historicamente, mas ontologicamente - as formas conhecidas do comércio social. Aquilo que possuímos é ainda o fruto da graça e não do nosso mérito. A perversão da vida entre os homens, a sua errância, nasce da apropriação do mérito, como se o talento, a vontade, a inteligência, a diligência e até a capacidade para cultivar esses dons fosse propriedade do indivíduo e não algo que ele tivesse recebido gratuitamente.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Poemas do Viandante (487)

Vincent Van Gogh - Noche estrellada sobre el Ródano (1888)

487. o sono desce pela noite

o sono desce pela noite
sobre o olhar

e ateia no céu um rio
de estrelas

onde te aguardo
ao acordar

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Inscrito na terra

JCM - Símbolos, signos e sinais (2007)

Assim como as nuvens desenham estranhos padrões nos céus, também o viandante o faz na terra. O seu caminho, se olhado de longe, perde a sensação de acaso que um espectador vê ao olhar a partir da proximidade, e deixa-se perceber como um conjunto de padrões que ele inscreve na terra.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Nos caminhos que se cruzam

JCM - Black & White Dreams (2014)

Imaginar a viagem como um exercício infinito de escolha entre caminhos que se cruzam. Uma viagem sem mapa, sem roteiro, sem bússola. O viandante, despido de todos os dispositivos de orientação, entrega-se  à pura disposição da graça, como se cada escolha fosse, ao mesmo tempo, a realização da mais pura liberdade e o cumprimento de uma insuperável necessidade.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

De degrau em degrau

JCM - Chemins que ne mènent nulle part (2007)

A escada será um dos símbolos que melhor representam a ideia de caminhos que levam a parte nenhuma. Na escada, a imaginação entrevê uma ascensão infinita, um subir de degrau em degrau, num elevar-se sem fim. A escada não leva a parte nenhuma, pois cada degrau será apenas um meio para se alcançar o próximo. Dito de outra maneira, não há fim para a viagem.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A finitude e o infinito

Jacinta Gil Roncalés - Búsqueda del infinito (1991)

Perdido no turbilhão da vida, o viandante faz da sua finitude o caminho, o mais improvável dos caminhos, para encontrar nos limites de si mesmo o infinito que por ele chama.

domingo, 30 de novembro de 2014

Poemas do Viandante (486)

Charles le Roux - Borde del bosque (1855)

486. as folhas mortas cantam

as folhas mortas cantam
no sopro do vento

velhos pássaros feridos
pela noite

um resto de pão ázimo
que há-de levedar

sábado, 29 de novembro de 2014

Do ciclo das estações

JCM - Heimat (2014)

Há uma aprendizagem central no ciclo das estações. O renascimento primaveril e a exuberância do Estio radicam na longa ascese que começa no Outono. Como as árvores, também o viandante começa a abandonar o peso das folhas mortas, para se despir de todas as ilusões. Sem o trânsito pelo escuro Inverno, é impossível aspirar pela chegada da luz .

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

A memória da errância

JCM - Time on space (2007)

O tempo que se inscreve na pele, abrindo sulcos na planície do corpo, é um sinal - quase diria, uma memória - da errância que constitui parte substancial da viagem. Muitas vezes a luz que ilumina o espírito ausenta-se, coberta por uma nuvem. Então, o viandante perde-se no caminho, avança e recua, traça linhas sinuosas que não levam a lado nenhum. E tudo isso se inscreve nesse inusitado mapa que é a pele. Mais do que as vitórias, são os enganos, as ilusões e as derrotas que nos sulcam o corpo.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

À volta da linha

Wassily Kandinsky - À volta da linha (1943)

Podemos imaginar a viagem espiritual como um processo no qual seguimos uma certa linha, aquele recto caminho que nos foi dado. Essa imagem não sendo completamente ilusória é, todavia, incompleta. A viagem é também o esforço - há quem diga a ascese - de retornar da errância à volta da linha para o recto caminho, o qual e apesar de nos ter sido dado só existe nesse esforço criador que nos aproxima dele, inventando-o a cada aproximação.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Haikai do Viandante (214)

JCM - Símbolos, signos e sinais (2007)

Mar de areia e sal
cobres o chão de sinais:
vens e logo vais.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Do florescer

Kenneth Noland - Florescer (1960)

A viagem espiritual está longe de se deixar descrever pela metáfora dialéctica em da transformação do botão em flor, de um botão que contém em potência o flor em que se transformará. Devemos imaginá-la antes como uma outra forma de florescimento, no qual a flor se vai tornando, na viagem, cada vem mais naquilo que é, vai sendo cada vez mais flor.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A tempestade

Gustavo Torner - Como a tempestade (1959)

Temos medo de pensar em tempestades, não vá esse pensamento atraí-las. O caminho do viandante, porém, não está isento delas. Tarde ou cedo elas acabam por chegar para moldar o espírito e abrir uma via que, talvez sem se saber, estava fechada. Tudo o que acontece na viagem, tempestade ou bonança, faz parte da aprendizagem da via, queiramos ou não.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Poemas do Viandante (485)

Remedios Varo - Modernidad (1936)

485. estou exausto de tanta modernidade

estou exausto de tanta modernidade
e no passado não há como caminhar
tão pouco a glória do futuro me chama
para da nova era o nome anunciar

restam-me os dias com a sua sombra
e o velho sonho nunca sonhado
restam-me alguns devaneios
abertos sobre um oceano cansado

como eu queria ser não moderno
ter toda a luz na lenda e no mito
e ao acordar de manhã rezar
a oração que outro tivesse escrito

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Da multiplicidade das paisagens

Giorgio Morandi - Paisagem (1913)

Uma ilusão comum reside na convicção de que, na viagem, o viandante encontra múltiplas e diferentes paisagens, às quais, para sobreviver e prosseguir o caminho, terá de se adaptar. A ilusão não está na convicção da existência dessa multiplicidade, mas no facto de ela ocultar que o viandante traz em si, também ele, uma multiplicidade de paisagens que vai projectando no caminho, num jogo de revelação, no qual ele descobre aquilo que lhe pertence.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Um estranho sortilégio

Julián Momoitio Larrinaga - Ballet

Deixar o corpo elevar-se, suspender a gravidade, traçar um halo de beleza no espaço desolado do mundo. Quando as luzes se apagam e o movimento cessa,  os espíritos tornam-se corpo e o mundo acorda de um estranho sortilégio.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

As luzes do mundo

Otto Dix - Lichtsignale (1917)

A ânsia do homem pela luz leva-o muitas vezes a confundir as luzes do mundo com a luz do espírito. Basta, porém, alguma atenção para se vislumbrar, sob os efeitos das luzes mundanas, os sinais da morte e das trevas. Sempre que, pela mão do homem, a luz se excede em brilho e em exuberância, deveremos de imediato suspeitar que algo muito negro se acoita e esconde naquele brilho.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Haikai do Viandante (213)

JCM - A night at the opera (2008)

Para lá dos montes
põe-se um sol outonal.
Fria luz no horizonte.

domingo, 16 de novembro de 2014

Do papel do equívoco

Jean Dubuffet - Banco de equívocos (1963)

Quantas vezes a vida não é senão um banco de equívocos, de erros, de mal-entendidos? Perante isso, há a tendência para ver a fonte do mal nas capacidades interpretativas do sujeito. É ele que se engana, que interpreta mal as vozes que o chamam, que se deixa enredas nas teias do erro. E no entanto a palavra equívoco tem, na sua raiz, um outro ensinamento. Pode-se dizer que a ambiguidade presente no equívoco está na igualdade (āequus) das vozes que chamam (vocāre) o homem. É a própria realidade que o enreda e o leva à perda. Mas se assim é, poderá ainda a perda ser considerada uma perda? Não será antes um caminho de aprendizagem?

sábado, 15 de novembro de 2014

Estabelecer pontes

Camille Pissarro - Charing Cross Bridge, London (1890)

A ponte enquanto símbolo não é apenas aquilo que une dois pontos do caminho que, por um qualquer acidente, se cindiu. A ponte é o único caminho que resta ao viandante, pois a sua viagem é o contínuo estabelecer de ligações entre o aquém e o além, descobrindo, porém, que o aquém, o além e a ligação que os une são uma e a mesma coisa. Só se pode unir aquilo que já está unido.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Abandonar-se

José Bellosillo - Adentrándome (1992)

Onde estiver o corpo, lá se juntarão também os abutres (Lucas 17:37).

Penetrar no mistério, perder a materialidade, tornar-se cada vez mais inefável, quase uma sombra, quase uma luz. E a viagem não é outra coisa senão este abandono da gravidade, este tornar-se imponderável, este abandono do corpo para entrar no reino onde a luz pronunciou o nosso nome.