terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O próximo e a aproximação

Van Gogh - O bom samaritano (1890)

E, respondendo Jesus, disse: Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram, e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. E, ocasionalmente descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. E de igual modo também um levita, chegando àquele lugar, e, vendo-o, passou de largo. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão; E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem, e cuidou dele; E, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu to pagarei quando voltar. Qual, pois, destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores? (Lucas 10:30-36)

Ao ler o texto de Lucas poderemos pensar que estamos perante uma ética da compaixão. Isso, contudo, será uma visão demasiado exígua. A compaixão evidenciada é o resultado de uma aproximação. O que significa isto? Significa, antes de mais, que o próximo é o resultado de uma decisão do nosso livre-arbítrio. E essa decisão provém da escolha entre aproximar-se ou não do outro. Em segundo lugar, o próximo é uma construção gerada pelo acto de aproximação, de me tornar próximo. O próximo não é um conceito abstracto proveniente da razão teórica, mas o produto de uma acção, de uma praxis. Perante interpelação de uma situação podemos fazer daquele que nos interpela um próximo ou tomá-lo como um estranho de que nos afastamos. 

Só a partir desta tensão entre aproximação e afastamento, compreenderemos a compaixão. Literalmente, compaixão significa sofrimento partilhado. A partilha da dor só se torna possível pela decisão de aproximação. Por outro lado, a partilha da dor não é um mero eflúvio sentimental. Pelo contrário, a compaixão traduz-se num conjunto de actos com resultados práticos. Decisão, acção, resultados práticos, tudo isso permite, a partir do par aproximação - compaixão, recolocar o chamado amor cristão no seu devido lugar. Contrariamente àquilo que resulta de muitas práticas e prédicas religiosas, a caritas não é uma exalação de afectos, não é uma litania delicodoce de banalidades beatas misturada com sorrisos e lágrimas. 

Ela é o resultado de um ethos que ultrapassa o da amizade segundo Aristóteles. Na terceira classe de amizade, a amizade segundo a virtude, a mais importante para o filósofo grego, esta só se pode estabelecer entre homens que são “bons e semelhantes na virtude, pois tais pessoas desejam o bem um ao outro de modo idêntico, e são bons em si mesmos.” Ora a caritas implica que o homem se aproxime do outro sem saber qual a virtude deste. Não é porque dois homens são bons e virtuosos que se tornam amigos, mas porque um se aproxima do outro e exerce praticamente a virtude da amizade ou a caritas que uma amizade se pode constituir,  pois este exercício de aproximação compassiva convoca, mas não exige, no outro o exercício da reciprocidade. A bondade, deste ponto de vista, não é uma qualidade a priori dos indivíduos mas um exercício contínuo de aproximação ao outro.

domingo, 6 de janeiro de 2013

A luz matinal

Paul Klee - Clearing in the Forest (1926)

A floresta é, na filosofia de Heidegger, uma metáfora da vida. Os Holzwege (caminhos da floresta) são esses pensamentos que abrem um caminho, uma senda na floresta, isto é, um caminho na vida. Se não houver, porém, o clarão matinal que ilumina o viandante, os caminhos de pouco lhe valem. Melhor, a luz que penetra na floresta é aquilo que traça esses caminhos e os abre ao viandante. Ora a luz matinal, pela sua natureza incoativa e pela frescura a que está associada, é aquela que traça os mais promissores caminhos. Não se confunda, porém, a luz matinal com os verdes anos. O fundamental é, em cada etapa da via e da vida, abir-se a essa luz primeira, uma luz virginal e pura.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Haikai do Viandante (118)

Joseph Wright - Illumination of the Castel Sant'Angelo in Rome (1778-1779)

Fria, secreta, a noite,
arde num fulgor de seda.
Visão da alvorada.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Do espírito imaturo

Theo van Doesburg - Counter-Composition VI (1925)

Há um momento na vida que buscamos caminhos claros, marcados por linhas rectas, um exercício de geometria prática. Nessa altura, animados pela razão e pelo seu desprezo pelo sinuoso, julgamo-nos maduros e na via da verdade. Em breve, porém, se descobre que a razão geométrica não passa de um exercício adolescente, o sintoma de uma imaturidade do espírito. As curvas de um rio, os desenhos sinuosos feitos pelo vento nas areias do deserto, o horizonte incerto das montanhas escarpadas simbolizam mais eficazmente a via que espera o viandante. A geometria, a clareza e a distinção, a pura diferenciação do branco e do negro são ainda um armadilha, o exercício de uma sedução a que o espírito, na sua imaturidade, com agrado cede.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Poemas do Viandante (395)

Caspar David Friedrich - Mist (1807)

395. Tudo se dissolve na neblina da manhã

Tudo se dissolve na neblina da manhã,
os barcos que vão e vêm,
as águas agitadas batidas pelo vento,
o perigo escondido na rocha escarpada.

O mundo torna-se um sonho translúcido,
a pesença de uma luz de seda,
lâmpada que ilumina as horas
e esculpe sobre a terra estátuas de sal,
pequenas gaivotas de pedra,
a mão que me estendes sobre o oceano.

O amor é um mistério de penumbra.
Olhamos e sentimos o coração pulsar,
há ervas e cardos, restos de comida,
um copo vazio à espera da tua boca.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Rituais de caça

Pieter Brueghel, o Velho - Os caçadores na neve (1565)

Por que razão os rituais de caça, ainda hoje, desencadeiam entre os homens civilizados grandes paixões? A resposta mais fácil dir-nos-á que se trata de uma antiga herança proveniente dos tempos em que a caça permitia a subsistência da espécie. Há, contudo, algo mais do que essa memória proveniente da necessidade de alimento. A caça era mais do que um modo de vida, era um verdadeiro exercício espiritual, no qual o homem se descobria a si mesmo. Para além do desenvolvimento da precisão do braço e da acuidade da visão, havia um caminho a realizar, aquele que vai do corpo do caçador ao corpo da presa. Esta presa, porém, só na aparência era alguma coisa exterior ao caçador. Enquanto a presa fosse figurada como um objecto externo ao sujeito que caça, ela seria inatingível. A caça seria antes um exercício de fusão de predador e presa e, na prática, o caçador caçava-se a si mesmo projectado na presa. A vida espiritual do homem resulta de uma desmaterialização dos rituais de caça. É ainda e sempre a si mesmo que o homem persegue na vida do espírito, é a si que pretende caçar, é consigo que tem a nostalgia de se fundir. A paixão da caça é uma longínqua reminiscência dessa actividade do espírito, é o sintoma de um desejo esquecido e recalcado de se descobrir a si mesmo. Onde há uma paixão humana pode-se suspeitar quase sempre uma experiência espiritual fundamental que se perdeu, recalcou ou perverteu.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Haikai do Viandante (117)

Claude Gellée - Amanhecer

Clarão na manhã,
abres um sulco nos céus:
da noite, veio o dia.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Sonetos do Viandante (11)

Edward Burne Jones - Amor entre las ruinas (1894)


11. De todas as palavras, uma basta

De todas as palavras, uma basta
para que nesta hora a vida valha
mais que a dor ou a raiva que nos tolhe,
mais que a alegria falsa derramada.

Esqueçamos os dias que se gastaram,
bebamos sem limite ao ano novo,
que disfarçado chega pela sombra,
onde o terror se esconde silencioso.

Não falemos de orvalhos nem de ventos,
não falemos de estios incendiados.
Procuremos a pálida palavra

que ao coração anima nestas horas,
verbo de seda e musgo que ao cantar
abre ao amor a rosa tão cansada.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Paisagens espectrais

Carlo Carra - Depois do pôr do sol (1926)

Há um momento na história do Ocidente em que, libertando-se de Deus, os homens colocaram na razão toda a sua fé e toda a sua esperança. Em muitos aspectos, a razão não desiludiu os homens e pagou-lhes com abundante generosidade o culto que lhe foi prestado. Onde, porém, os homens mais necessitavam dessa razão, ela foi impotente para os satisfazer. Libertos das narrativas teológicas e dos símbolos ambíguos que um dia tinham dado direcção à vida, esperavam que a razão lhes desse uma orientação e um sentido. Ela multiplicou-se em propostas, programas e projectos, mas o esforço redundou sempre em algo risível. Hoje, apesar do intelecto calculador e científico parecer estar instalado em terra firme, a razão é um astro declinante. Na verdade, ela é um sol que se pôs e a luz que emite tem o condão de transformar tudo numa paisagem espectral e habitada por fantasmas. Para além da submissão ao trabalho, aos interesses dos mercados e à vida material, a razão, na sua autonomia, nada mais tem para propor, a quem nela tanto confiou, do que o vazio do espírito.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (116)

Caspar David Friedrich - City at Moonrise (1817)

Noite silenciosa,
pura sombra incendiada,
negra e branca rosa.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Da solidão

Richard Wilson - Solitude (1762-1770)

Como poderemos escutar o rumor da vida? Onde ela se torna mais plena e mais significante. Só na solidão a vida deixa escutar o seu rumor. Não numa qualquer solidão, mas naquela em que espírito, mesmo se acompanhado, encontra o seu espaço e o protege contra qualquer invasão. Estar só é entrar no segredo da nossa natureza e aceitar a nossa condição. Dizer que a solidão é a nossa condição tem a vantagem de mostrar que o solitário não é o produto de nenhuma decisão heróica, mas de uma conformação com aquilo que se é. Não há tragédia nem sequer drama na solidão. O que pode ser doloroso é o medo da solidão, a fuga perante a nossa natureza, a impotência perante o segredo que nos constitui e rumoreja no fundo de cada um.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

A cidade

George Grosz - Metrópolis (1916-17)

A grande cidade é uma das tecnologias mais interessantes concebidas até hoje. Nela, o espírito encontra sempre novos caminhos, traça novas ilusões, cria novos prazeres. Nessa actividade febril, em que se descobre como criador, o espírito perde-se de si, aliena-se, e, exaurido, sucumbe às suas próprias criações. Daí a ambivalência que se sente perante a grande metrópole, o desejo de nela mergulhar e a injunção para fugir dela, como lugar de grande perdição, partir para o deserto, para aí o espírito se reencontrar e reconciliar consigo mesmo. O mais importante, porém, é que o espírito não fuja do lugar onde se encontra. Que saiba na metrópole encontrar o deserto, e no deserto descobrir a actividade fervilhante que a cidade lhe propõe.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (394)

Caspar David Friedrich - Árbol con cuervos

 394. Voam corvos sobre a árvore

Voam corvos sobre a árvore,
trazem uma sombra presa nas asas
e um rumor de saudade
quando poisam nos ramos.

Chegam e tudo escurece,
a vida, a luz do sol,
e as tarde de primavera
lembram noites de inverno.

Para que queremos a razão,
se temos um corvo na janela?
Basta-nos a névoa da manhã
e a dor do sol ao entardecer.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (115)

Thomas Cole - A Tornado (1835)

Terra e céu rasgaram-se
e o vento entrou pelo mundo:
dor e inquietação.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (393)

Edward Burne Jones - La Estrella de Belén (1890)

393. Vai chegar a noite definitiva e primeira

Vai chegar a noite definitiva e primeira,
a que nunca vem, a que nunca regressa,
a noite que não parte nem chega.
O silêncio acolhe os seus passos,
uma estrela suspende o fôlego
e abre-se como um farol no horizonte.

Os anjos deixaram de levitar,
os reis perderam-se no deserto
e os pastores esqueceram os rebanhos.
A vida oscila entre tumultuosas margens
e dezembro quase morto ergue-se
para que no homem haja Deus por imagem.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (114)

Alexander Cozens - A Wooded Path

Árvores e luz,
senda aberta na floresta.
Sombra, sombria sombra.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Do Advento ao Natal

Robert Campin - The Annunciation (1420-1440)

Poder-se-á pensar que, com a vinda do Natal, estamos a chegar ao fim do Advento. O Advento é sempre um tempo de expectativa, a expectativa da chegada. Se ultrapassarmos uma leitura racionalizante da simbólica cristã, poderemos compreender que o Advento não é uma mera época onde se prepara a vindo do Cristo, mas símbolo de uma expectativa eterna da chegada do também eterno Natal desse Cristo. Isto permite-nos pensar que todos os momentos do ano litúrgico são sombras temporais, símbolos materiais e relativos, de um conjunto de símbolos eternos e absolutos. Sao símbolos de outros símbolos. A sua imersão no tempo histórico e no tempo litúrgico comporta, então, uma ambiguidade. 

Por um lado, torna compreensível à razão e ao sentimento dos homens um conjunto de mistérios que não são nem racionais nem afectivos, que não pertencem ao tempo mas àquilo que está para além do tempo. Esse tornar acessível à dimensão psicológica do homem aquilo que ele não pode compreender significa uma convocação. Convocação para se elevar do que é sensível, afectivo e racional  para aquilo que ultrapassa a compreensão permitida pelo uso habitual do psiquismo humano. Convocação para o homem se elevar da dimensão histórica à dimensão da eternidade. Estes símbolos que estruturam, no cristianismo, a dimensão temporal da vida humana são aberturas para o que não é temporal, portas por onde o viandante poderá entrar e elevar-se ao mistério eterno do Ser.

Por outro lado, o facto desses símbolos se terem historicizado e ganho um lugar no calendário - no calendário litúrgico e no calendário civil - pode ter o efeito de obstruir a compreensão para a natureza fundamentalmente simbólica desses acontecimentos e reduzi-los a puros eventos históricos idênticos à queda do Império Romano ou a derrota de Napoleão em Waterloo. Reduzidos a acontecimentos históricos plasmados no calendário civil e litúrgico, os símbolos presentes no cristianismo tornar-se-ão a referência a coisas relativas e passageiras, cuja realidade ontológica não diferirá daquela que têm os acontecimentos humanos. Por isso, será importante recordar que este Advento que se aproxima do fim não é mais do que a sombra de um Advento eterno, expectativa e esperança absolutas.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (113)

Camille Pissarro - A View from Louveciennes (1870)

Uma nuvem rompe
a brancura azul do céu.
Presságio de inverno.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (392)

Asher Brown Durand - A Pastoral Scene (1858)

392. Quando olho as paisagens campestres

Quando olho as paisagens campestres,
penso no lento extermínio da terra,
nas ruas secas e vazias da cidade,
na perfeição que tudo levou.

E, em mim, acorda-se o vozear dos sinos,
o traço escuro de uma silhueta,
uns cabelos brancos sob o sol de janeiro,
alguém que passava curvado pelo tempo.

Pego em tudo isso e deixo coalhar a memória,
apago a luz que ela trazia consigo,
e carrego o peso das horas
para o esconder no silêncio do campo.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (391)

Louis-Welden Hawkins - Procesión de las almas o Navidad, cuadro místico (1893)

391. O sopro silencioso de quem passa

O sopro silencioso de quem passa
e traz uma luz sobre a terra.
O rumor de um olhar na madrugada
e o barqueiro que exausto te espera.
A canção dedilhada num coreto
e o sinal breve que nos escapa.

Se fosse o meu destino ser poeta,
sob os umbrais escreveria
longas cartas de amor,
um tratado sobre a alma
e o texto breve de um epitáfio.

Mas aquele que escreve não tem destino,
mero sopro no silêncio tardio,
rumor de água e sinal de passagem.
De nada lhe vale a memória
nem as preces que ao coração exaltam.
Escreve na vida minguada
e aguarda a noite para que os olhos se fechem.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Da pobreza e da miséria

Jacob Lawrence - The Migration Series. Panel 10: They were very poor (1940-41)

Só a partir do momento em que a pobreza se tornou uma noção exclusivamente económica é que se passou a opor, sem qualquer desvio, à riqueza. O conceito de pobreza teve uma amplitude metafísica, hoje perdida, que encontramos nos grandes místicos (por exemplo em mestre Eckhardt) e em Espinosa que nos fala da potentia da pobreza. Nesta aceção, os pobres viviam da sua própria pobreza, da sua perfeição intrínseca. E que riqueza era essa? A autonomia total, a força imensa de quem não tem nada e não quer nada e, por isso, escapa à apropriação e à lógica da propriedade. Assim entendida, a pobreza não se opõe à riqueza, mas à miséria. [António Guerreiro, Atual (Expresso de 15/12/2012), p. 36].

Todo o texto de António Guerreiro merece ser lido. Não diria, com o autor, que a pobreza teve uma amplitude metafísica, mas que ela constituiu e constitui - pois apesar de tudo não se perdeu por completo - um exercício físico e psicológico destinado a preparar o ser humano para a experiência, essa sim, metafísica. Esta experiência metafísica é aquilo que os místicos chamam a união com Deus, na qual o homem se abre para que desça sobre ele a presença do Absoluto. Tornar-se pobre significa nada ter, nada querer e nada poder, uma ascese de desprendimento e de desapossamento de si mesmo. 

A riqueza que essa pobreza permite, contudo, não é a que deriva da "sua perfeição intrínseca", pois, neste caso, era ainda colocar-se na esfera da propriedade, na esfera onde se possui a sua própria perfeição. Aquilo, porém, que é exigido ao homem é que a sua própria perfeição seja abandonada, pois não passa de uma ilusão do ego, de uma estratégia egoísta. A única riqueza reside na graça que o homem recebe do Alto, cuja presença ou ausência é completamente imprevisível, pois o Espírito, como se sabe, sopra onde quer.

Este era um ideal regulador que conduzia alguns homens e mulheres ao convento e, ao mesmo tempo, servia de farol que indicava a rota que os homens que viviam no século, entregues às paixões do mundo, deveriam seguir ou, em última análise, aspirar. A verdadeira riqueza era, desse modo, aquilo que não possuíamos, aquilo que uma dádiva gratuita fazia descer sobre os homens e que, por instantes, os raptava da sua radical pobreza (aquela que deriva de serem feitos de pó) e os elevava à luz do Absoluto e do Eterno. Num tempo de advento, é bom não esquecer tudo isto, pois na economia simbólica do cristianismo, não é por acaso que o Filho de Deus - curiosamente chamado, o Filho do Homem - nasce no ambiente mais pobre que se possa imaginar. Não é a pobreza que é o essencial, mas aquilo que desce sobre ela.

Mas esta pobreza e aqueles que a ela se entregam nunca podem advogar a miséria que atinge os homens fruto da avidez e do egoísmo de outros homens. Aquilo que as nossas sociedades produzem não são pobres, mas miseráveis. Miseráveis porque destituídos dos elementos materiais mínimos necessários a uma vida decente, mas também miseráveis, os outros, porque a cobiça da riqueza os torna incapazes de estabelecer laços com aqueles que forçam a tornar-se escravos. A verdadeira pobreza liberta o homem, mas a miséria escraviza-o. E as nossas sociedades são sociedades em que escravos e miseráveis ricos dirigem e sugam outros escravos desapossados pela violência ou pela artimanha da lei. É contra esta miséria que a pobreza do desprendimento se deve constituir como o padrão alternativo e a voz, ainda que silenciosa, acusadora.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (112)

James Juszczyk - Brief (1974)

No céu um arco-íris.
As cores suspensas cantam
um mundo feliz.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (390)

Vincent Van Gogh - Almiar en un día de lluvia (1890)

390. Não há rio que justifique tanta água

Não há rio que justifique tanta água
nem tristeza que acolha tamanha dor.
Tudo se dissolve nestes dias,
a vida como ela foi,
a esperança que a ilusão trazia,
a casa onde a estirpe foi sonhada.

No futuro, tudo será melhor, dizem.
Mas da minha janela só vejo folhas caídas
e nenhuma primavera as trará de volta.
Só vejo luzes amarelas
que iluminam a amargura que escorre do céu
e alaga ruas soturnas e vielas fechadas.

Encosto-me à vidraça e olho a água que cai
e tudo em mim se esvai,
escorre lentamente para o chão,
deixa uma mancha de sombra azul
no lugar branco e calcinado
onde um dia sobre a tua poisei a minha mão.