Se o corpo cede, o espírito, solidário, torna-se frágil e impotente. Sob o efeito de uma virose, as dores do corpo invadem a consciência, ocupam todo o horizonte e tudo se torna nebuloso. Como pensar claro e distinto? Como afundar-se no esquecimento de si? A dor, pequena que seja, é sempre um exercício de narcisismo, um ver-se contínuo ao espelho, agora um espelho deformado que devolve uma imagem lamentável e lamentosa de si mesmo. Talvez um contínuo exercício da dor permita a alguns esquecê-la e deixar o espírito livre da submissão às desventuras da carne. Mas quão longe se teria de ir no caminho para conseguir tal independência espiritual? Talvez a dor não seja o caminho para a libertação do espírito, talvez a dor seja ainda um exercício de submissão do espírito ao império material do corpo.
domingo, 26 de fevereiro de 2012
sábado, 25 de fevereiro de 2012
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012
Épocas de dissipação
Há épocas de pura dissipação. O espírito vagueia incapaz de tomar um rumo, e o corpo fica prisioneiro desse espírito débil e inconstante. Tudo se dissolve e nada de produtivo, seja em que âmbito for, é gerado. O espírito parece perdido no espelho, num exercício de narcisismo sem fim. Depois, mais uma vez, há que voltar para a pobreza essencial, para o vazio de si, e esperar que uma graça devolva espírito e corpo à vida. Esse exercício de humildade, muitas vezes, só parece possível por um longo período de humilhação, no qual nos comprazemos nas pequenas ilusões que capturam a consciência e aniquilam a atenção ao essencial.
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012
Poemas do Viandante (244)
244. CINZAS PÓ
E LAMA
de onde veio
esta ânsia
desejo
animal
de vida à
vida
acrescer
numa
angústia de infinito
num saber
sem saber
e esperar
o corpo
pó no pó da
terra
e a vida no
horizonte
onde os
vivos
não vivem
são apenas cinzas
pó e lama
segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012
sábado, 18 de fevereiro de 2012
Poemas do Viandante (243)
243. TIRÉSIAS
que trazes
tu agora
na tua
cegueira?
ah esses
mistérios
e a sombra
que a vida
sobre eles
derrama
o olhar
vazio
a palavra sábia
no terror
das trevas
o dardo
atirado
aos olhos de
édipo
o infeliz senhor
a rainha
morta
o cruel
destino
dos filhos
traçado
pela dor e o
sangue
tanta luz
contigo
trazes e
derramas
sobre a vida
frágil
e inquieta
dos homens
que escondes
agora?
que dor sabes
tu
vive no
horizonte?
que hora que
dia
sobre nós
cairá
a sabedoria
nascida na
luz
terrível e
opaca
de tão cruel
olhar?
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012
De Eros e do Espírito
Van Dick, Eros e Psyche
Tradicionalmente, a paixão erótica é observada como inimiga da experiência espiritual, como um obstáculo ao caminho que cabe aos viandantes. No entanto, é possível que o problema não esteja em Eros, no amor erótico, mas no pathos, no estado de captura e de cativeiro em que os amantes permanecem presos pela paixão, pelo estado de passividade a que ficam sujeitos. Essa passividade é o contrário da livre actividade do espírito, aquele que sopra onde quer. A passividade da paixão impede que os amantes percebam a própria experiência erótica para além da corporalidade e da materialidade dada pela sensibilidade. A generalidade dos que se amam aproximam-se, num primeiro momento, por uma afecção física. Um corpo é tocado por outro corpo, em congruência com os desígnios biológicos da espécie. Raramente, este patamar é ultrapassado. Daí, por exemplo, a moralização da sexualidade feita pelas religiões, concomitante à sua sacralização. No entanto, não é um destino que o amor erótico fique encerrado na dimensão da passividade passional, passe a redundância. Ele pode ser uma via de acesso à experiência espiritual, à quebra da pura imanência dos sujeitos, à experiência da transcendência.
E a experiência contrária? Será possível que aqueles que se atraíram, numa primeira hora, pelo espírito e façam a experiência de uma comunhão espiritual e da transcendência materializem esse seu amor no amor erótico, na experiência dos corpos? Caberia interrogar se esses corpos são corpos idênticos aos daqueles que apenas vivem da atracção física. A perspectiva de quem olha não alterá a natureza daquilo que é olhado? A erotização do espírito poderá ser vista como uma queda, mas também pode ser compreendida como a descida do espírito sobre a carne e um processo de espiritualização desta. Desse ponto de vista, o amor erótico será assumido, à partida, como fazendo parte de uma experiência global dos estados múltiplos do ser, onde o perigo de os amantes ficarem encerrados na paixão e na passividade será muito menor do que no primeiro caso. Tudo, no amor, faria então parte do caminho do espírito. Mais, a própria cisão entre corpo e espírito perderia sentido, não havendo mais que um ser que passa por múltiplos estados existenciais.
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012
Poemas do Viandante (242)
242. NOITE
DE INVERNO
a noite de
inverno
desliza
tranquila
nas rodas do
mundo
o grito do
corvo
acende o mar
de estrelas
no céu
e no frio da
casa
ouve-se
cantar
o fantasma
pálido
de quem já
morreu
terça-feira, 14 de fevereiro de 2012
domingo, 12 de fevereiro de 2012
Faça-se a Vossa Vontade!
Salvador Dali
Faça-se a Vossa Vontade! Aqui enuncia-se a máxima suprema do cristianismo, a mesma que conduziu Cristo à cruz. Há, contudo, um elemento perturbante nessa enunciação. Quanto nessa enunciação exprime a nossa própria vontade ou, melhor, o nosso desejo que a Vontade de Deus corrobore a nossa própria vontade, que seja um amparo e um legitimador do nosso egoísmo? Mesmo quando a enunciação é feita a posteriori, quando algo contrariou tragicamente o nosso desejo, não estamos ainda perante a enunciação de um desejo de apaziguamento da dor? Os seres humanos são seres desejantes e a sua vontade é inclinada radicalmente pela pluralidade dos seus desejos particulares e egoístas. O escândalo do cristianismo não reside na ideia exterior de que o Filho de Deus morreu na cruz pela salvação dos homens. O escândalo do cristianismo está todo nessa proposta de uma radical crucificação da vontade própria, inclusive dessa vontade que, ao tomar voz, diz: Faça-se a Vossa Vontade. Essa aprendizagem da morte é o desafio mais extraordinário que o cristianismo faz aos homens. Ela significa a extinção do desejo para que algo, nessa morte do ser desejante, se manifeste. Não um outro tipo de desejo, mas um outro tipo de vida. A vida desejante é uma vida cujo centro reside na experiência de finitude e de incompletude. A outra vida surge, no cristianismo, como promessa de Vida plena que, quase de um modo dialéctico, realiza o desejo pela sua morte, pela sua crucificação.
sábado, 11 de fevereiro de 2012
Turbulências
A palavra turbulência tem, na sua pluralidade semântica, uma feliz capacidade de captar certas fases da vida humana. Por um lado, ela remete para a dimensão psicológica do desassossego e da perturbação; por outro, ela descreve, ao nível da Física, os movimentos irregulares dos fluidos, nos quais as diferentes partículas que passam em determinado ponto podem variar, no tempo, em grandeza e direcção. Há momentos da vida que ao desassossego ou perturbação do espírito corresponde uma conduta irregular do corpo - de um corpo que nessas horas se fluidifica -, como se essa irregularidade e variabilidade direccional e essa perturbação se reforçassem mutuamente. Será um exercício inútil determinar qual dos fenómenos é causa do outro. A sua concomitância mostra antes a unidade do espírito e do corpo. Mais importante que isso, porém, é perceber o que significa essa turbulência que por vezes atinge o ser humano. Que provações lhe são propostas? Que experiências se abrem ao corpo e ao espírito? O que, vindo de fora, pretende romper a imanência em que nos colocamos e protegemos da vida? A turbulência é sempre um sinal da transcendência, um apelo à abertura. Quem não se recorda da turbulência que atingiu Paulo de Tarso na estrada de Damasco? Por vezes, somos levados a considerar que o episódio paulino como algo excepcional. Contudo, cada ser humano passa inúmeras vezes por essa experiência da turbulência sem reconhecer que se encontra na sua estrada de Damasco.
sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012
A viagem como metamorfose existencial
Pois não são as obras que nos santificam, somos nós que devemos santificar as obras. Quão santas possam ser as obras, elas nunca nos santificarão enquanto obras. Contrariamente, na medida em que possuímos um ser santo e uma natureza santa, somos nós que santificamos todas as nossas obras, quer se trate de comer, de dormir, de velar ou de fazer seja o que for. [Maitre Eckhart, Entretiens Spirituels, IV]
O texto de Eckhart, apesar da provecta idade, pode ainda surpreender. Desloca a questão da santificação do domínio da moral para o da ontologia. Não se trata daquilo que fazemos mas daquilo que somos, não se trata da intervenção no mundo, mas da conversão existencial, da metamorfose ontológica. Trata-se que o homem, no seu ser e no seu fundo, seja perfeitamente bom. Dito de outra maneira, a experiência da bondade transforma a minha natureza. Mas essa experiência da bondade é dada pela abertura a Deus. Como Eckhart explica no ponto V dos Entretiens Spirituels, essa experiência implica que todos os nossos esforços tendam a compreender a grandeza de Deus, que tudo o que há em cada um seja voltado para Ele. O importante deste texto eckhartiano reside na focalização central da vida religiosa. Esta não está centrada nas regras morais, mas na experiência existencial de uma transformação de si à luz do ser divino.
A qualidade moral das nossas acções não reside no facto de elas serem um caminho para a santidade. Estas acções, as que pretensamente santificariam os homens, como dirá, séculos depois, Kant, não têm qualquer valor moral. As boas acções são aquelas que resultam da bondade do próprio ser que as pratica. É ele que santifica as acções e não estas que o tornam santo. É verdade que, na economia global da vida em sociedade, é bom que as acções praticadas pelos agentes tenham uma aparência de bondade, mesmo que sejam praticadas por alguém que não se confrontou, ou nem pensa confrontar-se, com a metamorfose do seu próprio ser. Mas na economia da viagem que cabe a cada viandante efectuar, essas acções não possuem qualquer utilidade efectiva, podendo mesmo ser um obstáculo ao caminho. A viagem é uma experiência existencial e não uma aplicação ritualizada de mandamentos morais.
quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012
terça-feira, 7 de fevereiro de 2012
domingo, 5 de fevereiro de 2012
sábado, 4 de fevereiro de 2012
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012
Vertigem
Esta indecisão que de tudo se apodera, esta sombra que cai sobre os dias, esta neblina que se cerra sobre o olhar. Como é sombria a luz natural da razão. Estranho lugar é o do homem, a meio caminho entre terra e céu. Os olhos erguem-se para o alto, mas o corpo submete-o à lei da gravidade. A vertigem que de mim se apodera não é mais que a luta entre duas naturezas que há muito perderam a harmonia. Como pode a razão iluminar aquilo que os deuses obscurecem?
Etiquetas:
Caminho,
Luz,
Natureza do homem,
Razão
segunda-feira, 30 de janeiro de 2012
domingo, 29 de janeiro de 2012
Pobre de espírito
(imagem daqui)
Vejam, nunca até agora, nesta vida, alguém abandonou as coisas ao ponto de nada mais ter para abandonar. São raras as pessoas que têm isso em consideração e se conformam com tal coisa. Compensação verdadeiramente equitativa e justa: tanto quanto tu sais de todas as coisas, tanto quanto sais verdadeiramente de tudo o que é teu, tanto, nem mais nem menos, Deus entra em ti com tudo o que é seu. [Maitre Eckhart, Entretiens Spirituels IV]
Onde, nesta curta passagem de Eckhart, encontramos um lugar para a fé? O místico renano não fala de nenhuma das virtude teologais, não sublinha um dogma, apenas propõe uma forma de agir. Desapropriar-se de si, abandonar tudo o que é tido como seu, quebrar os laços psicológicos do desejo com as coisas, consigo mesmo e até com o desejo de salvação. Abandonar significar abandonar radicalmente. Mas nunca, nesta vida, ninguém se abandonou ao ponto de não ter mais nada a abandonar. A fé reside neste abandono radical, reside na certeza de que cada vazio do espírito nascido do abandono é preenchido pela entrada de Deus. Abandonar-se significa ser pobre de espírito. Uma pobreza radical. Assim como é no presépio de Belém que Cristo nasce, é no mais vazio do espírito que Deus encontra o seu presépio, e ocupa o espaço que a pobreza lhe proporciona. A pobreza espiritual - que não é estupidez ou falta de inteligência - é a virtude essencial no caminho de qualquer viandante. A fé não está na ligação afectiva a uma imagem mais ou menos abstracta ou mais ou menos infantil da divindade, mas no abandono de si à expectativa da chegada de Deus.
sábado, 28 de janeiro de 2012
sexta-feira, 27 de janeiro de 2012
terça-feira, 24 de janeiro de 2012
segunda-feira, 23 de janeiro de 2012
domingo, 22 de janeiro de 2012
Da Vontade e da vontade própria
Aquele que quer começar uma nova vida ou uma actividade deve ir ao seu Deus e pedir-Lhe, com muito fervor e um completo recolhimento, para regular tudo pelo melhor, tudo ao Seu gosto e como Ele o julgue mais digno; não deve nem querer nem procurar o seu próprio bem, mas unicamente a santa vontade de Deus, mais nada. E seja o que for que Deus então lhe envie, deve aceitá-lo como vindo directamente de Deus, compreendê-lo como o que melhor lhe pode acontecer e ficar inteira e absolutamente satisfeito com isso. (Maitre Eckhart, Entretiens Spirituels, XXII)
O essencial da via reside nesta atitude de total e completa confiança nos desígnios de Deus. Essa confiança, porém, significa o abandono de toda a vontade própria, a morte dessa vontade, e a pura aceitação do provir como palavra e vontade divinas. Este tipo de acção contemplativa, de uma acção que não espera senão o que a Vontade lhe envia é o mais elevado grau de acção. A dificuldade reside, contudo, na erradicação da vontade própria, de uma vontade fundada no medo e no desejo.
Subscrever:
Mensagens (Atom)