Giovanni Battista Piazzetta - El sacrificio de Isaac (1712-14)
Naquele tempo, muitos dos judeus
que tinham vindo a casa de Maria, ao verem o que Jesus fez, creram nele. Alguns
deles, porém, foram ter com os fariseus e contaram-lhes o que Jesus tinha
feito. Os sumos sacerdotes e os fariseus convocaram então o Conselho e diziam:
«Que havemos nós de fazer, dado que este homem realiza muitos sinais
miraculosos? Se o deixarmos assim, todos irão crer nele e virão os romanos e
destruirão o nosso Lugar santo e a nossa nação.» Mas um deles, Caifás, que era
Sumo Sacerdote naquele ano, disse-lhes: «Vós não entendeis nada, nem vos dais
conta de que vos convém que morra um só homem pelo povo, e não pereça a nação
inteira.» Ora ele não disse isto por si mesmo; mas, como era Sumo Sacerdote
naquele ano, profetizou que Jesus devia morrer pela nação. E não só pela nação,
mas também para congregar na unidade os filhos de Deus que estavam dispersos. Assim,
a partir desse dia, resolveram dar-lhe a morte. Por isso, Jesus já não andava
em público, mas retirou-se dali para uma região vizinha do deserto, para uma
cidade chamada Efraim e lá ficou com os discípulos. Estava próxima a Páscoa dos
judeus e muita gente do país subiu a Jerusalém antes da Páscoa para se
purificar. Procuravam então Jesus e perguntavam uns aos outros no templo: «Que
vos parece? Ele virá à Festa?» (
João 11,45-56) [Comentário de Leão
Magno
aqui]
Este passo de João é essencial para compreender, do ponto de vista da
elite sacerdotal e intelectual judaica, a morte de Jesus. Segundo a perspectiva
de Caifás, a qual parece ter sido seguida pelo Sinédrio, Cristo deveria ser
sacrificado. A morte de Cristo não é um acto meramente político, mas, da
perspectiva dos seus opositores judaicos, um acto religioso, um sacrifício
humano que visa salvar a nação ou povo e congregá-lo, fomentando, desse modo, a
sua unidade. Há assim uma clara consciência de que aquela morte tem por finalidade
fazer frente a uma dada crise comunitária através de uma saída sacrificial.
Estamos perante uma prática arcaica, semelhante, por exemplo, ao sacrifício de
Ifigénia pelos helenos, antes de e para rumarem a Tróia.
Estamos perante a génese da ruptura entre o monoteísmo judaico e o
novo monoteísmo que emerge com Cristo. A ruptura dá-se não na compreensão da
morte de Cristo como um sacrifício, mas na interpretação da finalidade e
consequências desse sacrifício. Do ponto de vista da elite judaica, o
sacrifício humano de Jesus de Nazaré inscreve-se numa longa tradição
sacrificial presente na generalidade das religiões antigas. O sacrifício
inscreve-se numa lógica utilitarista. Alguém – ou alguma coisa – é sacrificado
para uma comunidade ou indivíduo obter alguma coisa. No caso presente, o
sacrifício tinha um fim explícito: manter a comunidade viva e assegurar a sua
unidade.
A interpretação cristã, contudo, é surpreendente, mais uma vez. O que
vai ser imolado não é um simples ser humano, mas um homem que é filho de Deus.
As consequências serão completamente diferentes daqueles que foram propostas,
no Sinédrio, por Caifás. Rompem com a limitação étnica e põem de lado uma visão
política de âmbito paroquial, para usar uma expressão anacrónica. O que está em
jogo é um sacrifício que liberte o homem, que o salve. Não este ou aquele judeu
ou o povo eleito no seu conjunto, mas todo e qualquer homem.
Estamos, de facto, perante uma primeira e efectiva globalização
espiritual, para utilizar um termo também ele intempestivo. O sacrifício
crístico visa preservar a humanidade e assegurar a sua unidade, visa congregar
todos os homens num só espírito. A diferente interpretação do sacrifício de
Jesus reflectiu-se, como dois mil anos de história o mostraram, no destino do
judaísmo e do cristianismo, encerrando o primeiro no âmbito de uma
particularidade étnica originária e fazendo do segundo um movimento espiritual
que, pela sua essência, tem um cariz universal.
É esta natureza universal do sacrifício crístico – e não meramente
étnico-cultural – que traz uma segunda e definitiva consequência: a partir do
momento do sacrifício Cristo, todo e qualquer sacrifício humano é compreendido
como ilegítimo, como um mero crime contra a pessoa. Na verdade, o sacrifício de
Cristo trouxe consigo o imperativo da abolição de todo e qualquer sacrifício
humano ou mesmo o sacrifício de outros animais. É a partir desse mesmo
sacrifício que, retrospectivamente, podemos compreender a ilegitimidade de
todos os sacrifícios humanos que a história dos homens registou. Deparamo-nos
aqui com um ponto limite: a utilidade do sacrifício crístico foi a de mostrar a
inutilidade – e o carácter criminoso – de todo e qualquer sacrifício de uma
vida.