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sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Sonetos de Outono (10)

Alfred Sisley, Bank of the Seine in Autumn, 1876

Como um pássaro já ferido canto

uma canção feita silêncio e dor.

Oiço o ritmo ancestral na fímbria

das folhas secas, no vazio da alma.

 

Trago em mim cada Outono vivo,

cada Outono preso aos dias passados,

ao calendário feito de erva fresca

e de memórias para sempre mortas.

 

Deixo que o ser na luz se revele livre,

na liberdade do mistério aberto

como um livro de orações sagradas.

 

Vou pela estrada sem destino claro,

sem o fulgor dos dias de Estio, acesos

no esquecimento do ardor da noite.

 

Dezembro de 2023 

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Sonetos de Outono (9)

 
Vincent van Gogh, Camino con sauces podados, 1889

Nascem desejos em turvado céu.

As nuvens correm no silêncio vivo,

anunciam chuva entre os ramos secos.

Flores e frutos da memória caem.

 

Os dias obscuros, uma fria tristeza,

pálido sol, rosas de cor amarga,

eis o Outono no lençol de linho

tecido em dia de tempestade e fúria.

 

Soltam-se ventos sobre as ruas vazias.

Olho a tarde em abrigo cálido,

deixo correr ao vento o sal do mar.

 

Pobres, os lábios exaltados sopram

velhas canções de vinho, luz e mágoa.

Eu oiço, oiço-te, ó voz silente.

 

Dezembro de 2023


quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Sonetos de Outono (8)

Caspar David Friedrich, Autumn, 1826

 As cegas sombras do Outono pairam

sobre as ruas vazias da cidade velha.

O tempo corre entre folhas secas

presas nos ramos de cansadas árvores.

 

Ouvem-se gritos de amargura tensa,

rasgam a tarde como corvos tintos

pela tristeza de perdidas guerras,

velhos ardores dum império findo.

 

Deixo o espírito vogar nas sombras,

a tarde as traz presas ao corpo gélido,

ao abandono da memória breve.

 

Passo o cabo das tormentas, ergo

as mãos aos astros no licor amargo

dos dias de chuva, no frio mar da morte.


Novembro de 2023


sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Sonetos de Outono (7)

Camille Pissarro, Outono, 1876

Sol de Outono, matinal promessa

de novos mundos, novas terras, nova

luz no orvalho da aurora pálida,

nos desavindos corações sombrios.

 

Traz o fulgor a estes dias cegos,

às noites frias onde o musgo verde

amadurece na memória muda

de um presépio esquecido, morto.

 

Oiço o silêncio da floresta viva.

Vejo-o dançar na cornucópia alegre

destas cidades de cristal e pedra.

 

Canto o devir vão da manhã de bruma,

o abandono do jardim perene

ao sal de fogo, aos sinais de Inverno.

 

Novembro de 2023


segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Pintura e haikus (35)

Bodil Obberg Pettersson, Early Autumn, 1980 (aqui)

As cores de Outono
deslizam na tela fria.
São sombras sonâmbulas.


quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Sonetos de Outono (6)

Wassily Kandinsky, Autumn in Bavaria, 1908

Dança comigo esta valsa viva.

Os corações tão desejosos cantam

os dias de Outono, a chegada alegre

do vinho novo, sangue, sol e água.

 

No céu, os pássaros desenham símbolos,

inscrevem letras na paisagem fria,

presos no voo entre terra e nuvens,

soltos no fogo que alastra trémulo.

 

Oiço o silêncio no rugir do vento

ou no rumor das tuas mãos abertas,

leves, na dádiva da noite escura.

 

Toco os teus lábios com o vinho novo,

bebo-te, casta, no deserto árido.

Viajamos ébrios na vertigem muda.


Novembro de 2023


sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Sonetos de Outono (5)

William B. Post, White Mountains, N. H. from Fryeburg Maine, 1900-1910

Folhas de Outono, caminhamos livres

na liberdade da floresta rude.

Vamos curvados no carril do tempo

e levantamos aos céus olhos lívidos.

 

Na cornucópia da abundância vemos

as velhas árvores caídas, mortas

no desmedido desejar dos dias.

Sinais do vento que passou silente.

 

Estreitas ruas levam do mar à morte,

onde os anjos te aguardam cegos

para a terrível luz das ervas secas.

 

Pela penumbra avistamos luas,

pequenos sóis de gelo e âmbar,

a cintilante flor de luz e fogo.


Novembro de 2023

sábado, 4 de novembro de 2023

Sonetos de Outono (4)

Camille Corot, Italian Landscape near Marino in Autumn, 1826 – 1827

Dias de Outubro. Uma ave canta

e eu medito na ruína próxima,

a casa pobre, o nome ferido

por entre sombras e silêncios secos.

 

Erguem-se pássaros de luz e trevas.

Os rios deslizam devagar, sem rumo.

Subitamente, o mar cala a voz

nas ondas frias, no vagar do vento.

 

Não tenho herança a deixar na morte,

nem a memória reterá o nome

por mim herdado ou talvez roubado.

 

Oiço-te, pássaro da noite a vir.

És a renúncia ao fulgor dos dias.

És os escombros duma vida vã.

 

Outubro de 2023


quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Sonetos de Outono (3)

Dórdio Guimarães, Casas de Malakoff - Paris, 1923

Chegou a hora de dobar o fio

das tardes calmas pela luz cobertas,

das noites ébrias no cruel temor

escrito a negro em coração cansado.

 

Rompem as árvores a linha da sombra,

abrem os ramos outonais ao vento,

as aves poisam, são crianças de água

abandonadas no desvão das ruas.

 

Atravessei maravilhado o bosque,

ouvi o fogo crepitar nos campos,

vi uma cruz de dor na terra rude.

 

Escuto os lobos murmurar ao longe,

dentro da minha carne crua e fria.

As folhas caem, e eu caio com elas.


2023

 

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Sonetos de Outono (2)

Georges Rouault, Automne, 1936

Ó pura ascese destes dias de sombra.

Ó pura glória do devir sem mácula.

Corro outonal pelo desvão do tempo

e canto livre das mágoas da vida.

 

Uma elegia flutua na voz do vento,

toca na pele das mulheres nuas,

toca a suave nostalgia da morte

com a ciosa luz do puro amor.

 

Deixo aos anjos o reger dos dias,

o vão cuidado com a vida breve,

as horas presas em sombrio silêncio.

 

Busco na boca das mulheres sôfregas,

incendiadas no furor do fogo,

a água morta do meu sangue vivo.


2023

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Sonetos de Outono (1)

George Morland, Peasants in front of a Hut, ca. 1790

Um doce frémito anuncia o tempo

onde o vinho correrá nas bocas

e o silêncio como sombra amena

virá solícito sarar as mágoas.

 

As folhas secas são sinais de morte,

signos etéreos de uma vida a vir

entre a dança das violetas trémulas

e o desejo frio de corpos pálidos.

 

Longe, o Inverno apressado marcha

com passos rudes e prenúncios negros.

Tudo estremece no cansado mundo.

 

Alegres, castos, elevemos cálices

de vinho puro, a vida flui nos lábios

e o coração fulgura vivo e ávido.


2023

 

domingo, 24 de setembro de 2023

Pintura e haikus (34)

Meyer Schapiro, Abstract Landscape, 1971
 A canção da terra
da Primavera ao Inverno.
Quatro estações.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Sulcos de Verão 12

Ernst Ludwig Kirchner, Fehmarn houses,1908

Voraz, adormece o Verão,

entrega-se à sombra das folhas,

ao secreto pulsar da sede.

 

A terra ao céu pede água,

um clamor surdo no deserto,

o frio desejo das florestas.

 

Deixemo-nos contaminar

pelas promessas de Outono,

pelo pão e o vinho nas bocas.


Setembro de 2023

 

domingo, 10 de setembro de 2023

Sulcos de Verão 11

Vincent van Gogh, Paisaje cerca de Auvers bajo la lluvia, 1890

Chuvas de Verão sobre a terra

são memórias vindas do céu

para revigorar os dias.

 

Os homens parecem perdidos,

incapazes de olhar as águas,

incapazes de gratidão.

 

Caminho descalço no campo,

os pés enlameados riem

e eu sonho-me na infância.

 

Setembro de 2023 

sábado, 2 de setembro de 2023

Sulcos de Verão 10

Lucio Muñoz, Septiembre, 1985

De súbito, chegou Setembro

maculado por velhas sombras,

pelo carvão da nostalgia.

 

A cal das paredes recebe

a ondulação fria da luz,

o lamento triste do tempo.

 

A música do vento ecoa

pelas ruas cobertas de sílabas,

quase orações, quase silêncios.

 

Setembro de 2023

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Pintura e haikus (33)

António Areal, sem título, 1961 (aqui)

Paisagens incertas
polvilhadas de espectros.
Vozes sem palavras.

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 9

António Dacosta, Sonho de Fernando Pessoa Debaixo de uma Latada numa Tarde de Verão, 1982 (aqui)

O Verão ainda caminha,

suspenso na altivez dos dias,

preso pelo sisal das horas.

 

Distribui sonhos e promessas,

rosas pelo Jardim do Éden,

fantasias que não cumprirá.

 

Abrigo na cinza da sombra

pensamentos nunca pensados,

palavras de amor nunca ditas.

 

Agosto de 2023

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 8

Modesto Urgell Inglada, La fiesta mayor, procession

O vento do Norte reparte

as ninfas por fontes e rios,

traz aos dias os velhos mitos.

 

Agosto abre-se aos rumores

de festejos e procissões,

brilham os santos nos altares.

 

Desço a escadaria do tempo.

Sob a névoa de calor vejo

a luz de cada devoção.

 

Agosto de 2023

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Haikai do Viandante (432)

Bernardo Marques, sem título (aqui)
Sentado, um homem
sonha a sombra do tempo.
Cai a luz da tarde.

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 7

Salvador Dali, Las llamas, llaman, 1942

São paisagens feitas de fogo.

Árvores antigas em chamas

caem na terra abrasada.

 

Ao mortal silêncio das aves

respondem clamores humanos,

a úlcera do desespero.

 

Ano após ano o deserto

cresce no espólio da vida,

ergue-se, mortalha da Terra.

 

Agosto de 2023