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sábado, 7 de novembro de 2020

Arqueologias do espírito 9

Amadeo de Souza-Cardoso, Janellas e postigos, 1914
O espírito é um exímio construtor de fronteiras. A cada momento, delimita espaços, assinala estremas, tece linhas inultrapassáveis. Descontente, porém, com esse seu talento para conter a vastidão, entrega-se à tarefa de abrir fissuras no que tinha muralhado. A tentação do isolamento fecha-o, o medo da claustrofobia abre-o. Uma casa, da mais pequena e pobre ao grande palácio senhorial, não é mais do que esse jogo arquetípico de oclusão e abertura que assombra continuamente o espírito.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Arqueologias do espírito 8

Júlio Pomar, Campinos, 1963

Tocar os animais pela lezíria, traçar rotas que só os cavalos conhecem, viver da aurora ao crepúsculo no silêncio onde rumoreja a erva e o murmurar sibilante do vento. Depois, estender a mão sobre o touro, e a noite eleva-se do animal, para que uma lua de feno e sargaço encontre aí a sua casa e dela derrame a luz virginal, onde se celebrarão as núpcias sagradas entre o dia e a noite.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Arqueologias do espírito 7

Anónimo pré-histórico, Caballo ejecutado en el IV Estilo (Portel)

Desçamos no espírito do homem para nos deparamos com a hora em que nele aflorou a possibilidade de se emancipar do férreo desígnio da determinação e pensar-se como livre. Talvez tenha sido naquele instante em que, pela primeira, vez se deparou com o galope livre do cavalo, com a sua leveza, a sua graça, o rápido pisar da terra para nela se mover, para ir e vir segundo o mais íntimo arbítrio. Livre é o que se move na paisagem com a beleza pura e quase alada de um cavalo selvagem.
 

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Arqueologias do espírito 6

Francisco de Goya, La hoguera

Para o homem, como para qualquer animal ou planta, o fogo é uma terrível ameaça. Contudo foi ele que, ao ser domesticado, se tornou a protecção que permitiu à espécie defender-se dos predadores e persistir na existência. Essa duplicidade é captada, simbolicamente, nas chamas do inferno e na sarça ardente, onde o Deus de Israel habita. A perda e a salvação, ambas residem no fogo. O fascínio por ele é de tal maneira constitutivo do espírito que o amor, o supremo sentimento, é visto como fogo devorador. 
 

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Arqueologias do espírito 5

Eduardo Nery, Escadas, 1970
O uso da escada terá sido antecedido pelo recurso a outros objectos que lhe fizeram a vez. No entanto, ela inscreve-se como um símbolo arquetípico no espírito humano. Nela se combina o impulso para ascender e a sabedoria tácita do esforço. Capturado no corpo, preso à terra, envolto nas necessidades da carne, o homem transporta no fundo de si a necessidade de se elevar. Uma experiência muito arcaica ter-lhe-á mostrado que, não sendo ave, só o poderá fazer degrau a degrau, numa escada sem fim. 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Arqueologias do espírito 4

António Carneiro, Paisagem – Leça da Palmeira, 1905
Nos pequenos veleiros, de recreio ou de trabalho, manifestam-se a leveza daquilo que o vento impele e a imponderabilidade do que flutua nas águas. No lugar obscuro onde o espírito encontra a fonte originária, não encontramos apenas a presença do ar e da água, mas daquilo que com esses elementos dialoga, que os metamorfoseia de possíveis ameaças em deuses benévolos. O espírito é impelido pelos ventos e flutua sobre as águas, pois também ele, como um pequeno veleiro, é leve e imponderável.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Arqueologias do espírito 3

Manuela Marques, Espace 3, 2016
Chegados ao termo de um longo corredor sobressaltamo-nos. Uma porta interrompe a viagem e institui um enigma. Não é sem temor que a abrimos, pois não sabemos com que mundo nos vamos deparar, se benfazejo, se ameaçador, se desafiante. Cada porta, e muitas são as suas espécies, não é mais do que a projecção das portas com que deparamos quando viajamos dentro do nosso espírito. Seguimos a via e, a certa altura, somos confrontados por uma porta. Abri-la ou não é uma decisão de vida ou de morte. 

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Arqueologias do espírito 2

José Salís, Alta mar, 1920
O lugar onde um deus irado tem o reino despótico e a morada luxuosa, esse mesmo sítio onde barcos e homens desaparecem para sempre, é um reflexo do pélago perturbado que existe no mais fundo dos seres humanos. Olhamos o oceano, esmagados pela sua desmedida, temerosos das suas armadilhas, inquietos pelo sopro do vento que ondula as águas, e sentimos um frémito na fímbria do que somos. Se em nós se fizer silêncio, depressa descobrimos todos os perigos que há no recôndito da nossa alma.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Arqueologias do espírito 1

George Pierre Seurat, Forêt à Pontaubert, 1881
Nunca a floresta deixa de fascinar os homens. É o lugar onde se escondem os perigos ancestrais e, ao mesmo tempo, o abrigo perante o avanço da superficialidade que a vida civilizada traz consigo. Aquilo que toca os homens, no mais secreto que há neles, é a sensação de que viver nela, percorrê-la, conhecer-lhe os caminhos e as clareiras os torna mais autênticos, como se a autenticidade nascesse do sombrio, da súbita luz que o ramalhar do vento deixa passar, do húmus que cobre a terra.