segunda-feira, 17 de abril de 2017

Poemas do Viandante (624)

Markus Luepertz - Estilo: Tres cuadros sobre la creación de la Tierra. II. La noche (1977)

624. a morte chega a galope

a morte chega a galope
de uma esfera
de bronze
toldada de inocência
potro de feltro
abandonado
em prado de prata
                triste
transfiguração da tristeza

(09/12/2016)

domingo, 16 de abril de 2017

Estou aqui

Milton Greene - Lauren Hutton (1966)

Este cheiro a terra, de onde virá ele? Que coisa estranha, tenho braços e pernas, mãos e respiro. Como cheguei aqui? E este odor a terra que me penetra e não me larga. Esqueci o meu nome. Eu sei que, um dia, tive um nome e uma casa, filhos e marido. Depois, depois, veio uma escuridão. Que densa escuridão, inexplicável, silenciosa. E nessa escuridão já não tinha corpo e o esquecimento levou as saudades da família, da casa, de tudo. E agora estou aqui e tenho um corpo vivo e um cheiro a terra que não sei de onde vem, um cheiro que parece diluir-se. Estou aqui, mas não sei onde, nem de onde vim, nem quem sou. Estou aqui.

sábado, 15 de abril de 2017

O pintor de flores

John Yardley - Painting flowers

É o que me resta. Foi um longo caminho para chegar aqui. Está surpreendido? Imagino. Era um homem do mundo. Viajava e entregava-me, não sem êxito, à acção. Sabe tudo isso. Não calcula, porém, como era fastidiosa a minha vida. Então, decidi apagar-me lentamente. Esquecia-me dos outros para que se esquecessem de mim. É uma estratégia de êxito assegurado. O que faço? Compro flores e, depois de as contemplar, pinto-as. Falo com elas e elas respondem-me. Está enganado, não são naturezas mortas, são retratos o que faço, é a alma das flores, o seu espírito que fixo na tela. Em silêncio, elas agradecem-me.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Haikai Urbano (9)

Sebastião Salgado - Ho Chi Minh City, Vietnam, 1995

janelas rasgadas
em cimento e solidão
sonhos luz e dor

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Meditação breve (25) - Voltar a casa

Abram Efimovich Arkhipov - On the Way Home (1896)

De certa maneira, todos os seres humanos são uma espécie de Ulisses. Tudo o que fazem ou deixam de fazer tem por finalidade voltar a casa, mesmo aqueles que nunca a abandonaram.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Poemas do Viandante (623)

Manuel Rivera Hernandez - Espejo de doble amanecer (1964)

623. vem manhã perdida

vem manhã perdida
no amanhecer
vem rosto de sal
e mãos de música
espelhar-te
no espelho esquivo
da madrugada

(09/12/2016)

terça-feira, 11 de abril de 2017

Haikai do Viandante (320)

Paul Joseph Constantin Gabriël - Casas rurais junto à água na névoa da manhã

névoas matinais
caem na terra sonâmbula
segredo e saudade

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Uma carta

Johannes Vermeer - Woman Reading a Letter (1663)

Leio e releio. E o que posso dizer? Conto a distância que nos separa, essa distância que vem através das letras com que as palavras são compostas, para nos sublinharem tudo o que nos afasta, mesmo que o que nos afasta seja a lonjura que há entre ti, aí tão longe, e mim. Com estas palavras descubro o espaço e com ele componho o teu exílio e a minha solidão. Chega um papel tracejado a tinta e os cães da saudade, em vez de se calarem, ladram desvairados dentro do peito. Leio e releio e não sei o que possa escrever, não sei como açaimar os animais que me devoram a noite. Leio e rasgo a carta. Talvez assim possa esquecer-me de mim.

domingo, 9 de abril de 2017

No boudoir

Leni Junghans - In the boudoir (c. 1940)

Não, não. O que me apetece mesmo é despir-me, livrar-me da roupa, tirar os sapatos. Nua, completamente nua. Seria engraçado se aparecesse na recepção sem roupa. Um êxito. Correriam a cobri-me? Arrastar-me-iam dali para fora? Seria uma boa ideia. Já não suporto aquela gente e tenho de sorrir, quando me apetece fazer caretas. Teriam a coragem de fingir que estava vestida? Quem sabe? Mostrar-lhes os seios, os pêlos púbicos, o corpo na pura luz. Obrigá-los a fingir que não viam o que viam. Obrigá-los a disfarçar o desejo. Cegá-los. Se tivesse coragem, talvez chegasse a ser feliz.

sábado, 8 de abril de 2017

Meditação breve (24) - Velocidade

Autor desconhecido - Race car mechanic (1958 )

É indiferente se vivemos a vida segundo o signo da imobilidade ou o da grande velocidade. Não somos nós que passamos pela vida. É ela que passa por nós e, inexoravelmente, nos abandona, independentemente da velocidade com que nos deslocamos nela.