quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Correspondências

Georges Braque - O porto de Havre (1903)

Os portos são lugares especiais, não tanto por estarem ligados à navegação, mas porque condensam em si experiências que se transformaram, ao longo dos milénios, em símbolo da vida espiritual. Esta é feita de partidas e de chegadas. Também nela o viandante aporta, por instantes, em lugar seguro, para depois retomar a viagem num ambiente tão fluido e perigoso quanto a água. É esta correspondência entre a vida material e a vida espiritual que torna cada porto num lugar de fascínio  de rememoração.

Metamorfoses

Paula Rego - Bad Dog (1994)

Melhor fora que tivesse o destino de Gregor Samsa, mas isso só o descobri muito mais tarde. Agora isto... Chegar à consciência e ter palavras. Sinto já saudades dessa vida anterior, onde tinha tudo. Não é que o merecesse. Nem sempre me comportava conforme o esperado, mas a minha natureza justificava tudo. Uma manhã acordei e já não conseguia latir. O meu corpo tinha crescido e na minha boca formavam-se palavras. Levantei-me confuso. Um espelho devolveu-me uma imagem. Percebi que era eu. Não o cão que sempre tinha sido, mas um ser humano. Pior, cheirei-me e confirmei o que vi no espelho. Eu era a minha dona.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (569)

Antonio Rojas - Caminos de luz (1996)

569. a cisterna da solidão

a cisterna da solidão
enche-se de luz
tão líquida
e tão leve
se as primeiras
chuvas
do outono
trazem de
contrabando
um punhal de sol
uma lua de inverno

(04/08/2016)

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Criar contrastes

Doménec Pascual Badía - Contraste (1970)

Contrastar é uma das acções fundamentais da vida do espírito. Criar um contraste é tornar claro a diferença, retirar algo da névoa da indiferença. Criar, através do acto de contrastar, oposições não é criar conflitos, mas determinar os opostos que, ao diferenciarem-se, se harmonizam. Na vida do espírito, a harmonia nasce da oposição, do contraste, da diferença.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Haikai do Viandante (294)

JCM - Rio Cávado (2016)

no sol de verão
um rio desliza entre montes
água azul e verde

domingo, 21 de agosto de 2016

Jardins e festas

Louis Valtat - Festa no jardim (1888)

O jardim é um símbolo fundador da cultura ocidental. A dor e a morte vêm com a expulsão da humanidade do jardim do Éden. Facilmente se entende a ligação entre jardins e festas. O jardim, ao contrário do espaço que lhe é exterior, é o lugar da felicidade e do prazer inocente, o sítio da festa. Sempre que as festividades humanas se realizam num jardim, há como que uma actualização da felicidade mítica  e do prazer inocente perdidos. Toda a viagem do homem é, em última análise, uma demanda do jardim originário de onde se sente expulso.

sábado, 20 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (568)

Antonio Rojas - Autentica linea de sombra (1996)

568. na lâmina do perigo

na lâmina do perigo
resvala a linha
risca uma 
sombra
entre a luz
da queda
e a noite
da redenção

(04/08/2016)

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Voltar a si

Mery Sales - Ensimismados (1996-99)

Voltar-se para si mesmo - encerrar-se em si - pode ser sinal de uma patologia, o resultado de uma incapacidade de lidar com os outros e o mundo, o medo do estranho e do ameaçador. O ensimesmamento pode ser, contudo, um processo de cura espiritual, um retorno a si para ultrapassar as múltiplas cisões que o mundo impõe. Mais do que um encerrar-se em si será um voltar a si, um retorno a casa para, de um outra forma e ultrapassada a fragmentação, viver com os outros e no mundo. Onde reside o perigo reside também a cura.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Haikai do Viandante (293)

Javier Martinez de Aguirre - Árbol caído

árvore caída
sobre as águas da ribeira
a vida floresce

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

A sombra da solidão

Ernesto Murillo - A través del muro (1997-99)

Foi aqui que cheguei. Outros foram longe, muito longe. A vida corre-lhes bem. Invejo-os? Em tempos, pensei que sim. Hoje, não. A vida brilhante, o mundo como palco onde representam o seu papel. Nunca tive talento para o teatro e a sociedade exige-o. A princípio nem dei por isso, mas lentamente percebi que tinha optado. Fechei-me neste lugar onde não precisava de representar. Foram-me esquecendo, mas eu nunca os esqueci. Com paciência, escavei um buraco no muro. É de lá, sem que me vejam, que os observo. Tornei-me um voyeur. Sou a sombra que os assombra. A minha solidão é a sombra da sua solidão.