segunda-feira, 21 de março de 2016

As cores

Rodríguez Castelao - As cores (1931)

Também as cores assinalam o caminho na viagem. Primeiro prendem o espírito à sua diversidade. Depois, passado o encantamento estético, tornam-se uma ordem onde o viandante aprende a ler, gradualmente, o progresso no caminho que o conduz das trevas mais densas à luz mais pura.

domingo, 20 de março de 2016

Um triunfo

Laszlo Moholy-Nagy - Homem Sentado (1919)

São assim os meus dias. Levanto-me e, como uma sombra, saio de casa. Vagueio pelas ruas e sinto-me desencarnado. Tento ver-me no reflexo das montras e não encontro a imagem do meu corpo. Perplexo, volto para casa. Sento-me e leio. A vida começa nesse momento. A realidade? Valerá a pena disputar sobre o que é a realidade? Não, claro que não. Os meus olhos caem sobre as palavras e o mundo desenrola-se dentro de mim. Uma ilusão? Já não tenho idade para me iludir. Limito-me a descrever o que se passa. Os meus olhos recebem as palavras. Chegadas a mim, transformam-se, ganham densidade, tomam carne. O meu corpo anima-se, participa nas peripécias da história que leio. As horas passam. Por vezes, olho o espelho ao fundo. Ele devolve de imediato a minha imagem. Sorrio triunfante. Baixo os olhos e continuo a ler.

sábado, 19 de março de 2016

Poemas do Viandante (532)

Albert Bloch - Parable (1936)

532. Também ele falava

Também ele falava
por parábolas.
Tecia um véu de sombra
para que a luz
não incendiasse 
as palavras
e os ouvidos incautos
pudessem escutar
o fogo vocálico
que por elas descia.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Trabalho de pioneiro

Pekka Halonen - Pioneers in Karelia (1900)

A vida do espírito implica também ela um trabalho de pioneiro? Sim, claro, pois ela é um desbravar de um caminho. Contrariamente, porém, a outras dimensões da existência, a vida espiritual não é um trabalho de equipa. O pioneiro desbrava o caminho na mais pura solidão. E porquê em solidão? Porque esse caminho é o seu caminho, só a ele diz respeito, só ele o poderá trilhar. Ele é o pioneiro de si mesmo.

quinta-feira, 17 de março de 2016

Haikai do Viandante (277)

Pekka Halonen - Washing on the Ice (1900)

a desolação
trazida pelo inverno
rio de água gelada

quarta-feira, 16 de março de 2016

Da inclinação

Hsu Wei - Bambous sous la brise

Como um bambu se inclina quando o vento desliza por ele, também o homem se deve inclinar para onde o espírito lhe indicar. O erro é querer permanecer hirto se um vendaval sopra. Inclinar-se é, então, a única forma de se permanecer vertical, pois o alto não está, nessa hora, em cima, mas em frente.

terça-feira, 15 de março de 2016

Desrealização da luz

Albert Bloch - Figures in silver light

A vida do espírito é, antes de mais, uma aprendizagem da visão. Começa com a descoberta de que a visão, para a qual fomos educados e nos dá um mundo, não passa de um artifício, no qual nos prendemos submissos ao que etiquetamos como realidade. Esta, porém, não é mais do que uma realização. A realidade quotidiana não passa de uma realização embotada, que perdeu vigor e repousa na preguiça. O primeiro passo é des-realizar o real, para aprendermos a ver sob uma nova luz. O passo definitivo é descobrir que cada nova luz é sempre um artifício que há que des-realizar. Para o homem não há uma claridade última. A cada etapa ele precisa de aprender a olhar de novo.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Fogos de artifício

Darío de Regoyos y Valdés - Fuegos de Artificio

Muitas vezes, a vida espiritual não é outra coisa senão um fogo de artifício, a produção de uma grande coreografia luminosa para esconder a realidade e a incapacidade para enfrentar e lidar com essa realidade. A vida do espírito, contudo, só começa quando se deixa para trás qualquer ilusão sobre essa mesma vida. Só a realidade conta. O caminho é sempre árduo e nunca está sinalizado. A mais das vezes, é percorrido na noite mais escura.

domingo, 13 de março de 2016

Haikai do Viandante (276)

João Hogan - Paisagem

um rio de silêncio
rasga a pedra da paisagem
sol terra e água

sábado, 12 de março de 2016

Improvisação da morte

Wassily Kandinsky - Improvisation (1909)

Tremi ao tocar os lençóis frios. E se não sonhar esta noite, pensei, haverá ainda um amanhã? Deslizei para dentro da cama, apaguei a luz. Na consciência, improvisei imagens vívidas, tão opostas à frugal brancura do hotel onde me hospedara. Cavalgava em direcção a um castelo, o vento na face, o odor do animal. Adormeci, por certo. Quanto tempo? Nunca o saberei. Ao acordar, o quarto e o hotel tinham desaparecido. Ergui-me do chão de terra batida. Eram ruínas de um velho castelo. Senti uma vertigem. Aos meus olhos, desenrolava-se uma terrível batalha medieval. No meio do combate, reconheci-me, deitado por terra, trespassado por uma lança, esquecido na morte.