terça-feira, 30 de setembro de 2014

Haikai do Viandante (206)

Esteban Vicente - Series Alison - Armonía (1976)

nesta harmonia
um traço de azul desenha
a luz de outro dia

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

O preço da alegria

JCM - Black & White Dreams (2014)

Nós somos apenas
desespero e sombra.
(Federigo Della Vale)

Talvez tenha sido uma percepção idêntica à do autor do barroco italiano que tenha estado presente na criação da tragédia grega ou dos textos neotestamentários. Desespero e sombra assediam o homem e ele teme que não seja, ele próprio, outra coisa. A tragédia grega, na lição de Nietzsche, é a plena aceitação desse desespero e dessa sombra que se manifestará na alegria do espectador trágico perante o destino do herói. Nos textos do Novo Testamento o desespero e a sombra são desafiados, e a simbólica que se desprende daquelas palavras é um dispositivo para abrir um buraco por onde a luz possa chegar e banhar o desespero e a sombra humanas. Tanto na tragédia grega como nos textos evangélicos, o herói tem um trágico destino, mas esse foi o preço a pagar pela chegada da alegria.

domingo, 28 de setembro de 2014

Metáforas, metáforas

JCM - Time on space (2006)

Devo a Joseph Campbell a visão de que os enunciados fundamentais das religiões - os mitos - são enunciados metafóricos. E todo o equívoco dos não crentes bem como o de muitos crentes é tomarem essas enunciações como referências materiais, enunciados históricos. Ora não o são. Eles dirigem-se a uma outra ordem de realidade que não a mera facticidade. As metáforas condensadas nos mitos são guias para a aventura espiritual, traçam estranhos sinais na pedra onde aquele que se entrega à viagem poderá encontrar, perante a multiplicidade de vias, uma indicação do caminho a seguir. É para isso que servem as metáforas e não tanto para redescrever a realidade.

sábado, 27 de setembro de 2014

Poemas do Viandante (477)

JCM - Heimat VI (2007)

477. havia naqueles dias uma fronteira

havia naqueles dias uma fronteira
coberta de fogo e rosas

havia um plátano a sombrear a casa
adormecido no jardim

havia a memória  do vento outonal
no silêncio das ramadas

havia a vida inteira e sem mácula
que se abria para mim

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

A luz e as trevas

JCM - Mitologias (the light shines in darkness II) (2006)

A luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam (João 1:5).

Nunca se pensa radicalmente o jogo que nos é trazido pelas múltiplas aproximações ao mistério da relação entre luz e trevas. Tanto a luz como as trevas fascinam o homem desde tempos cuja memória há muito se apagou. Com elas foram compondo mitos, poemas, narrativas morais ou soteriológicas, mas a simbologia que luz e trevas introduzem abre para um universo infinito e inesgotável de significações. 

O versículo de João mais do que dilucidar o mistério torna claro a sua natureza mistérica através de um sábio, embora não muito explícito, recurso ao paradoxo. Onde reside esse paradoxo? A primeira afirmação - a luz resplandece nas trevas - constata um facto, mas essa constatação factual é o reconhecimento de uma necessidade. Para resplandecer, a luz necessita das trevas. O paradoxo é introduzido na segunda proposição - as trevas não a compreenderam. O paradoxo não reside no facto de as trevas não terem compreendido a luz, mas no tom marcadamente de censura que resulta da leitura do versículo e de todo o seu contexto. 

O que seria necessário para que as trevas compreendessem a luz? Que nelas houvesse já luz, que elas não fossem trevas. Isso, porém, entra em contradição com a necessidade que luz tem das trevas para resplandecer. O texto de João traz inscrita, no seu cerne, uma contradição: as trevas devem e não devem ser, ao mesmo tempo, trevas. Esta contradição não é um erro lógico, um equívoco da razão. Ela é uma injunção a que o homem, mantendo a contradição, medite nela e entre no mistério que ela encerra, não com a razão, mas com a totalidade do seu ser aberto ao e pelo paradoxo.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Haikai do Viandante (205)

JCM - Black & White Dreams (Serra da Estrela) (2008)

a velha floresta
na clareira da montanha
esp'rança que resta

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

A vida e o outo

JCM - Distopia (a silent city) (2007)

Eu dou-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros (Jo 13,34).

Qual o padrão que deve orientar a nossa relação com o outro, esse outro que é também um próximo? O judaísmo tinha codificado essa relação na lei mosaica, a qual, com os seus mandamentos, estabelecia o padrão que deveria presidir às relações com o outro e o Outro. Esse padrão, mesmo quando fala no amor a Deus, assenta na ideia de respeito. Pela lei mosaica, o respeito pelo outro é a pedra angular da relação ao próximo. Ora o cristianismo traz um novo mandamento, o do amor ao próximo. E qual é o padrão deste amor? O padrão é o amor que Cristo terá devotado aos homens. Ora esse amor está muito longe de ser um delíquio  afectivo, uma vaga sentimentalidade tão ao gosto da nossa época. Para além da aceitação do outro figurada no perdão, o amor crístico reside na dádiva da vida. Toca na raiz daquilo que nos é mais precioso, a vida. Qual é o padrão de amor ao próximo que o cristianismo traz consigo? O dar a vida, morrer por esse outro. Que tal mandamento tenho colonizado parte do mundo, mesmo que a generalidade dos crentes não esteja disponível ou seja impotente para o cumprir, não deixa de ser um mistério.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

No fluir da existência

JCM - Humanitas XI (2014)

Deixai vir a mim as crianças, não as impeçais, pois o Reino dos céus pertence aos que se tornam semelhantes a elas (Mateus 19:14).

Que semelhança deve o homem buscar para que se torne como as crianças? Não mentem as crianças? Não fazem elas o mal e, por vezes, de forma tão terrível? Por certo, e apesar do nosso tempo divinizar a moralidade da criança, não será a mentira, o egoísmo e o mal presentes em todas as crianças que os homens são convidados, por Cristo, a emular. Os homens são incitados a devir crianças para que, como elas, se entreguem livremente ao fluir da existência, reaprendam a ingenuidade de dançar, sem ideias preconcebidas ou metas a atingir, com os elementos da vida. São intimados a abrirem-se perante o mistério das coisas como o fazem as crianças. No versículo de Mateus não está em questão uma moralidade mas um modo de ser, uma forma de entrega à existência.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Poemas do Viandante (476)

JCM - Símbolos, segredos e sinais (2014)

476. símbolos segredos e sinais

símbolos segredos e sinais
riscam o caminho

e na via assim tracejada
descerra-se o destino

desenhando na floresta
a breve clareira

onde a rosa se abre para
o pão e o vinho

domingo, 21 de setembro de 2014

Revelação de si

Esteban Vicente - Descubrimiento (1992)

A viagem do viandante é sempre uma aventura de descobrimento. Descobrir aquilo que está em si oculto, como se fosse uma cifra ou um enigma. Na viagem, o que se revela é uma paisagem interior. O viandante, no caminho que toma, revela-se a si mesmo e revela aquilo que o envia.