sexta-feira, 30 de maio de 2014

De olhos no cume

Hiroshi Hamaya - Winter starts on peak of Mount Fuji. Japan (1962)

Subir pouco a pouco, elevar-se lentamente, colocar os olhos no cume. Que outro símbolo pode dizer melhor a tarefa do homem na vida? Subir ao cimo da montanha, enfrentar os duros caminhos e abrir o coração para a intempérie. Despojar-se do inútil e ascender confiado na acção gratuita do invisível.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Tornar-se cego

Júlio Pomar - Cegos de Madrid (1957)

Não se trata de ser cego, mas de tornar-se cego para ver. Pelos olhos entra o que nos deslumbra, e, deslumbrados, apenas temos olhos para o objecto do deslumbramento. Se nos tornarmos cegos, porém, o campo do visível deixa de ocultar o do invisível, daquilo que se esconde por detrás das coisas que prendem o olhar. Ao tornarmo-nos cegos abre-se a remota possibilidade de aprendermos a olhar.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Uma clareira azul

Fernando Lerín - Sem título (1985)

De súbito, no meio da mais tenebrosa das tempestade, surge uma clareira azul no céu. Os elementos estão em fúria, mas um novo caminho abre-se diante do viandante, chamando-o para o outro lado, oferecendo-lhe a graça de uma passagem.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Haikai do Viandante (190)

Max Dupain - Nude in sunlight (1937)

de nuvens coberto
um sonho de sol e água
sombra no deserto

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Sentimento de incompletude

 Hippolyte Blancard - Sem título (1888)

O que desencadeia em alguém o desejo da viagem, a necessidade de se pôr a caminho e de se tornar viandante? Não é a busca de novas sensações, nem o prazer da aventura ou a ânsia de descobrir novas realidades. Tudo isso são ainda funções que o turismo pode suprir. Aquilo que atira o homem para a viagem do espírito é o sentimento de incompletude. Alguma coisa que é sentida como sendo própria está em falta. O viandante faz-se ao caminho à procura da outra parte de si mesmo.

domingo, 25 de maio de 2014

Ruínas e memória

Lucien Clergue - Ruines, Arles (1954)

Mais que o memorial ou o monumento conservado, as ruínas representam uma espécie de fidelidade mnésica. A memória, na sua faceta restauradora ou comemorativa, tende a idealizar o passado, a despi-lo do tempo. mentindo assim sobre a nossa condição passageira. As ruínas, porém, mostram-nos o passado e o presente, evidenciam o trabalho do tempo. Recordam-nos vivamente que somos pó e ao pó voltaremos.

sábado, 24 de maio de 2014

A estrita necessidade

Hiroshi Hamaya - A girl carrying a baby on her shoulders as she goes to make errands in the snow covered landscape of Aomori. Japan (1955)

Quantas vezes hesitamos no caminho? Quantas vezes o conforto do momento é sinónimo e motivo de adiamento, de procrastinação, de exercício de uma ilusória liberdade. Depois, quando a necessidade se abate sobre o viandante, ele põe-se a caminho e enfrenta as mais terríveis condições. Nesses momentos, descobre que a liberdade nasce ali onde a mais estrita necessidade o impele.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Na terra devastada

Man Ray - Waste Land (1929)

Não fugir. Insistir, permanecer na terra devastada, deixar que ela traga até nós as primeira palavras, que abra a bolsa onde guarda os segredos e nos deixe espreitar. Ali, onde a terra foi devastada e abandonada pelos homens, também é lugar de viagem. Melhor, é sítio de peregrinação e de espera. Espera que a terra fale e a verdade, abençoada pelo silêncio, se revela.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Haikai do Viandante (189)


no mundo vazio 
no infinito deserto
silêncio sombrio

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Atravessar a ponte

Andreas Feininger - Storm clouds hover over the Brooklyn Bridge and the ghostly skyscrapers 
of Manhattan’s financial district in March (1946)

Imaginamos sempre que uma ponte assegura a continuação de um caminho que um obstáculo interrompe. Passar a ponte é retomar a normalidade quebrada. Mas a passagem de uma ponte pode ser uma prova, uma prova tormentosa. Nessa passagem alguma coisa se transforma em nós e quando se chega ao outro lado já se será outro. Não.Uma ponte não assegura uma continuidade, não é uma mera ligação que une o idêntico. Ela é um lugar de ruptura, de descontinuidade, o símbolo que nos chama à transformação, à metanoia.

terça-feira, 20 de maio de 2014

A incerta viagem

Ho Fan - Journey to Uncertainty (1956)

Na inauguração dos tempos modernos, a certeza foi definida como o alvo a atingir pelo pensamento humano. A vida riu-se de tamanha pretensão e tornou tudo mais incerto, como se o caminho que cabe a cada um devesse ser feito na escura noite, onde apenas a fé e a graça podem iluminar o homem na incerta viagem que lhe cabe.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Retorno a casa

Francesca Woodman - From Space2, Providence (1975-76)

Numa primeira fase da vida, os homens lutam pelo conhecimento e afirmam-se separando-se das coisas, assim transformadas em objectos. Posta à distância, a realidade é capturada pelo entendimento do homem. Essa fase, porém, está longe da sabedoria. O viandante começa a trilhar os caminhos da sabedoria quando se perde nas coisas e se despe da pretensão delas se diferenciar. Toda a viagem é um longo processo de retorno a casa.

domingo, 18 de maio de 2014

Poemas do Viandante (457)

Bill Brandt - Hampstead, London (1945)

457. esse corpo que se entrega

esse corpo que se entrega
despido ao olhar

esse amor desatinado
a gritar no peito

esse desespero manso
perdido na face

esse desejo de luz
nunca satisfeito

sábado, 17 de maio de 2014

Exercícios da errância

Deborah Turbeville (desconheço título e data)

Os caminhos que levam a lado nenhum, o estar perdido na floresta, tudo exercícios da errância, desse errar que nos afasta do alvo e nos faz cair da esperança de chegar a bom porto. Esperamos apenas um sinal, talvez a companhia de alguém que, perdido também, possa acompanhar-nos e partilhar connosco a dor da perdição. Talvez nesses instantes Paulo de Tarso tenha razão. Ali onde abunda a perda, superabunde a graça.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

O paraíso perdido

Charles Marville - Stream of Armenonville, Bois de Boulogne (1858-60)

Talvez todos os seres humanos tragam dentro de si uma secreta imagem do paraíso perdido, desse lugar ameno de onde teria sido excluído todo o conflito. Sempre que podem, tentam reproduzi-lo na terra, imaginando lugares onde os homens se possam recolher na natureza e esquecer a dura vida a que estão condenados. Estar num lugar desses é sempre um exercício de rememoração, um activar de uma memória de algo que não vivemos mas que trazemos dentro de nós. Uma memória projectiva.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

De espaço em espaço

Jacinta Gil Roncalés - Hacia otros espacios (1991)

A viagem é sempre o caminhar por outros e para outros espaços. Mas se ficarmos presos ao truísmo, não compreenderemos nunca que viagem e vida nada têm de diferente. Para nos afastarmos da banalidade, o melhor será pensar o espaço como uma metáfora, a qual nos abre para uma outra compreensão dessa viagem. Cada novo espaço significa uma nova forma de experimentar o mundo e de ser. Com a transformação dos espaços é o viajante que se torna outro.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Os poderes da terra e da sombra

Eliot Elisofon - Marlon Brando kneeling before Kim Hunter in 
a Broadway production of Tennessee Williams’s A Streetcar Named Desire (1947)

Olha-se a cena de Marlon Brando e Kim Hunter e percebe-se, de imediato, que o acto de ajoelhar perante outro ser é muito mais que um acto de submissão a um poder fáctico. Pelo contrário, é um acto da mais pura liberdade, aquela que nasce do amor, desse amor que tudo crê, tudo espera, tudo suporta, desse amor que descura o próprio interesse. A grandeza do cristianismo está toda aí. O homem que ajoelha perante Deus fá-lo por amor e não movido pelo medo de uma potência terrível e opressora. E sempre que, numa Igreja, alguém ajoelha por medo, por submissão a um poder terrível, já está longe do cristianismo e caiu na idolatria, ao transformar os poderes da terra e da sombra em divindades a que presta adoração. Só o amor é justificação para que alguém se ponha de joelhos.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Haikai do Viandante (188)

Florence Henri - Untitled, USA (c. 1940)

linhas de silêncio
na fria pureza do vidro
luz vento e destino

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Na cintilação da água

Joshua Benoliel - Fragatas do Tejo (1912)

Na trémula cintilação da água navegam os velhos sonhos da humanidade. Fragatas não são fragatas, mas símbolos de um desejo vindo de tão longe que não sabemos onde nasceu. Por maiores que sejam as rotas ou por mais exactas as cartas de marear, voltamos sempre aquele mistério que nos fala da queda do homem e da expulsão do velho paraíso.

domingo, 11 de maio de 2014

Fazer e esquecer

Brassaï - Sleeping Man (1955)

Também os sonhos fazem parte da viagem. Durante a vigília, o viandante segue o seu caminho, sabedor do que está a fazer, sentidos alerta e objectivos na mente. Durante o sono, porém, a viagem contínua, pois, ao sonhar, o viandante refaz caminhos e objectivos, entrega-se ao que, no fundo do seu inconsciente, indica o que há-de fazer e o que há-de esquecer.

sábado, 10 de maio de 2014

Nada a declarar

William Henry Fox Talbot - The Old Gamekeeper (1844)

O mais importante da viagem começa quando se descobre que não existe caça a guardar. Nesse momento, abre-se mão do mundo e das coisas. O viandante não é caçador nem proprietário. Vive daquilo que lhe é trazido dia após dia e recebe cada coisa com um cântico de acção de graças. Nada lhe pertence, nada quer. Passa esta e aquela fronteira, e diz sempre as mesmas palavras: nada a declarar.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Aridez e abandono

Ernst Haas - White Sands, New Mexico (1952)

Há momentos na vida dos homens em que tudo parece um deserto. A aridez toma conta da existência e um desmedido sentimento de abandono apossa-se da pessoa. A tentação é de sucumbir e entregar-se à lamentação por tão bizarro destino. Mas saberá o viandante qual a sua verdadeira situação? Não será nessas horas de abandono e aridez que mais perto se encontra da plenitude da vida?

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Sobre a sombra

Rodney Smith - Gary Descending Stairs (1995)

A sombra não é meramente uma metáfora conveniente para dar profundidade ao livre jogo da poesia. Ela é um verdadeiro símbolo. E como todos os símbolos, a sombra simboliza múltiplas, e por vezes contraditórias, realidades. Sombra é o lugar do homem, ele que não suporta nem as trevas nem a luz mais pura. Mas o próprio homem não é mais do que sombra, uma presença evanescente sobre a terra, uma presença que, para ter consistência e não se reduzir a uma mera ilusão, necessita da Luz que o arranca à escuridão.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Haikai do Viandante (187)

Manuel Baeza - Borboletas (1979-80)

borboletas voam
e no sol vazio da tarde
os sinos ecoam

terça-feira, 6 de maio de 2014

Cultivar a boa consciência

Robert Doisneau - Hell (1952)

Os outros, segundo a palavra de Sartre, por nos frustrarem a realização do desejo, são o inferno. Ateiam o desejo e pela negação com que o acolhem mantêm viva a dinâmica desejante, sem possibilidade desta se apaziguar no acto da consumação. Mas será que eu sou assim tão inocente no meu desejo? Será que cada um, ao desejar, é vítima duma conspiração vinda de fora? Ora negar a inocência do desejo será atribuir-lhe, na origem, uma decisão, o que contraria a ideia - ideia fundada em sólido senso comum - de que somos irresponsáveis pelo que desejamos. E traria ainda uma outra e não desejada implicação: o inferno não são os outros, somos nós, ou está em nós. O homem sempre gostou de cultivar a boa consciência.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

O guia do perplexo

André Kertész - Washington Square, New York, Winter (1954)

Jesus respondeu-lhes: «A obra de Deus é esta: crer naquele que Ele enviou». (João, 6:29)

Por contaminação do pensamento grego, somos conduzidos a reduzir a questão da crença ao domínio da teoria, à discussão sobre se uma determinada crença é verdadeira ou falsa, se há ou não justificação para essa crença, isto é, se há outra crença ou conjunto de crenças que a suportem. Esta forma de pensar é conduzida pelo desejo da evidência e pela busca de consolo que a certeza traz ao espírito. Ora os textos evangélicos, nomeadamente os trechos atribuídos, nessas narrativas, a Jesus Cristo, pouco têm a ver com a consolação da certeza. Mesmo quando é proposta a fé, como é o caso do texto citado de João, o sentido nunca é teórico nem visa afirmar uma certeza. Pelo contrário, o leitor fica perante um enigma, como se a fé fosse a porta para a perplexidade e o evangelho um guia do perplexo.

domingo, 4 de maio de 2014

Os limites da lei moral

Wolf Suschitzky - Street Cleaner, Westminster, London (1937)

Então os seus olhos abriram-se e reconheceram-no, mas Ele desapareceu da sua presença. (Lucas, 24:31)

Pensamos muitas vezes que o reconhecimento do outro é o cerne da nossa conduta na comunidade, seja esta qual for. Esse reconhecimento é o centro da moral social e da vida ética. O estranho episódio relatado por Lucas mostra-nos todavia os limites do reconhecimento e da vida moral. Os discípulos de Emaús reconheceram-no, mas nesse reconhecimento perderam-no, como se a lei moral fosse ainda um obstáculo ao que o Cristo vinha trazer aos homens.

sábado, 3 de maio de 2014

Poemas do Viandante (456)

Roger Fenton - Vista, Furness Abbey (1860)

456. sonhar na noite e gritar

sonhar na noite e gritar
dentro do passado

e esperar que uma mulher
venha delicada

com as mãos incendiadas
e a boca em fogo

sexta-feira, 2 de maio de 2014

A silenciosa escuta

Edward Weston - Near Neshanic, New Jersey (1941)

Por isso, Jesus, sabendo que viriam arrebatá-lo para o fazerem rei, retirou-se, de novo, sozinho, para o monte. (João, 6:15)

A solidão surge nesta passagem de João em contraponto não com a vida em comunidade mas com o exercício do poder. Aquilo que cabe a cada um de nós reger não é os outros homens mas a si mesmo. O poder é o lugar expressamente rejeitado por Cristo. Todos conhecemos a sua palavra: o meu reino não é deste mundo (João, 18:36). De onde é então o seu reino? Melhor do que uma resposta dada pelo hábito, será meditar o versículo em epígrafe. Ele dá-nos uma indicação essencial: ao rejeitar um reino, o reino humano de natureza política, ele indicou o caminho do outro, o caminho da solidão.  Trata-se de um estranho reino, cuja notícia apenas pode chegar pela silenciosa escuta na solidão, mesmo que essa solidão seja rodeada pela presença da comunidade.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Haikai do Viandante (186)

Man Ray - Dora Maar (1936)

no rumor do céu
abre-se a luz cintilante:
logo cai o véu