domingo, 13 de abril de 2014

A luz do corpo

Imogen Cunningham - Jackie (1928)

Quantas vezes o visível não é mais do que opacidade. A nudez está longe de ser uma ostensiva exibição. Pelo contrário, ela pode ser um exercício de pudor, onde o corpo ao mostrar-se se oculta na luminosidade que dele emana. Inebriado pelo espectáculo e cego pela luz, o espectador perde o mistério que ali se manifesta.

sábado, 12 de abril de 2014

Um leve murmúrio

Ray K. Metzker - City Whispers, Los Angeles (1981)

Penso na ideia de uma cidade dos sussurros e vejo-a na sua razão de ser. Podemos pensar que onde apenas se sussurra, onde só leves murmúrios se fazem ouvir, a vida está de tal forma comprometida pelo medo que ninguém ousa levantar a voz e falar. Há, porém, espaços onde a liberdade não impede a fala, mas que solicitam que aqueles que tomam a palavra o façam em leves murmúrios. São os lugares onde se manifesta uma Palavra mais decisiva e fundamental do que a palavra dos homens. E essa Palavra é tão decisiva que estes compreendem que a sua voz não se deve erguer - se não querem cair no ridículo - para lá do leve sussurro.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Poemas do Viandante (454)

Gianni Berengo Gardin - Venice (1958)

454. Sob o céu de Veneza

Sob o céu de Veneza,
dançamos pelos campos.

Somos de outro tempo,
de outra luz, de outra rua.

As mãos nas mãos perdidas,
o desejo que chega.

E tudo se incendeia
sob o céu de Veneza.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

O nome que lhe deram

Ray K. Metzker - Valencia (1961)

O homem moderno, nestes dias sem rumo, está longe de ser um viandante. O seu movimento incessante denuncia-o como mero transeunte, alguém vai e vem sem saber que toda a viagem é, na verdade, uma peregrinação. Não para admirar as relíquias dos santos, mas para si mesmo. O viandante procura o significado do nome que lhe deram. Este não é um simples designação, mas um mistério e um projecto de descoberta e coincidência com a palavra que o chamou à vida.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Haikai do Viandante (183)

Hengki Koentjoro - Sakura (2014)

um rumor de branco
nas cerejeiras em flor
luz e sol e canto

terça-feira, 8 de abril de 2014

O desejo infinito

Joshua Benoliel - Bairro Grandella (Festas dos Santos Populares) - Estrada de Benfica - Lisboa (início do séc. XX)

Há sempre nas festividades humanas, por faustosas que sejam, um rasto de desilusão, como se o prazer e a alegria esperados fossem outros e não aqueles que estão prometidos e são proporcionados. A incomensurabilidade entre o desejo humano e as suas possibilidades de realização é, na verdade, infinita, pois se a festa, aquilo que é o fruto mais raro da vida material, é finita, o nosso desejo é infinito e só no infinito pode ser saciado.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

A promessa e o desejo

Brett Weston - Classic Nude (1975)

Um dos elementos da dinâmica do desejo reside na apresentação do objecto de desejo como promessa. A promessa faz a mediação entre a indiferença do desejado e o compromisso que toda a entrega representa. A promessa é um sim que ainda é não, mas um não que entra num processo de transmutação semântica que culminará na sua metamorfose em sim. Prometer é intensificar o desejo daquele que deseja, levá-lo ao paroxismo. Mas a promessa só funciona desse modo se houver desejo daquilo que se constitui em objecto de desejo. Na ausência de desejo, qualquer promessa se torna risível. 

domingo, 6 de abril de 2014

Entre duas cegueiras

Alfred Eisenstaedt - Woman under streetlight in Montmartre at night. Paris, France (1963)

A luz, por rigorosas e claras que sejam as explicações científicas, nunca deixará, para os homens, de ser um mistério. Não podemos olhá-la fixamente, pois cega-nos, mas sem ela seremos também cegos. Esta ambivalência da luz traz uma certa ordem, a ordem que diz respeito aos homens na terra. Devemo-nos deixar  envolver por ela, devemos olhar o seu efeito sobre o mundo e os seus objectos. Devemo-nos deixar guiar pelo seu resplendor, mas mais do que isso não nos cabe a nós, pobres mortais perdidos entre duas cegueiras.

sábado, 5 de abril de 2014

A vertigem

Berenice Abbott - Broadway and Rector from Above, New York (1935)

A vertigem é uma confissão do corpo. Ele elevou-se mas a terra ainda o atrai, e fá-lo de tal forma que gera, no sujeito, o desejo de nela se estatelar e, assim, se fundir no húmus da terra. A vertigem é a confissão de uma alma telúrica que, deslocada do seu ambiente, a ele deseja retornar. Quem quiser, porém, fazer a viagem tem de aprender a caminhar no alto e a conviver com as solicitações terrestres que convocam a cada momento o tributo da queda.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Eclipsar a sombra

Eugène Atget - Eclipse (1911)

O desejo dos homens, no delírio com que se compreendem, é o de eclipsar o próprio Sol, tomando eles o lugar dianteiro e oferecendo-se como a luz do mundo. Disfarçados de faróis, os seres humanos transformam a vida sobre a Terra na mais trágica das comédias. A viagem que o Viandante almeja não é em direcção à ribalta. Mais do que eclipsar o Sol, o Viandante quer eclipsar-se a si mesmo, apagar a sua sombra e deixar que a Luz brilhe na mais pura luminosidade.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Haikai do Viandante (182)

Brett Weston - Bamboo Forest, Japan (1970)

um vento de cinza
na floresta de bambu
fogo e silêncio

quarta-feira, 2 de abril de 2014

A convocação do deserto

Charles Clifford - Catcus e Agaves (1862)

Há sinais na paisagem que anunciam o deserto. O que se perfila perante o viandante não é uma aventura num território inóspito e adverso, a porta para a glória dos triunfadores e dos que ultrapassam os limites que o corpo e a natureza impõem aos homens. Se o deserto chama o viandante é para lhe mostrar que ele não é mais do que um grão-de-areia na vastidão infinita do ser. No deserto, mesmo que este seja a mais fértil das planícies, o viandante é convocado para a humildade, essa tão estranha palavra para ouvidos e corações modernos.

terça-feira, 1 de abril de 2014

A noite dos sentidos

Robert Lebeck - Leningrad, Russia (1962)

É terrível a memória que nos traz a desmesura das praças vazias, aqueles lugares ainda não tomados pelo azougue dos automobilistas, sítios terríveis onde se escuta o eco do poder. Ali o viandante sente-se reduzido à sua verdadeira dimensão. Um grão de pó perante o sublime que emana da opressão nascida do delírio humano. Uma alma deslumbrada pela luz e que reduz os seus anseios à chegada da escura noite dos sentidos.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Poemas do Viandante (453)

Nicolás Lekuona - La calle de nadie, 1932

453. Uma sombra pela rua

Uma sombra pela rua
desce sem destino.

Leva o peso do passado
e a luz do presente.

Leva o prazer e a mágoa 
a elegia e o hino.

Leva o coração cansado
e o amor ausente.

domingo, 30 de março de 2014

O reino das sombras

Istvan Hanga - Ombre et appareil (ca. 1933)

Uma das ilusões dos amantes da técnica - e quem não o é, nos dias de hoje? - está na crença de que ela poderá ajudar o homem a sair da caverna platónica, onde apenas vê a sombra da realidade. Um telescópio, um microscópio, uma câmara de filmar ou de fotografar, enfim qualquer um dos mil dispositivos que são inventados para intensificar o poder dos nossos sentidos... Mas por mais intensos que estes se tornem graças ao poder da técnica, o que lhes é dado são sempre sombras. Gigantescas ou microscópicas, mas ainda e sempre sombras. Não suportariam a realidade.

sábado, 29 de março de 2014

Haikai do Viandante (181)


a sombra anuncia
na lonjura da floresta
o raiar do dia

sexta-feira, 28 de março de 2014

Da vida frutuosa

Edward Weston - Meraux Plantation House, Louisiana (1941)

Há certamente qualquer coisa errada numa vida que deixa como herança a ruína. Quando os homens centram a sua existência na materialidade do mundo, não demorará muito que essa materialidade seja reduzida a destroços e que tudo não seja mais que pó. O problema, porém, não está na materialidade. Quantas obras do espírito, obras que um dia foram aclamadas como intemporais, se viram vergadas pelo peso do tempo e se transformaram em poeira, um traço da vaidade humana inscrito na parede do mundo? Como pode uma vida frutificar e deixar uma herança? Talvez aquela que comece por abandonar qualquer pretensão à grandeza e à construção de qualquer herança.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Fugir ao mistério

Paul Wolf - Frankfurt (1929)

Haverá coisa mais temível do que a uniformidade da multidão? Não é apenas o espírito crítico que desaparece quando o homem mergulha no rebanho. O pior é o fechamento que o estar-em-multidão representa. Fechamento a quê? Ao mistério. A multidão exige espectáculo. Só a sábia solidão permite ao homem confrontar-se com o mistério de tudo o que existe. Mas não será para fugir a esse mistério que o homem anseia pela uniformidade da multidão?

quarta-feira, 26 de março de 2014

Perder as escamas

Esteban Vicente - Descubrimiento (1922)

São múltiplos os caminhos que, na viagem que cabe a cada um, se podem tomar. Não é certo que esses caminhos, ao bifurcar-se, não acabem por levar ao mesmo lugar. Um desses caminhos pode ser denominado o caminho da verdade. Não devemos, todavia, tomar a verdade como o acordo entre o nosso discurso - ou as nossas representações - com a realidade. Devemos tomá-lo no sentido grego de ἀλήθεια (alétheia), de desvelamento. A viagem é um desvelamento, o tirar o véu que nos impede de ver, a contínua revelação. Estar comprometido com a viagem no caminho da verdade não é uma questão cognitiva ou discursiva, mas existencial. Viajar significa que o viandante se dispõe a perder as escamas que, cobrindo-lhe os olhos, o impedem de ver.

terça-feira, 25 de março de 2014

Num campo de refugiados

Henri Cartier-Bresson - INDIA. Punjab. Kurukshetra. A refugee camp for 300.000 people. Refugees exercising in the camp to drive away lethargy and despair. Autumn 1947

Na tradição católica, a terra é vista, muitas vezes, como um vale de lágrimas, um lugar de exílio para uma alma criada para uma outra pátria que não a terrestre. Se esquecermos o vale de lágrimas e nos ficarmos pela ideia de exílio, perdemos o que é essencial nessa ideia, o facto de os homens, na terra, estarem, todos eles, num campo de refugiados, onde precisam de afastar a letargia e o desespero.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Sombra da morte

Roger Fenton - Valley of the Shadow of Death (1855)

A sombra da morte não acompanha o viandante apenas em alguns trechos da viagem, lugares mais sombrios ou com história lúgubre. Ela é a companheira inseparável daquele que se faz ao caminho. Por vezes, conselheira previdente; outras, o inimigo a derrotar. Retorna sempre, certa da vitória, mas no coração do viandante brilha, uma e outra vez, a esperança de que a vida acabará por triunfar.

domingo, 23 de março de 2014

O maior dos perigos

Robert Capa - BARCELONA, Spain. Running for shelter during an air raid alarm, January 1939.

A vida dos homens, por um hábito ancestral ancorado na tradição, é constituída em torno do abrigo. A eminência do perigo inscreveu-se nos genes e nos hábitos e, mal se suspeita uma ameaça, logo começa a corrida para o lugar de protecção. Esquece o homem, porém, que o abrigo não é outra coisa senão a caverna platónica. Esta pode-nos abrigar dos perigos, mas também nos abriga do choque com a realidade e com aquilo que, efectivamente, nos desafia. Quantas vezes o abrigo é, pela sua excessiva protecção, o lugar do maior dos perigos, o da negação da realidade.

sábado, 22 de março de 2014

Solidão e fragilidade

STEFANO RELLANDINI - REUTERS - Veneza, capital da região do Veneto

Retomemos a solidão, agora para a compreender a partir da fragilidade do homem. A solidão, a solidão essencial, não pode ser compreendida nem como a prova da força e de afirmação orgulhosa do homem, nem como o sintoma de uma fraqueza tal que o torna inapto para a vida com os outros. A fragilidade que está sob a solidão pode ser compreendida a partir do equilíbrio do barqueiro sobre as águas. A solidão, a solidão essencial, é sempre o difícil equilíbrio de alguém sobre as águas da sua própria fragilidade. A solidão manifesta-se, deste modo, como um bem precioso que, pela sua fragilidade e a fragilidade onde assenta, se pode perder e tornar irrecuperável.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Haikai do Viandante (180)

Joan Hernández Pijoan - Paisagem com um carvalho (1974)

perdido na paisagem
ergue-se o velho carvalho
sombra e imagem

quinta-feira, 20 de março de 2014

O lugar da solidão

Robert Doisneau - Rue des Ursins - Paris 4e (1945)

Somos demasiado sensíveis à definição aristotélica do homem como animal social. Não percebemos, todavia, que a verdade dessa definição oculta uma outra realidade humana, a sua solidão. Nesta não devemos ver apenas o abandono, mas a forma como o homem pode realizar tudo o que lhe é essencial. Só na solidão o homem é, na verdade, capaz de escutar a voz do outro. A própria sociabilidade humana está escorada na solidão do homem.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Suspensão

Sergio Larrain - Chiloé Island, Chile (1959)

O difícil lugar do homem sobre a terra. Nem solidamente enraizado, nem capaz para, como uma ave, voar nos altos. Suspenso. O seu lugar é a suspensão. E esta é o sítio onde se cruza o medo da queda e o desejo dos céus.

terça-feira, 18 de março de 2014

Que assim seja

José Alfonso Morera Ortiz - "Amén" (1990-94)

Que resta ao homem mergulhado no abismo? Não seria ridículo interrogar-se sobre a sua situação, especular sobre os fundos abissais ou as possibilidades de chegar a terra segura? Sim, tudo isso seria ridículo e inútil. Se o abismo o convocou e se ele seguiu a intimação, a única resposta possível é: que assim seja.

segunda-feira, 17 de março de 2014

O desabrigo dos sem-abrigo

Oscar Gustave Rejlander - Homeless (1860)

A condição de sem-abrigo não é acidental, não é o resultado dum azar na vida ou duma deficiente mobilização das faculdades racionais do homem. Sem-abrigo é a condição do homem no mundo, por maior que seja o palácio onde vive, por maiores que sejam os cuidados e a segurança mobilizados. Estar vivo é estar desabrigado, exposto à arbitrariedade dos elementos naturais, aos caprichos da sociedade, ao jogo da sorte, em suma, à surpresa da vida. Estar desabrigado, porém, pode ser também um acto de se tornar disponível para ouvir aquilo que, no fundo do homem, chama por ele.

domingo, 16 de março de 2014

De degrau em degrau

Hernández Pijoan - Cinco espaços dourados (1976)

Um dia ouvi que uma certa tribo de esquimós, cujo nome já não recordo, tinha mais de sessenta palavras diferentes para designar o branco. Viviam numa paisagem onde, praticamente, só existia a cor branca e tiveram necessidade de apurar a linguagem para especificar as diferenciações que lhes permitiam viver. Também o viandante tem necessidade de introduzir diferenciações na paisagem por onde caminha. Fá-lo como se criasse os degraus duma escada infinita, onde cada degrau impele o espírito para um novo e já transitório degrau.

sábado, 15 de março de 2014

Esquecer-se de si

Robert Capa - FRANCE. 1944. Normandy. Omaha Beach. The first wave of American troops lands at dawn.

O mais difícil da viagem não é o caminhar, o mais difícil é desprender-se de si ao caminhar. Seja para onde for que o viandante se volte, o ego - o seu pequeno ego - apresenta-se como o herói, o falso herói, duma gesta imaginária. Sim, sabemos que o essencial é cumprir a injunção faça-se a Tua vontade, mas dentro de nós grita mais alto a vontade própria. E quanto mais o viandante quer que ela morra e ceda os seus direitos, mais ela luta por se afirmar e conquistar território. O mais difícil é aprender a morrer para si mesmo, esquecer-se de si.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Poemas do Viandante (452)

Amedeo Modigliani - Sol reflectido na água (1905)

452. Este sol que traça sombra

Este sol que traça sombra
na copa das árvores.

Estas árvores perdidas
na boca da tarde.

Esta tarde incendiada
no fundo de ti.

E tudo agora renasce,
Sombra e sol sem fim.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Escrita e caminho

Aurelie Nemours - Écriture (1975-1995)

A escrita não é a mera fixação duma comunicação oral. Se o fosse, a sua função seria meramente instrumental. Na escrita - ou na Escritura - inscreve-se uma indicação. Ela não indica aquilo que está para trás, mas antes o caminho que o viandante deverá seguir, aquilo que está além e o aguarda.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Na sombra do esquecimento

Sol LeWitt - Scribbles on color (1990)

Recordemos o fundamental. As nossas pegadas no mundo não passam de pequenos rabiscos feitos na areia duma praia com mar tormentoso. Convencemo-nos de que somos os heróis duma gesta gloriosa, mas mal inscrevemos no mundo o tracejado da nossa acção, logo a água e o vento conspiram e nos devolvem para a sombra silenciosa do esquecimento. Chegados aí, estamos em nossa casa.

terça-feira, 11 de março de 2014

Haikai do Viandante (179)

Mon Montoya - ¿Hasta cuándo conservaron la ilusión de que podrían quedarse? (1999)

estranhos sinais
rasgam dorida a planície:
anjos e animais

segunda-feira, 10 de março de 2014

Dentro do crepúsculo

Carlo Carra - Depois do pôr-do-sol (1926)

O crepúsculo simboliza a condição do homem sobre a terra. Ele está a meio-caminho entre as trevas da noite e a luz triunfante da manhã. A errância pode conduzi-lo à mais densa escuridão, mas a viagem pode trazê-lo a uma cada vez maior claridade, como se caminhasse sempre dentro do crepúsculo, mas a cada passo, embora sem nunca desaparecer, a sombra fosse diminuindo.

domingo, 9 de março de 2014

Poemas do Viandante (452)

João Queiroz - Sem título (2007-8)

452. Espero-te no deserto

Espero-te no deserto,
despido de mim.

Sei-te longe mas tão perto,
és um não e um sim.

Velho destino incerto,
não, não terás fim.

sábado, 8 de março de 2014

Obstáculos e portas

John Constable - A boat passing a lock (1824)

Superar um obstáculo não significa o fim dos obstáculos. Abrir uma porta não implica que se tenha chegado ao destino. A viagem não tem fim. Infinitas são as portas e inumeráveis os obstáculos. Ao viandante, apenas cabe continuar o caminho e dar graças pela porta que se abriu ou pelo obstáculo disposto no caminho.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Uma nova inocência

Luc Tuymans - Disenchantment (1990)

O triunfo da ciência moderna e da razão instrumental trouxeram o fim do mundo encantado em que o homem vivera até então. Com esse fim, nasceu a nostalgia do encantamento, o desejo de reencontrar essa unidade perdida entre a natureza e a sobrenaturalidade. Esse passado não é apenas um estranho país. É uma pátria para sempre interdita. O retorno a essa inocência - uma inocência culpada pelo que havia nela de desconhecimento - está-nos vedado. A perda dessa inocência, porém, abriu o caminho para uma nova inocência, aquela que nasce do conhecimento e da dissolução da culpa.

quinta-feira, 6 de março de 2014

O leitor final

Antonio Tápies - O leitor final. A carta (1950)

Perante uma comunicação - uma carta, um livro, etc. - o que significa a expressão "leitor final"? Será o último destinatário? Será aquele que toma a leitura como um fim? Não. Por leitor final devemos entender aquele que ao ler se toma a si como fim. Ler faz parte da viagem, dessa viagem que cada um faz para si mesmo. O enigma que o texto traz consigo não reside no próprio texto mas naquilo que ele desencadeia no próprio leitor, de tal forma que este se descobre como o fim de todas as suas leituras.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Da sonolência temporal

Elizabeth Holsman - Um dia sonolento (1915)

Nos dias de torpor manifesta-se ao espírito uma certa qualidade do tempo que não é visível noutras alturas. É como se o tempo objectivo se tornasse mais lento, e a própria temporalidade se mostrasse cansada. Argumentar-se-á, não sem razão, que essa experiência se deve à nossa disposição psicológica e a uma certa configuração neuronal. Ambas levarão a uma antropomorfização da natureza, projectando a sonolência do homem na própria realidade objectiva. Nada melhor para o comprovar do que a medição exacta dos ciclos do dia e da noite. O que podemos perguntar, contudo, é pelo motivo que, em certas alturas, nos leva a considerar o tempo como lento. Não será a própria realidade e o decurso do tempo a exigir de nós esse tipo de interpretação? Não terá a natureza a necessidade de multiplicar as temporalidades, para melhor se manifestar, desprendendo-se de uma leitura objectivista dada pela medição do relógio?

terça-feira, 4 de março de 2014

Para além do homem

Francis Bacon - Man Kneeling in Grass (1952)

                                         Digno de compaixão é o homem que não ultrapassa o homem (Séneca).                                                                                       
Ser mais que homem é o desejo inscrito no coração da humanidade, como se a ideia de se ser aquilo que se é fosse escandalosa e digna de compaixão. Nesta ânsia de ultrapassagem podemos pensar com Nietzsche o sobre-homem, mas também podemos pensar o não homem, a não humanidade. Esta não significa obrigatoriamente uma inumanidade entendida como barbárie e ferocidade animal, mas algo que seja incomensurável com o homem. Por exemplo, Deus que permanece inefável para o discurso humano.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Haikai do Viandante (178)

Paul Klee - Landscape with yellow birds (1923)

um raio de sol
e uma revoada de pássaros
chama a primavera

domingo, 2 de março de 2014

Do finito e do infinito

Jacinta Gil Roncalés - Busca do infinito (1991)

A marca mais manifesta da nossa finitude é a natureza insaciável do desejo humano. Essa insaciabilidade, porém, não nos mostra apenas a nossa limitação e finitude. Torna manifesto, ao sentimento e à razão, o infinito, como se a insaciabilidade de que padece a nossa faculdade de desejar fosse o reflexo - melhor, o negativo fotográfico - do infinito que chama por nós.

sábado, 1 de março de 2014

Poemas do Viandante (451)

Salvador Dali - La ilusión diurna: La sombra del gran piano acercandose (1931)

451. Chove. Chove no silêncio

Chove. Chove no silêncio
deste dia de Março.

Uma água de primavera
desce sobre o mundo

e desenha no teu rosto
a luz duma sombra.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Para lá da esperança e do medo

Lawrence Alma-Tadema - Between Hope and Fear (1876)

A expectativa domina a vida dos homens. A necessidade vital de prever o que vai acontecer acaba por dividir o homem entre o medo e a esperança, as formas negativa e positiva de expectativa. A viagem, porém, só começa quando se abandona qualquer expectativa, quando se deixa de lado tanto o medo como a esperança. Nessa hora, começa a aceitação. Aceitar, porém, é a mais difícil das aventuras.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Ascensão e pausa

Johannes Itten - Ascensão e Pausa (1919)

Como pensar a vida sobre a Terra? Se esta é a nossa condição, ela não é a finalidade para a qual o desejo dos homens, de uma maneira ou de outra, se dirige. Ascender, elevar-se, subir a escarpada montanha, eis aquilo que move o mais secreto dos segredos do homem. A pausa na ascensão é o tributo que há que pagar à gravidade, esse desejo que a Terra tem de nela prender os seus filhos.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Acção de graças

Markus Luepertz - Acção de graças (2001)

Talvez o mais importante na viagem que cabe a cada ser humano seja a acção de graças. Esta não é meramente um exercício religioso, onde o fiel, perante a divindade, reconhece a graça recebida e a sua omnipotência. A acção de graças é um acto social de reconhecimento daquilo que em nós é devedor do outro, seja este outro um ser humano, um animal ou a natureza em geral. E o que haverá em nós que não seja devedor do outro? Na acção de graças confluem a generosidade da graça e o reconhecimento. Nessa confluência está o alicerce de toda a comunidade autêntica.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Haikai do Viandante (177)

Esteban Vicente - Ao longe (1970)

obscuras paisagens
erguem-se sobre os meus olhos
ferozes imagens

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Elemento fogo

Gustavo Torner - Átomos - Os Quatro Elementos - Fogo (1986)

Ao atingir a perfeição, tudo incandesce, a terra, a água, o ar. No princípio e no fim está o fogo. Crepita nas lareiras, braveia na floresta, sopra no fundo das galáxias. No escuro da noite, quando o coração se exalta e o espírito se ilumina, é o fogo que desce e se torna vida.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Elemento ar

Gustavo Torner - Átomos - Os Quatro Elementos - Ar (1986)

Descobre-se no sopro, canta no vento, viaja incógnito sobre terra e água. Tão subtil que parece o símbolo da ciência, a promessa de um voo, o desígnio de um profeta que, tomado pela vertigem, anuncia um mundo de fogo e desolação.