quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A viagem angustiada

Giorgio de Chirico - A viagem angustiada (1913)

Certas correntes de pensamento viram na angústia uma experiência pela qual se tomava consciência do ser, daquilo que é. Mas não será precisamente o contrário? Não será já a experiência viva do ser e da sua infinitude que gera uma consciência angustiada? Na angústia, a consciência confronta-se com o perigo da perda, com a atracção pelas ilusões que nos oferecem a possibilidade de trocarmos o ser pela aparência. Na angústia, revela-se assim o medo da nossa incapacidade de persistir no ser, o temor pelo não-ser.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Haikai do Viandante (175)

Albert Rafols Casamada - Blanco (1960)

as brancas paisagens
são sombras de velhas árvores
ramos e folhagem

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Entrar no bosque

Piet Mondrian - Bosque (1912)

Entrar no bosque é deixar o mundo da vida activa. Não se trata de uma viagem turística ou de uma mera transição entre reinos. O bosque espera aquele que, solitário e esquecido dos interesses humanos, procura a palavra que na eternidade chamou por ele. Ao entrar, o silêncio toma conta do seu coração e todo o seu ser é, nessa hora, um puro acto de escuta.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Na ira dos elementos

Antonio Muñoz Degrain - O Tejo. Chuva

Nos dias como o de hoje, onde a natureza parece revoltada e, na sua raiva, ameaça a frágil disposição dos objectos humanos, a relação do homem com a terra parece emergir naquilo que tem de mais fundamental. O homem sente-se pertença daquilo que o ameaça e escuta na ira dos elementos o seu próprio grito.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Poemas do Viandante (449)

Caspar David Friedrich - Evening (1824)

449. Em cada palavra dita

Em cada palavra dita
quando o dia cai,

em cada palavra escrita
no fulgor da noite,

há um temor que se avista:
Vem e logo vai.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O tempo perdido

Manuel Ruiz Pipó - Em busca do tempo perdido

O título da obra de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, evoca duas ideias sobre o tempo. O tempo perdido acorda o desejo de um tempo a reencontrar, de um retorno a esse tempo de que nos separámos. Evoca também o tempo desperdiçado, de um tempo que se perdeu por dissipação da vida. Mas tanto a separação como a dissipação existencial são fenómenos exteriores à temporalidade. Devemos pensar na expressão tempo perdido como uma expressão pleonástica, pois todo o tempo é perdição, todo o tempo é tempo perdido.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Haikai do Viandante (174)

Georgia O'keeffe - Abstracção (1920)

secreto segredo
desdobrado entre cortinas
aberto p'lo medo

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

No porto de abrigo

Jean Édouard Vuillard - O porto de Honfleur (1919)

Não há para o viandante porto que seja o fim da viagem. Por mais que deseje recolher a terra firme e aí estabelecer o seu domínio, o viandante deve, após breves instantes de descanso em abrigo seguro, voltar a zarpar. Não lhe cabe instituir fronteiras nem fundar um reino. Fronteiras são irrisão e o reino a que pertence não é deste mundo.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Solidão e labirinto

José Iranzo Almonacid - Isolamento 71 (1971)

A solidão pode significar a perda num labirinto? Pode, claro. Muitos perdem-se nela e devem evitá-la custe o que custar. Para alguns, porém, a solidão é o caminho para fora do labirinto, como se ela fosse o fio de Ariadne que conduz o viandante à liberdade. Solidão e silêncio.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Construir a sua gramática

Paul Serusier -  La Grammaire (1892)

Também a experiência do espírito tem a sua gramática. Não uma gramática universal ou uma gramática normativa, mas uma gramática que, a cada passo da viagem, inventa a sua morfologia e descobre a sua sintaxe. Esta gramática estrutura uma linguagem singular e irrepetível. Quem quiser fazer-se ao caminho terá de se dispor a construir a gramática da sua própria viagem.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

A viagem e o ócio

Edward Burne Jones - Peregrino à porta da ociosidade (1875-1893)

Um dos grandes perigos que assaltam o viandante nasce da confusão entre a viagem e o ócio. A viagem não é uma excursão turística, o deambular onde preenchemos a mente ociosa com a alteridade do desconhecido. A viagem é o exercício da pobreza de espírito, a prática do despojamento, a ascese que leva ao esquecimento de si. Não há porta que seja fim, pois todo o tempo é tempo de milícia.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Liberdade condicional

Ivonne Sánchez Barea - Liberdade condicional (2000)

De certa maneira, o que relativiza já a afirmação, a velha discussão sobre se o homem possui livre-arbítrio ou é completamente determinado na sua acção é ociosa. Talvez seja mais sensato pensar o homem sob a figura da liberdade condicional. Como a liberdade condicional de um condenado, também a liberdade condicional de cada homem pode, a qualquer instante, ser revogada. Não por um qualquer juiz exterior, mas por si mesmo, pela submissão àquilo que, pelo ardil do desejo, o prende. Se a nossa liberdade é sempre condicional, o caminho do homem na Terra é um infinito processo de libertação.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Poemas do Viandante (448)

Lisa Milroy - Sky (1997-98)

448. Agora Janeiro parte

Agora Janeiro parte
Cinza e violeta.

O tempo transfigurado
Inscreve nos céus

Ramos de nuvens vermelhas,
Um súbito adeus.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Poemas do Viandante (447)

Caspar David Friedrich - Evening on the Baltic Sea (1826)

447. O inverno que anoitece

O inverno que anoitece
na sombra da tarde.

O dia que passa e se esquece
sem ninguém que o guarde.

O coração que adormece
quando tudo arde.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O lugar que me espera

Guillermo Pérez Villalta - Allì (1988)

É sempre lá ou ali o lugar que nos espera, como se a viagem fosse perpétua e o lugar, aquele que agora - em qualquer agora - ocupamos, fosse uma mera passagem. Ali é o lugar que torna a realidade do meu lugar irreal e me faz mover no caminho. E em cada passo dado, o ali avança um passo, como se ele esperasse mais e mais do viandante. Ali é o lugar que me espera.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

As mãos na massa

Ramón Rivas - Amassando o pão (1978)

A imagem do pão e do vinho é recorrente na cultura ocidental, nomeadamente na poesia. O seu poder evocador é associado à ideia de partilha - a última Ceia de Cristo, por exemplo - e, através dessa ideia, chegamos à vida comum, a uma forma, sempre sonhada e jamais realizada, de comunidade. É verdade que o pão e o vinho tornam-nos próximos uns dos outros, ampliando os vínculos e consolidando alianças. Todavia, a potência poética do pão e do vinho residirá noutra coisa, residirá na sua própria poeticidade, no facto de também eles serem uma produção (poiesis - ποίησις), de resultarem de uma dinâmica onde os homens são obrigados, literalmente, a pôr as mãos na massa. É este poder operativo que se manifesta na transformação dos produtos da natureza em pão e vinho que ressoa na poesia, como se o poeta intimasse o leitor a transformar-se, também ele, em pão e vinho.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Árvores no inverno

Alex Katz- A Tree in Winter (1988)

Uma e depois outra, e outra, mais outra ainda, num processo sem fim. Quantas vidas - e nós só temos uma - precisamos para aprendermos com as árvores no inverno? Deixar cair folha a folha, despir-se de cada uma das máscaras, das ilusões, de cada desejo, deixando o vento levá-los para longe. Em vez de acumular folhas, certas árvores abandonam-nas e entram na casa da morte, de onde regressam triunfantes. De quantas vidas precisamos para sermos como as árvores no inverno?

domingo, 26 de janeiro de 2014

Haikai do Viandante (173)

Sonia Delaunay - Broderie feuillages (1909)

paisagem bordada
no restolho da manhã
alma incendiada

sábado, 25 de janeiro de 2014

Um grão de areia no deserto

Frantisek Kupka - A via do silêncio (1900)

Qual é o poder do silêncio? O poder do silêncio é a sua impotência. O silêncio enquanto silêncio não tem poder. O silêncio puro é impotente. (Raimon Panikkar, Mystique plénitude de Vie)

Raramente reparamos que a palavra, o uso da palavra, é uma forma de potência, apesar de nunca esquecermos de sublinhar o poder da palavra, sobre o qual se constroem inúmeros desvarios. O silêncio não é apenas impotência, mas convite a uma atitude essencial, convite à perda de poder. Só pode abdicar do poder aquele que alguma vez o teve. Quem escolhe o silêncio não é o que está impedido de falar, mas o que, tendo a potência do logos, dela abdica para se tornar um grão de areia no deserto.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Poemas do Viandante (446)

William Congdon - Winter (1950)

446. Ainda soa o tambor da morte

Ainda soa o tambor da morte.
Rufa no incenso da tarde,
abre clareiras no Inverno.

Ardendo de fria devoção,
um pássaro canta,
ergue a voz ao vento
e sobre as nuvens espalha

uma tinta de água azul.
Os dias crescem lentos
e o tambor não pára de rufar.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Do sentimento de harmonia

Henri Matisse - Harmonia em vermelho (1908)

Facilmente, o espírito se deixa enredar num equívoco sentimento de saudade de um tempo em que, na vida, reinava a harmonia. Essa harmonia, contudo, nunca existiu, não passava do mero desconhecimento daquilo que já nos cindia e dilacerava. A desordem, a desproporção, a assimetria são a nossa condição originária. A harmonia é o sintoma de um cansaço que a vida inscreve em cada um de nós.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Da realização do real

Albert Gleizes - Contemplação (1944)

Um estranho equívoco apoderou-se da ideia de contemplação. Pensa-se que é uma alienação do real, uma absorção do ego em si mesmo ou em algum objecto que o fascina e que, nesse fascínio, não é mais do que a projecção desse ego. A contemplação, porém, pouco tem a ver com os desvarios do ego. Contemplar é o encontro de duas presenças que, nesse instante, se tornam numa pura realidade. Não é uma alienação, mas, no verdadeiro sentido da palavra, uma realização. Na contemplação, a realidade realiza-se, torna-se efectiva, torna-se real.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Haikai do Viandante (172)

Piet Mondrian - Composition in Blue, Grey and Pink (1913)

azul cinza e rosas
desenham pela planície
ruas misteriosas

domingo, 19 de janeiro de 2014

Do caminho rochoso

David Teniers the Younger - Landscape with Rocks

Se o deserto é o lugar da tentação, as paisagens rochosas convocam o viandante à elevação, à ultrapassagem. O monotonia da identidade - essa aparência de imutabilidade que o deserto faz nascer - tenta aquele que por ali se perde. O mundo rochoso e escarpado desafia o caminhante a cada instante, propõe-lhe novos e novos enigmas, esmaga-o com a inúmera diferenciação de tudo o que existe. Cada diferença na paisagem é uma provação. Caminhar é, então, vencer cada uma das diferenças que a paisagem traz e elevar-se ao lugar onde as pode contemplar na sua invencível diferenciação.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Anunciar e aproximar

Rafael Barradas - Anunciação (1928)

Em toda a anunciação há um dar a conhecer. Neste dar a conhecer encontramos um acto de partilha do conhecimento, um exercício de aproximação entre o anunciador e aquele que escuta. Este exercício de aproximação, porém, não basta para tornar o outro num próximo. É preciso que o outro se entregue activamente ao acto da escuta, o que inclui a escuta crítica, que se aproxima e se mantenha nessa proximidade.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O caminho na noite

Lucio Fontana - Ambiente espacial e luz negra (1948-49)

É nos dias em que a luz se tinge de negro, em que a escura noite desce sobre os sentidos e o coração, que o espaço se abre e intima o viandante a prosseguir a viagem. Cego, escuta o rumor e ouve o vento. O caminho é aquele que ele próprio, no espaço sem fim, desenha com cada um dos seus passos. A noite também é tempo de viagem.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Haikai do Viandante (171)


Serena e cansada
abre-se nesta manhã
a pele rasgada.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A cidade abandonada

Fernand Khnopff - A cidade abandonada (1904)

Ressoa na ideia de cidade abandonada algo tão cativante que o viandante fica fascinado e incapaz de lhe medir o perigo ou de lhe analisar o sentido. Vazia, a cidade torna-se o lugar de todos os possíveis, a esperança de todas as mitologias, o sítio onde se escondem os milagres. O viandante, ao longe, olha-a e é a si que se vê no abandono que a viagem lhe traz.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O homem livre

Ignacio Iturria - Armário genealógico (1998)

Todos transportamos o peso do passado. Nobres ou plebeus, os homens são verdadeiros armários genealógicos, de onde salta o passado para nos assombrar ou consolar, para nos oprimir ou incendiar o orgulho de casta. O homem livre, porém, deixou a árvore genealógica e, separado das raízes, é uma semente que vai onde o vento a levar. Não tem pai nem mãe, não tem genealogia.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Uma flor esquiva

Agnes Martin - Flor al viento (1963)

Há quem pense que um tratado sobre a vida ensinará a viver. Socorridos pela razão teórica, amparados na geometria dos argumentos, os homens tornar-se-iam sábios e prudentes. A vida, porém, é uma flor esquiva que ama a incerteza e que medra no caos e no desconcerto. Pega na razão e rasga cada um dos seus tratados. Senta-se e espera que o vento sopre.