quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Dissolução e recomeço

William Turner - Sombras y oscuridad, la tarde del Diluvio (1834)

Pensa-se muitas vezes o dilúvio como sendo o registo, transformado pela memória e pelo mito, de algum acontecimento histórico. Noutros casos, encerra-se a narrativa no delírio de uma imaginação transbordante e sem o controlo da razão lógica. No entanto, o relato bíblico do dilúvio e da Arca de Noé contém em si uma simbolização que merece atenção e pensamento. Duas categorias emergem nele: a dissolução do mundo e o recomeço. No caminho dos indivíduos e dos povos - esses grandes sujeitos colectivos - são muitos os momentos onde dissolução e recomeço têm um papel central. Na verdade, recomeçar implica sempre e de certa maneira uma dissolução da antiga figura onde o espírito e a vida se cristalizaram.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

A lamentação

Albert Bloch - Lamentação (1912-13)

A lamentação contém uma ambivalência nem sempre notada. Ela é a expressão de uma passividade, de algo que se sofre a contragosto, de um desprazer. Ao mesmo tempo, porém, ela assinala a ausência de um prazer (nem que seja o da supressão do que faz sofrer) e, por isso, ela é a manifestação activa de uma revolta contra a ordem das coisas, contra aquilo que nos desgosta ou contraria. Na lamentação encontramos o símbolo do homem decaído: sofrido e revoltado.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Tornar-se completo

Edouard Manet - Cristo escarnecido por dois soldados (1865)

Jesus respondeu: «Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me. (Mateus 19:21)

A resposta dada poderia e - deveria -, no seu início, ser traduzida por Se desejas ser completo no lugar de Se queres ser perfeito. A opção por Se queres acentua uma dimensão da razão prática, onde o que é sublinhado é a vontade racional, enquanto a opção por Se desejas (Se estás inclinado) acentua uma dimensão mais funda, enraizada no que há de mais essencial e mais vital em cada ser humano.  Também é preferível traduzir  τέλειος por completo e não por perfeito. Na verdade, são sinónimos, mas no uso corrente da língua portuguesa, completo torna mais acessível o que está em jogo. A resposta de Cristo não deixa de ser surpreendente. Um jovem questiona-o sobre o que fazer para atingir a vida eterna, e ele responde antepondo ao que deve fazer a seguinte condição para a acção: Se desejas ser completo.

O que está em jogo, então, é a realização da completude de si-mesmo. Como é que eu me torno efectivamente naquilo que sou? Que fazer se desejo essa completude? Se eu quiser ser completo, se for esse o desejo radical do meu ser, então encontro uma dupla prescrição dada num movimento de ir e vir. Devo ir para me despojar do que tenho mas não sou. Os bens não são apenas a propriedade material, mas aquilo que eu posso dizer que é meu, pois na possessão o eu já está submetido ao que possui. Este é o momento da emancipação do homem daquilo que lhe é estranho. Este ir que conduz à desapropriação só tem sentido pelo vir subsequente; vem e segue-me. Se desejo ser completo, então devo ir para me despir do que é inútil e devo vir para seguir o Cristo que em mim me chama à completude, isto é, a seguir o seu caminho, a tornar-me nele. Quem é esse Cristo que assim responde? É esse Eu que, sendo já completo, se torna completo nesse movimento de ir e vir.

domingo, 18 de agosto de 2013

Palhaços por natureza

Albert Gleizes - Palhaço (1914)

Sempre que se usa de forma figurada o termo palhaço, esse uso toma uma coloração pejorativa. Chega-se a ver o epíteto como uma ofensa contra a honra. Esta recusa generalizada de se ser palhaço é sintoma de algo muito mais profundo do que parece. Na verdade, lidamos mal com aquilo que em nós é ridículo, risível, volúvel e distorcido. A cada momento compomos a máscara e afivelamos traços de dignidade que, como bem sabemos, estamos longe de poder ostentar. Finitos, frágeis e mortais, nós queremos esconder essa realidade que o palhaço, com os seus jogos burlescos e actos cómicos, torna evidente. O palhaço não é um artista, mas o espelho que devolve a nossa realidade material, a nossa natureza destituída de graça, a qual é insuportável para o orgulho da nossa razão.

sábado, 17 de agosto de 2013

A sombra da floresta

George Seurat - Floresta em Pontaubert (1881)

A floresta nunca deixa de atrair a imaginação dos homens. Se pensarmos sobre a razão de tal atracção não será a flora e a fauna as razões fundamentais dessa ligação. Se flora e fauna da floresta são interessantes para o homem, isso deve-se a estarem inscritas na floresta. A floresta é o sinal do que há de misterioso na vida dos homens, daquilo que não é completamente tenebroso, mas também não é luminoso, aquilo onde a razão com a sua luz penetra com dificuldade. Na floresta, o que atrai o homem é a sombra, essa combinação de luz e trevas. A sombra representa o enigma da existência e chama cada um a dar-lhe uma resposta. Há quem se embrenhe floresta fora, há quem prefira as auto-estradas e passar ao largo.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Poemas do Viandante (429)

Julio Romero de Torres - Canto de amor

429. A súbita queda

A súbita queda
de um vidro
estremece o coração.
Traz ao mundo
a luz funda
de um amor esquecido.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A virtude da atenção

Henri Edmond Delacroix Cross - O naufrágio (1907)

O naufrágio representa uma das metáforas correntes para referir uma vida desperdiçada. Apesar de ser corrente - quase uma metáfora morta - ela continua a ter força e a dar que pensar. Um naufrágio pode ocorrer devido às condições ambientais (o mar e os ventos), ou a um problema na embarcação, ou a um erro humano. Também uma vida pode ser desperdiçada devido ao ambiente, aos dispositivos que escolhemos para navegar na existência, ou devido à má direcção que lhe impomos. O espírito não deve, contudo, ver o ambiente e os dispositivos existenciais como algo fora de si. Isto não quer dizer que possamos controlar tudo o que nos é exterior. Não podemos. Apenas significa que a atenção é uma virtude central na aventura espiritual do homem.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

O espírito e a liberdade

George Seurat - Cows in a Field (1882)

A ideia de disciplinar o espírito, de o submeter a uma pesada e rigorosa regra, pode ter um certo valor instrumental. Amestrado, poderá servir para fins que lhe são estranhos. Um espírito que serve fins que lhe são estranhos nunca deixará de ser um espírito servil. A rigorosa disciplina pode ser o mais terrível dos equívocos. A vaca que queremos prender revolta-se, esperneia, fustiga o agressor. Livre, em campo aberto, ela encontra o seu lugar e tranquilamente faz o seu caminho. Assim é o espírito. Desacorrentado, aberto à liberdade, esquecido das servidões, ele encontrará o seu caminho e o seu lugar, que não é outro senão o caminho que encontrar. Quantas vezes, porém, para descobrir a liberdade, o espírito precisa de passar pela servidão da disciplina?

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Haikai do Viandante (154)

Thomas Cole - A wild scene (1831-32)

A vida selvagem,
dura, feroz, leva a guerra
duma a outra margem.

domingo, 11 de agosto de 2013

Simbolizações

Henri Delacroix - Ciprestes em Gagnes (1908)

A imaginação humana possui tal plasticidade que, querendo-o, de qualquer coisa faz símbolo de uma outra. Esta intermutabilidade simbólica das coisas, devido à plasticidade da nossa imaginação, mostra-nos, não nos mostrando, a ligação que, de forma mais ou menos oculta, existe entre toda a realidade. Mostra-nos ainda outra coisa: a construção de um símbolo é também a produção de uma indicação no caminho que o viandante deve percorrer. 

Tomemos os ciprestes como exemplo. Devido à sua presença nos cemitérios, são associados à morte, talvez à indicação do caminho ascendente da alma que, segundo múltiplas tradições, se eleva para os céus. Se olharmos com atenção para um cipreste, se deixarmos a imaginação entrar no livre jogo das associações somos levados a um outro lado. 

O cipreste simboliza o homem naquilo que tem de terreno (as raízes que o prendem à terra), mas ao mesmo tempo revela-lhe as suas aspirações mais elevadas, ao apontar para o alto. No cipreste descubro a radicalidade da pertença à terra e, ao mesmo tempo, o desejo (dado no carácter erecto, viril da árvore) que aspira ao que é elevado. Talvez por isso tenha sido plantado nos cemitérios, mas o que nele se manifesta não é a morte, mas a vida, uma vida desejante, potente, elevada. A vida, aprendemos, é um elevar-se da terra às alturas.