quinta-feira, 4 de julho de 2013

O viajante adormecido

Antoni Guansé Brea - Les voyageurs (1955)

O pior que pode acontecer ao viajante é adormecer na viagem. Não são apenas as paisagens múltiplas que perde, mas as metamorfoses que elas provocam no espírito. Ao deixar escapar a hora de cada metamorfose, é a si mesmo que perde. A viagem vai de si para si mesmo, vai desse si que secretamente , inconscientemente, somos ao si que, de metamorfose em metamorfose, descobrimos no confronto com as várias paisagens por onde o vento nos leva. O que adormece na viagem perde a hora do reconhecimento. Ao acordar, apenas o sono espera por si.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Crer sem ter visto

Pablo Picasso - El viejo guitarrista ciego (1903)

Porque me viste, acreditaste. Felizes os que acreditam sem terem visto. (João 20:29)

Neste texto de João estamos perante dois modos de formação de uma crença. A primeira tem uma dimensão empírica. Crê-se em algo porque se constatou e verificou empiricamente essa coisa, esse  facto ou esse acontecimento. A outra diz respeito à formação da crença sem recurso à constatação empírica. O texto é surpreendente por dois motivos. Em primeiro lugar, há uma clara menorização do conhecimento empírico, uma desvalorização da necessidade de certificação de uma certeza, como se estivesse incoativa, nas palavras de Cristo dirigidas a Tomé, uma censura ao empirismo e à ilusão dos sentidos. 

Em segundo lugar, é introduzida uma transição de um discurso de carácter epistemológico, para utilizar o jargão filosófico, para um discurso onde a ciência (dada num crer) se funde com a ética e o desígnio de uma vida feliz. Felizes são aqueles que, mesmo cegos, chegam à verdade. Esta não depende da acuidade dos sentidos, mas da disponibilidade para ser acolhida. E aqui não há nenhum apelo ao dogmatismo e à imposição da verdade a quem quer que seja. Há apenas a distinção de que uns serão felizes e, provavelmente, os outros não. A felicidade depende do conhecimento, mas do conhecimento que nasce do acolhimento e não da certificação empírica.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Haikai do Viandante (150)

Urgell Inglada - Barcas contraluz

Incêndio no mar.
E se o sol adormece,
chega o luar.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

O caminho do Vento

Felix Vallotton - The Wind (1910)

O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito. (João 3:8)

Uma das metáforas mais conhecidas do Espírito é a do vento, esse vento que sopra onde quer, mas do qual não sabemos origem nem destino. Nascer do Espírito é, assim, integrar-se num não saber, é abandonar a certeza, seja aquela que nos diz de onde viemos, seja a outra que aponta um fim. Este não saber significa tornar-se flexível, aprender a não resistir ao vento, mas curvar-se segundo o sopro que nos atinge. Aquele que resiste ao Espírito acabará despedaçado, mas o que se curva, levado pelo sopro, encontra o caminho que o Vento lhe indica.

domingo, 30 de junho de 2013

O olhar retrospectivo

René Magritte - El maestro de escuela (1954)

Disse-lhe ainda outro: «Eu vou seguir-te, Senhor, mas primeiro permite que me despeça da minha família.» Jesus respondeu-lhe: «Quem olha para trás, depois de deitar a mão ao arado, não está apto para o Reino de Deus.» (Lucas 9:61-62)

Há dias, no contexto do Antigo Testamento e a propósito da mulher de Lot, abordou-se aqui a questão do olhar retrospectivo. Com estes versículos do evangelho de Lucas, mas também com os que os antecedem, retorna-se à punição do olhar para trás. A questão é introduzida pelo desejo de se despedir da família ou, noutras traduções, dos que que estão em sua casa. Esta indicação é preciosa, pois permite alargar o grau de compreensão  da resposta dada. Naquele que quer despedir-se da família ainda permanece um desejo do que é familiar, daquilo que pertence ao reino do habitual, à forma convencional de ser, de estar e de olhar o mundo. Não se trata de uma crítica à família, mas de tornar claro que a via proposta (o Reino de Deus) não está no hábito, não está naquilo que se tornou  familiar para a consciência. Ela não é uma convenção mas uma efectiva aventura.

Olhar para trás é o sinal de pertença a este mundo, que a sua imagem ainda move o desejo e o coração, que ainda não se está perante uma consciência pura e uma vontade liberta das seduções que o familiar traz consigo. O uso da metafórica agrícola - deitar a mão ao arado - é de uma grande precisão. Olhar para trás quando o arado sulca a terra implica o enviesamento, o sulco deixa de ser um recto caminho para passar a ser o fruto da distracção e do acaso. Quem olha para trás não vê aquilo que à frente chama por si. Naquele que diz que quer seguir o Senhor e, ao mesmo tempo, deseja olhar para trás, nesse, o coração ainda está dividido entre a segurança do familiar e a incerteza e a aventura de penetrar no não familiar, no inabitual. Todo o olhar retrospectivo é uma confissão de uma vontade que ainda não abriu mão daquilo que a seduz, que ainda não está pronta para o caminho.

sábado, 29 de junho de 2013

Preconceitos modernos

Albano Vitturi - Gli eremiti di Faida (1934)

O triunfo da modernidade sobre o modo de vida medieval manifestou-se também na substituição dos velhos preconceitos por novos. Assim como os medievais não compreendiam os seus preconceitos como preconceitos, também os modernos são incapazes de reconhecer, enquanto tal, os seus. Dois preconceitos tomaram conta da vida dos homens e quase destruíram a herança espiritual do Ocidente. 

O primeiro preconceito diz respeito ao desprezo que os modernos patenteiam à vida contemplativa. A modernidade é o triunfo do negócio e a imposição a todos os homens de uma vida activa, de onde a contemplação foi pura e simplesmente banida. Mesmo a vida académica, hipoteticamente herdeira da tradição filosófica grega, uma tradição contemplativa, se tornou em dura actividade, em negócio puro e simples. 

O preconceito contra a vida contemplativa acentua-se quando se trata da opção pela solidão. Aquele que se separa dos homens para se confrontar consigo e com o Absoluto tornou-se de tal maneira estranho, que os modernos, presos à acção e ao medo de estar sós, destruíram o desejo e a possibilidade de erguer eremitérios, onde os homens, libertos dos negócios do mundo, possam entregar-se à vida do espírito. Nada mais repelente do que os antigos conventos de contemplativos transformados em edifícios para turistas.

Não se compreende, porém, que o cerne da nossa tradição espiritual reside naquilo que a contemplação permitiu criar, naquilo que, em solidão, homens e mulheres puderam descobrir. A crise do Ocidente não é económica ou política, mas uma crise espiritual, uma crise que nasce do preconceito contra a contemplação e a vida de solidão, que todos os homens deveriam, em certos momentos da sua vida, aceder, confrontando-se consigo, com o seu destino e com aquilo que o Absoluto lhes propõe como caminho.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Poemas do Viandante (423)

Benvenuto Benvenuti - Frate foco (1925)

423. Descrevo a sintaxe do fogo sobre a terra

Descrevo a sintaxe do fogo sobre a terra
e espero a hora em que nasça
uma gramática subtil feita de faúlhas,
os frutos breves da amendoeira,
a velha servidão sob o peso da terra.

Atiro longe o dardo do amor
e ele perde-se enovelado nos ares,
rodopia sob a inclemência solar
e traceja nuvens de cinza no horizonte de água.

A minha casa é feita de pedra e colmo,
e o fogo arde diante da porta.
Sentado, olho as labaredas
e conto os anos inscritos nas velhas árvores,
os troncos fendidos, ramos decepados.

Os fotões iluminam-me a memória
e com as mãos livres desenho o delicado rosto,
soberbo, suave, quase sonoro,
com que um dia te prendeste nos meus dedos.

E tudo em mim canta no prodígio dessa imagem,
a velha maçã que perdeu Adão,
a guerra de Tróia e o cavalo desejado,
e todos aqueles que enlouqueceram junto ao oceano,
presos no fascínio das ondas ao rebentar.

Da pobre janela, oiço o galope do futuro,
chega com as chuvas de Novembro,
coberto de feridas e uma sombra no olhar.
Abre-se numa fortuita constelação de ervas pálidas

e traça um cavalo lívido de fogo
nas paredes exaustas e negras da casa:
relincha, empina-se e parte campo fora,
sem uma morfologia que o classifique
sem um fogo que lhe incendeie de terra o coração.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Da autoridade do autor

Albert Gleizes - Autoridade espiritual e poder temporal (1939-40)

Quando Jesus acabou de falar, a multidão ficou vivamente impressionada com os seus ensinamentos, porque Ele ensinava-os como quem possui autoridade e não como os doutores da Lei. (Mateus, 7:28-29)

Surge muitas vezes, na opinião publicada, o delicado problema da autoridade dos professores. Por norma, as respostas dadas são insípidas e falham o alvo. De onde provém a autoridade daquele que ensina, seja ou não professor? Os  versículos citados de Mateus são uma porta por onde podemos penetrar no mistério da autoridade daquele que ensina. O que impressiona a multidão no ensino de Cristo é a diferença que apresenta relativamente aos doutores da lei, aos escribas. No escriba encontramos um certo tipo de autoridade. Eles têm a autoridade de quem conhece a lei, porque a interpreta, e os livros sagrados. Numa sociedade teocrática, têm ainda uma autoridade legitimada pelo poder político (mesmo que este esteja, como era o caso, submetido aos representantes de Roma). No entanto, nem a autoridade proveniente do poder nem a fundada na erudição constituem uma verdadeira autoridade (sobre isto ver o post de ontem).

Se não é nos livros nem no poder, onde residirá a autoridade que sustenta o ensino de Cristo? A palavra grega usada e traduzida por autoridade (ἐξουσίαν) tem um amplo campo semântico. Ela conjuga a energia, a capacidade, a competência e a liberdade do sujeito que possui a autoridade e, ao mesmo tempo, o direito, o poder, o domínio e a força que objectivamente lhe é reconhecida (ver aqui). Em síntese, pode-se dizer que esta autoridade reside na liberdade do autor, na liberdade da autoria. Cristo era o autor da ordem do mundo que ele próprio anunciava e, por isso, as suas palavras tinham autoridade que, ao serem escutadas, logo era reconhecida. Elas, as Suas palavras, não vinham de um exercício hermenêutico sancionado pelos poderes político-religiosos e académicos, mas da própria essência daquele que fala. A fragilidade dos doutores la lei reside na distância que vai entre aqueles que interpretam racionalmente a lei e aqueles que, ao vivê-la e ao torná-la vida, se tornam os seus autores. A verdadeira e única autoridade é aquela que nasce da autoria.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Do uso das bibliotecas

Helena Vieira da Silva - Biblioteca (1953)

Numa história onde, por várias vezes, grandes bibliotecas foram queimadas, num país onde, devido à escassez, as bibliotecas foram elevadas à condição de templo sagrado (tão sagrado que muito nem lá entram), a biblioteca tornou-se uma metonímia da sabedoria. Aquele é uma biblioteca ambulante. Morreu uma verdadeira biblioteca. Estas expressões acabam por estabelecer uma ligação estreita entre a leitura de livros e a sabedoria. Mas ler livros tornar-nos-á sábios? Não houve, na história da humanidade, grandes leitores cujo comportamento foi insensato ou, mesmo, absolutamente perverso?

Não é a leitura de livros que nos torna sábios, mas uma certa disposição para a sabedoria que nos leva a encontrar nos livros um alimento dessa mesma sabedoria. Dito de outra maneira, a sabedoria não é a consequência de uma causa chamada leitura. Pelo contrário, a leitura é a consequência de uma certa disposição para a sabedoria. Só assim a leitura faz parte da viagem espiritual do homem. Caso contrário, mesmo que não tenha efeitos perversos em certas personalidades, ela não tem mais efeitos intelectuais do que o consumo de chocolates tem ao nível do corpo.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Haikai do Viandante (149)

Nikolay Dubovskoy - Calm (1890)

Ó pura quietude,
cais silenciosa e fria
sobre a vida rude.