terça-feira, 21 de maio de 2013

Presença e meditação

Eugène Carrière - Meditação (1900)

O senso comum pensa muitas vezes a meditação como uma espécie de ensimesmamento do sujeito, uma fuga da realidade e do mundo da acção. Os estados meditativos seriam, desse modo, uma alienação e uma errância do sujeito na sua vida interior. No entanto, esta visão é muito limitada. Os estados meditativos podem ser momentos de grande atenção à realidade, aquilo a que se poderia chamar uma sobre-atenção, onde o espírito se abre livremente para o fluir do acontecer. Por outro lado, a própria acção deveria ser consumada em estado meditativo, como se ela fosse a expressão directa de um espírito livre e atento a cada instante e a cada gesto. Isto só tem sentido, contudo, se se entender a meditação como a presença plena e desperta do sujeito em cada instante e em cada gesto, como a substituição dos estados representativos da inteligência pela presentificação do espírito na vida quotidiana, já que não há outra vida que não a quotidiana.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Poemas do Viandante (416)

Edward Burne Jones - O lamento (1866)

416. Nas cinzas de um lamento há uma rosa

Nas cinzas de um lamento há uma rosa,
a flor perdida da primeira inocência,
rasto severo da obscura mão do destino.
A maculada consciência é um fruto tardio,
memória de poeira em pedra de carvão.

Dobro-me sobre a vida que passou
e deixo correr entre dedos
cada momento em que o mal me tocou,
criou raízes na terra dura da verdade
e me abriu, negro e férreo, para a irrisão.

Não tenho palavras para todas as confissões.
Gastei-as errando pelas veredas de sombra,
abrindo caminhos de aço na solidão do mundo.
Entoo a patética elegia da inocência
e escuto rendido o amanhecer da saudade.

domingo, 19 de maio de 2013

Caminho interior

Kenneth Noland - Caminho interior (1961)

Na vida dos homens talvez não faça sentido distinguir entre caminho interior e caminho exterior. O único caminho - ainda que diferente para cada um - é o caminho interior. Na exterioridade, não há caminho algum, apenas becos sem saída, onde os homens desesperam e perdem o sentido das suas vidas. Em si mesmo, cada um encontrará o alvo para onde deverá dirigir a seta da sua acção. Quem se perde de si e mergulha nas trevas exteriores substitui o caminho pelo labirinto, do qual não tem o fio de Ariadne que lhe permita retornar à luz e à vida.

sábado, 18 de maio de 2013

Haikai do Viandante (143)

Albert Bierstadt - Atardecer en la pradera (1870)

O rumor da tarde
ateia incêndios nos céus.
Tudo, tudo arde.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

O prazer da transfiguração

Mikhail Aleksandrovitch Vrubel - A Primavera (1897)

Não sei se alguma Primavera me surpreendeu tanto quanto a deste quadro de Vrubel. No lugar da alegria triunfante sobre a noite invernosa, encontramos a pura contenção. No lugar da exteriorização, vemos a discreta interioridade. No lugar das cores vivas, são os tons melancólicos que dominam. Talvez toda a sabedoria se resuma em apreender em cada coisa o seu contrário e perceber a realidade como um todo indivisível. Na alegria primaveril é preciso intuir, de imediato, a melancolia do outono, e saber que nesta está já toda a esperança de uma nova primavera, como se para o espírito as várias figurações do tempo não passassem de um jogo em que o mesmo, aquilo que permanece idêntico, se entrega ao puro prazer da transfiguração.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Da fonte do amor

Jean Delville - L'amour des âmes (1900)

Na história da humanidade sempre o amor foi sentido como um excesso, não um excesso da natureza, mas um excesso que ultrapassa a natureza, como se esta, em si mesma, fosse incapaz de dotar os corpos de tão sublime sentimento. Um corpo é desejável. No entanto, o desejo é incapaz de explicar o amor, de explicar precisamente o amor que sinto por quem está num dado corpo. É nesta impotência da explicação empírica que o homem compreende que uma outra coisa é necessária para que o amor possa nascer. Esse lugar amoroso é a própria alma e todo o amor tem na alma a sua fonte. Duas almas amam-se e, de súbito, o desejo dos corpos é mais do que um desejo, é uma luz que cai sobre eles e, ao nimbá-los, torna-os sublimes.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Poemas do Viandante (415)

Frantisek Kupka - O desafio (1903)

415. Ergo o desafio tecido de vertigens

Ergo o desafio tecido de vertigens
e deixo fluir o medo,
a dor excessiva que fere a carne,
desenha o informe trazido pelo tempo
e crava o aguilhão no centro do peito.

No lago do passado, sobre as águas frias,
flutuam velhas caravelas,
barcaças rudes tracejadas a carvão,
umas mãos brancas e febris
estendidas para o vazio que as espera.

Nessa obscuridade a que chamam amor,
deponho as armas inúteis,
entrego o velho castelo
à sombra silenciosa da tua sombra
e aguardo o rigor cruel dessa boca.

Um presságio desenha-se no horizonte,
e o monstro que me espera
eleva-se na majestade dos céus.
O seu peso não tem medida
e o olhar rasga-me as entranhas da alma.

Perdi o ofício que me atava à vida.
Esqueci cada desafio trazido pelo tempo.
Exausto, anseio pela floresta,
e canto, imóvel e sereno, a loucura
do corpo lacerado pela solidão.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Orfismo e cristianismo

Alexandre Séon - Lamento de Orfeu (1896)

Os limites espirituais do politeísmo grego expressam-se plenamente no mito de Orfeu. Diz a lenda que tendo perdido Eurídice, a amada levada pela morte, Orfeu desce aos infernos para a resgatar para a vida. Consegue convencer os deuses infernais a libertarem a amada. Estes, porém, impõe-lhe uma condição. Que nunca olhe para ela enquanto durar a travessia do reino dos mortos. Orfeu, todavia, não consegue resistir à necessidade de certificação ou ao desejo e acaba por perder Eurídice. 

O orfismo reflecte a impotência perante a morte, a incapacidade do homem resgatar a alma (Eurídice) do túmulo (o corpo ou o reino dos mortos). De certa forma é a isto, ao mistério que aqui se representa, que o cristianismo veio responder. Também Cristo desce ao reino dos mortos, não como corpo que procura no fundo de si a sua alma, mas como aquele que morreu e que na morte, na morte do homem velho, encontrou uma nova vida, melhor: encontrou a vida. Orfismo e cristianismo respondem ao mesmo problema, mas a vitória do cristianismo está toda ela contida no destino diferente que tiverem Orfeu e Cristo na sua descida ao reino dos mortos.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

A anunciação e a proclamação

Oskar Kokoschka - A Anunciação (1911)

O que faz da Anunciação um episódio central do cristianismo é a capacidade de escuta de quem é a receptora do anúncio. Escutar é, desse modo, uma dimensão central do caminho do espírito. A vida pública está ligada ao regime da proclamação. Mais do que escutar, os que têm papel central na esfera pública querem proclamar a sua verdade. O caminho do espírito, porém, não se inscreve no regime da publicidade. Quem quer entrar nele terá de pôr de lado qualquer veleidade à proclamação e aprender a escutar. O homem na sua finitude e falibilidade não é o anunciador da verdade, mas aquele para quem a Verdade é anunciada. Saber escutar é, desse modo, uma virtude central no caminho do viandante.

domingo, 12 de maio de 2013

Haikai do Viandante (142)

Caspar David Friedrich - Cape Arkona at Sunrise (1803)

Luz pálida e pura
da súbita madrugada
abre a noite escura.