domingo, 21 de abril de 2013

Orfandades

Giovanni Segantini - Gli orfani (1886)

Talvez o sentimento de orfandade ultrapasse em muito a experiência da perda parental. Por terrível que seja a orfandade biológica e familar, ela inscreve-se - porventura, ganha sentido - num outro sentimento de orfandade anterior e consitutivo da nossa experiência do mundo. Talvez vir ao mundo seja já sentido como orfandade, como a perda de algo decisivo e fundamental. E esse sentimento de perda acompanha o homem ao longo da vida, como se fosse um sinal para que ele tome consciência daquilo que perdeu. De certa maneira, a tematização da derrelicção em Heidegger é uma aproximação a essa orfandade originária. Só que esta não é o sentimento de um puro abandono no mundo de um ser para a morte, mas o vestígio que desencadeia a reminiscência e põe o homem a caminho do que perdeu.

sábado, 20 de abril de 2013

Haikai do Viandante (139)

Francis Picabia - El árbol amarillo (1909)

Árvore amarela
abre-se sobre a floresta,
traz a luz com ela.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Poemas do Viandante (410)

Malcolm Morley - Leopard Panthera (1997)

410. Brilham na noite os olhos do leopardo

Brilham na noite os olhos do leopardo,
diamantes que perfuram as entranhas,
e abrem na vida o mistério da morte.

Soberbo animal decaído na terra,
rasto de fogo sob o gélido pavor,
vertigem que sacode a poeira
e rasga a luz em tecidos de sombra.

A pura espera de sangue na boca,
um hálito de facas afiadas
apontado ao coração da vítima,
dança arcaica no terreiro obscuro,
onde o deus armou o altar.

Esses teus olhos resvalam na alma
e o corpo transido entrega-se
ao galope do anjo negro.
E sob o luminoso olhar canta-se
o requiem que a morte concede
ao vestígio de dor que anima a vida.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Caminho de sabedoria

Pablo Picasso - Pareja de pobres (1903)

Segundo o bispo Alberto, um homem pobre é aquele que não se satisfaz com nada que foi criado por Deus; e isto está bem dito. Mas nós dizemos ainda melhor e tomamos a palavra pobreza num sentido ainda mais elevado: é um homem pobre aquele que não quer nada, não sabe nada e não tem nada. (Meister Eckhart, Sermão alemão n.º 52)

Será preciso, para compreender estas palavras de Eckhart, distinguir entre ciência e sabedoria. A ciência é a posse de qualquer coisa, de uma imagem da realidade, de uma representação das coisas. A sabedoria, porém, nasce do desapossamento total. Ela é, de facto, pobreza de espírito. A importância da pobreza não deriva de haver pobres socialmente, mas no facto de que quem procura a sabedoria deve aprender a tornar-se pobre de espírito. O que significa isto? Significa que deve abandonar todo o conhecimento ilusório adquirido no mundo, todo o domínio das aparências com que se auto-ilude. A pobreza de espírito, porém, não é apenas uma purga cognitiva e uma limpeza teórica. Ela é também uma purificação da vontade, ao abandonar toda a vontade de poder e todo o desejo de posse. Aniquilar em si a vontade de poder, de saber e de possuir é o primeiro passo para uma abertura à verdadeira sabedoria. Estas são as mais estranhas palavras que se podem dizer a uma consciência moderna, tão orgulhosa das suas conquistas, dos seus poderes e dos seus saberes. Não compreende que na verdade, por útil ou agradável que tudo isso seja, não deixa de ser vento que passa.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Folhas mortas

Ernest Biéler - La Ramasseuse de feuilles mortes (1909)

Colher as folhas mortas para as transformar em fertilizante que, ao ser devolvido à terra, alimentará a vida. Quando Platão diz que uma vida não examinada não merece ser vivida, é de folhas mortas que ele está a falar. Examinar a vida vivida é recolher as folhas mortas e, através de severo e meditativo exame, dar-lhe um sentido que alimentará a vida a viver. Nada do que se fez, pensou ou omitiu é sem préstimo. Pelo contrário, reside nessas estranhas folhas que o tempo arrancou de nós a matéria viva que a vida exige para entrar nesse reino inquietante a que damos o nome de futuro.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Poemas do Viandante (409)

George Inness - Autumn Oaks (1877)

409. Na sombra misteriosa dos carvalhos

Na sombra misteriosa dos carvalhos
nasce uma conspiração de silêncios,
rumores de água que esperam o inverno
para desabar sobre a terra
e rasgar os olhos presos ao horizonte.

Quantas vezes ardeu o coração,
sob a inclemência das folhas caídas,
sob o vento urdido pela memória?
Quantas vezes a ferida sangrou,
se incauto o tempo escutou a luz da noite?

Carvalhos, barcos que florescem na planície,
folhas verdes traçadas pelo sangue do outono,
antigos tronos perdidos no invisível.
Velhos e magníficos, anunciam na terra
o desejo da água que corre para o mar.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Renúncia a si e interesse próprio

Giotto di Bondone - A renúncia aos bens (antes de 1300)

Deves saber que até agora nunca ninguém, nesta vida, renunciou a si que não encontre a que renunciar ainda. Poucas pessoas tomam isso em consideração e preservam na renúncia a si. (Meister Eckhart, Instructions Spirituelles, 4)

Os homens medievais não eram diferentes dos homens de hoje. As mesmas paixões e as mesmas virtudes ligam-nos, apesar das diferenças históricas e sociais. O que os distingue, verdadeiramente, é o ideal que orienta a vida de cada um. Sublinho ideal e com isso quero dizer que entre o ideal e a realidade há uma efectiva distância.

O ideal de renúncia à vontade própria era um princípio orientador da vida medieval, que transbordava das instituições religiosas para a vida secular. Ora, hoje em dia, esta ideia é completamente estranha ao nosso modo de vida e à forma como as novas gerações são educadas. Aquilo que a sociedade apresenta como racional é a busca do interesse próprio e a satisfacção da vontade individual ou dos desejos pessoais.

Ao mesmo tempo que os mecanismos de socialização incentivam o egoísmo, quando não o narcisismo, são impotentes para criar as condições materiais para que todos possam satisfazer esse  interesse próprio e perseguir aquilo que o desejo e a vontade lhes ditam. Quando Sarte, em Huis Clos, diz que o inferno é os outros, devido a frustrarem o nosso desejo, apenas apreende uma parte do problema. 

É o próprio mecanismo das sociedades modernas que é infernal, pois necessita, pela sua natureza, de incentivar até ao paroxismo a vontade e o desejo de cada um, ao mesmo tempo que se estrutura de forma que até as necessidades mais básicas são praticamente impossíveis de satisfazer por grande parte das pessoas. Talvez se chegue, um dia, à situação em que aprender a renunciar a si seja mais que uma condição da vida religiosa, para se tornar a condição de possibilidade da existência de sociedades humanas equilibradas num planeta exaurido nos seus recursos.

domingo, 14 de abril de 2013

Haikai do Viandante (138)

Alexander Cozens - Landscape with Wooded Crag

Ó sombria paisagem,
que estranho e frio fantasma
te traçou a imagem?

sábado, 13 de abril de 2013

Razão e Revelação

Copista Anónimo de Rubens - Triunfo da Eucaristia sobre a Filosofia

A tentativa de assumir a teologia cristã no apriorismo filosófico tem que dar-se por fracassada. A filosofia retirou-se, novamente para a sua tarefa de ciência puramente racional, e também desistiu da ambição de transformar o conteúdo da Revelação cristã numa espécie de verdade necessária da razão. (Robert Spaemann, El rumor inmortal - La cuestión sobre Dios y la ilusión de la Modernidad, p.83)

Apesar da existência, nos círculos do cristianismo, de um pensamento que se expressa na arte do copista anónimo de Rubens, que representa o triunfo da Revelação sobre a razão, a verdade é que parte substancial do pensamento moderno, já para não falar no medieval, foi uma tentativa de conjugar as tradições originadas na razão e na Revelação cristã. Robert Spaemann sublinha-o, embora assinale o fim desse projecto ao reconhecer o fracasso da assimilação da teologia cristã pelo apriorismo filosófico e a desistência da intenção da filosofia de transformar o conteúdo da Revelação numa espécie de verdade da razão.

Poderemos perguntar sobre o que, em cada um dos projectos, resiste ao outro. Do ponto de vista da razão, a natureza dogmática da religião revelada parece ser, apesar de uma longa convivência, um obstáculo instransponível. Por seu turno, o carácter crítico da razão parece tornar o princípio de autoridade em que se funda o cristianismo inassimilável pela razão crítica. No entanto, há que questionar a impossibilidade desse projecto de aproximação e de fusão entre razão e Revelação.

Algumas notas sobre essa possibilidade de aproximação que parece ter caído em desuso. Em primeiro lugar, o carácter débil ou frágil da razão autónoma e crítica. A autonomia da razão descoberta pelos gregos e tornada elemento estrutural do pensamento moderno e contemporâneo não foi outra coisa senão um processo de mitificação da razão, que emerge assim como uma potência e princípio de autoridade, de que não se percebe a proveniência nem o fundamento. 

Em segundo lugar, o carácter crítico da razão, pelo qual se rejeita o dogma e a autoridade, não apenas está fundado nessa natureza mítica acima referida, como se funda ele próprio num elemento dogmático, devido à origem e natureza da crítica. Esta deriva de krísis (κρίσις) que significa disputa e julgamento, mas também sentença, decisão, determinação. O elemento dogmático é dado pelo facto da sentença ou decisão terem de se apoiar numa norma a priori não sujeita à crítica.

Em terceiro lugar, se o conceito de dogma remete para uma autoridade, ele contém em si, na arqueologia semântica que proporciona, elementos de dúvida que implicam uma tomada de decisão, o que, surpreendentemente, aproximam o conceito de dogma e de crítica mais do que seria imaginável.

Por fim, convém chamar a atenção, e a leitura dos textos evangélicos é muito susgestiva, para a natureza crítica da Revelação. A Revelação da divindade de Cristo é dada, muitas e muitas vezes, no âmbito de uma crítica do comportamento social e moral e também das ilusões que se têm acerca do mundano. É o próprio Cristo que, no Evangelho de João, é identificado como o Logos divino. A palavra logos que é traduzida por verbo, significa razão uma Razão divina.

Talvez o processo de aproximação entre as duas bases fundamentais da cultura ocidental ainda tenha um destino e uma possibilidade de realização, apesar do ambiente hostil que esse projecto, certamente, encontrará nos dias e hoje.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

A atenção ao mundo

El Greco - Vista del Monte Sinaí (1570-72)

Insisto: a sede da mística não é na estratosfera, mas sobre esta "terra dos homens", mesmo se o místico tem a audácia de nela escalar os cumes mais altos. Não sonha em ir para a lua, onde não há atmosfera, mas tenta subrir sobre o Tabor, o Sinai, sobre o Meru, sobre o Kailãsa, sobre o Sumbur (Semeru), sobre o Haraberazaiti (Harbuz), etc.: isto é, os lugares terrestres onde céu e terra se encontram. (Raimon Panikkar, Mystique plénitude de Vie. p. 209)

A vida do espírito não é um acto de cobardia e de fuga ao mundo. Pelo contrário, é o modo de vida onde se exige a maior das atenções à vida na Terra, pois esta é a condição do ser humano. Atenção não significa alienação e estranhamento perante sua própria natureza de ser dotado de espírito. Significa, em primeiro lugar, compreender que também a Terra e as coisas na sua materialidade contêm, para não dizer que são, o espírito. Significa, em segundo lugar, que a vida do espírito se alicerça na materialidade do corpo humano, nos poderes e fragilidades da carne. Significa, em terceiro lugar, que qualquer ascensão espiritual implica o reconhecimento de que a materialidade corporal do ser humano está submetida à lei da gravidade.

O místico (ou espiritual) deve então ser o mais desperto dos homens para as realidades terrestres. Sem essa atenção e esse estar desperto, não há monte a que ele consiga ascender, não haverá possibilidade de trilhar o caminho que o leva ao ponto onde a Terra e o Céu se encontram, não encontrará o lugar em que Deus e o homem se tocam. O desprezo pela finitude da terra e pela fragilidade do corpo terá como contrapartida o encerramento na caverna e a prisão no corpo, como já Platão bem o sabia.