domingo, 17 de março de 2013

A mulher que encontrou o caminho

Max Beckmann - Christ and the Woman Taken in Adultery (1917)

Naquele tempo, Jesus foi para o Monte das Oliveiras. De madrugada, voltou outra vez para o templo e todo o povo vinha ter com Ele. Jesus sentou-se e pôs-se a ensinar. Então, os doutores da Lei e os fariseus trouxeram-lhe certa mulher apanhada em adultério, colocaram-na no meio e disseram-lhe: «Mestre, esta mulher foi apanhada a pecar em flagrante adultério. Moisés, na Lei, mandou-nos matar à pedrada tais mulheres. E Tu que dizes?» Faziam-lhe esta pergunta para o fazerem cair numa armadilha e terem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se para o chão, pôs-se a escrever com o dedo na terra. Como insistissem em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes: «Quem de vós estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra!» E, inclinando-se novamente para o chão, continuou a escrever na terra. Ao ouvirem isto, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e ficou só Jesus e a mulher que estava no meio deles. Então, Jesus ergueu-se e perguntou-lhe: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?» Ela respondeu: «Ninguém, Senhor.» Disse-lhe Jesus: «Também Eu não te condeno. Vai e de agora em diante não tornes a pecar.» (João 8,1-11) [Comentário de João Paulo II aqui]

Este é um dos textos mais conhecidos de João e um dos marcos civilizacionais mais profundos trazidos pelo cristianismo. A partir deste momento, não há legitimidade para apedrejar alguém, seja por que razão for. Se a carga simbólica do texto tem uma dimensão cultural e civilizacional, estas, apesar de muito importantes, não serão as únicas nem as fundamentais. O que está em jogo no texto de João é, mais uma vez, o conflito entre a Lei – a Lei mosaica – e a Vida, entre o formalismo e a existência.

A Lei é utilizada, por parte dos doutores da Lei e dos fariseus, como estratégia contra a Vida, como armadilha. E é esta possibilidade da Lei servir de armadilha aquilo que mostra o que a Lei tem de frágil e de exterior, e por isso ela precisa de ser superada (no sentido hegeliano do termo). A resposta que é dada altera o ponto de vista em que fariseus e doutores da Lei tinham colocado a questão. Esta é colocada do ponto de vista jurídico e a resposta é dada com uma confrontação com a vida e a consciência. Desloca-se assim a questão da infidelidade do âmbito do direito para o da ética. Esta, contudo, não deve ser entendida como moral (conjunto de costumes que regulam a vida social) mas como forma de habitar o mundo orientada para uma vida boa. O que fica claro é que, eticamente, os acusadores não têm qualquer legitimidade para julgar e condenar.

O texto contém, assim, dois modos de não condenação. Um modo fundado no confronto ético com a sua consciência, que mostra a não legitimidade dos acusadores, pois a sua natureza é também ela corrupta. O outro modo de não condenação, radicalmente diferente, é o de Cristo. Este funda-se numa outra natureza que é essencialmente misericordiosa, pois não radica numa consciência culpada. Esta consciência não culpada e misericordiosa é o fundamento das consciências culpada, aquilo que, em alguns momentos, as levam a recuar no formalismo jurídico e a conter-se no mal que preparam, sob a capa da pena de um delito, para fazer

Nas palavras de Cristo, porém, há mais do que uma manifestação de misiricóridoa. Há uma exortação na expressão Vai e de agora em diante não tornes a pecar. O “vai” não pode ser interpretado como um mero afasta-te, vai-te embora. Significa fundamentalmente toma o teu caminho. Quando se toma o caminho, aquele que nos pertence, abandona-se o estado de errância, a ausência de norte. O “não tornes a pecar” deve ser entendido neste sentido. Porque ela toma o seu caminho – agora que o descobriu – não retornará à errância. Como é que o caminho, para esta mulher, se revela? Pela tensão gerada entre a acusação e a revelação de Cristo. No momento de maior perigo, o caminho manifesta-se e abre para uma outra dimensão que está muito para além daquilo que é meramente regulado pela Lei. Ela encontra agora o sentido da vida, o horizonte de uma vida boa.

Haikai do Viandante (131)

Antonio Fontanesi - A sera (1862)

Na margem do rio
erguem-se as primeiras sombras.
Chega a noite eo frio.

sábado, 16 de março de 2013

O problema da identificação

Thomas Cole - Cruz ao entardecer (1848)

Naquele tempo, alguns que tinham ouvido as palavras de Jesus diziam no meio da multidão: «Ele é realmente o Profeta.» Diziam outros: «É o Messias.» Outros, porém, replicavam: «Mas pode lá ser que o Messias venha da Galileia?! Não diz a Escritura que o Messias vem da descendência de David e da cidade de Belém, donde era David?» Deste modo, estabeleceu-se um desacordo entre a multidão, por sua causa. Alguns deles queriam prendê-lo, mas ninguém lhe deitou a mão. Depois os guardas voltaram aos sumos sacerdotes e aos fariseus, que lhes perguntaram: «Porque é que não o trouxestes?» Os guardas responderam: «Nunca nenhum homem falou assim!» Replicaram-lhes os fariseus: «Será que também vós ficastes seduzidos? Porventura acreditou nele algum dos chefes, ou dos fariseus? Mas essa multidão, que não conhece a Lei, é gente maldita!» Nicodemos, aquele que antes fora ter com Jesus e que era um deles, disse-lhes: «Porventura permite a nossa Lei julgar um homem, sem antes o ouvir e sem averiguar o que ele anda a fazer?» Responderam-lhe eles: «Também tu és galileu? Investiga e verás que da Galileia não sairá nenhum profeta.» E cada um foi para sua casa. (João 7,40-53) [Comentário do Concílio Vaticano II aqui].

Quem é aquele que fala? A controvérsia gerada perante a figura de Cristo transporta-nos para o centro de um problema de identificação. Será um profeta? Será o Messias? Será um embusteiro? Será um sedutor? O que está em causa não é a identidade daquele que fala. Esse sabe quem é e ao que veio. A controvérsia que a narrativa documenta remete para a nossa relutância em identificá-lo.

Por que motivo terão os homens tanta dificuldade na identificação? O texto desenha um conflito entre dois caminhos de identificação. O da escuta da palavra e o da observação de sinais exteriores. Estes caminhos diferem em absoluto. O primeiro é o da abertura ao logos, o segundo radica numa atitude inspectiva de carácter policial. De um lado, temos a humildade como a condição de possibilidade de identificar a verdade que a palavra traz consigo. Do outro, encontramos o poder fundado na arrogância do saber, como se depreende das palavras que são dirigidas a Nicodemos: Investiga e verás que da Galileia não sairá nenhum profeta.

Perante qualquer palavra, fundamentalmente perante a Palavra, é necessário que o homem se disponha a escutá-la. A escuta é a fase que antecede o acolhimento da palavra, a constatação de que ela está – ou não – na verdade, que ela traz consigo o verdadeiro. Acolhimento significa disponibilidade para se fundir nessa palavra, para a fazer viver em si. É isto que a visão inspectiva do poder não compreende, pois está fundada na pura exterioridade e na arbitrariedade dos sinais. A identificação do Messias não depende, assim, nem do poder nem do saber, mas da pura disponibilidade para o acolhimento.

Sonetos do Viandante (17)

Gustav Klimt - Dánae (1907-8)

17. Estranha geometria a dos teus braços

Estranha geometria a dos teus braços,
Pobre flor desfolhada p’la manhã,
Surpresa deslumbrada nos cansaços,
Frágil Eva perdida na maçã.

Vejo-te nesta hora que a pressa,
Negra no seu silêncio, matará.
Celebremos a vida porque essa,
Fria, rápida, por nós, vil, passará.

Quero-te pois, agora, ao prazer
Submetida. Desejo ao desejo chama,
E despido o teu corpo se dá a ver.

E tudo em mim treme e se inflama
Ao tocar-te e sentir o teu querer,
Que pelo meu de súbito reclama.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Do temor da Verdade

Egon Schiele - The Truth Unveiled (1913)

Naquele tempo, Jesus percorria a Galileia, evitando andar pela Judeia, visto que os judeus procuravam matá-lo. Estava próxima a festa judaica das Tendas. Contudo, depois de os seus irmãos partirem para a festa, Ele partiu também, não publicamente, mas quase em segredo. Então, alguns de Jerusalém comentavam: «Não é este a quem procuravam, para o matar? Vede como Ele fala livremente e ninguém lhe diz nada! Será que realmente as autoridades se convenceram de que Ele é o Messias? Mas nós sabemos donde Ele é, ao passo que, quando chegar o Messias, ninguém saberá donde vem.» Entretanto, Jesus, ensinando no templo, bradava: «Então sabeis quem Eu sou e sabeis donde venho?! Pois Eu não venho de mim mesmo; há um outro, verdadeiro, que me enviou, e que vós não conheceis. Eu é que o conheço, porque procedo dele e foi Ele que me enviou.» Procuravam, então, prendê-lo, mas ninguém lhe deitou a mão, pois a sua hora ainda não tinha chegado. (João 7,1-2.10.25-30) [Comentário de João da Cruz aqui]

De onde procede o Cristo? Contrariamente ao que os homens julgavam, não sabem quem enviou Aquele que agora perseguem. Na economia do texto, o tema da perseguição vem em primeiro lugar, enquadrado na tensão entre o público e o secreto. O quase em segredo envia-nos para uma zona de fronteira onde o Cristo de desloca. Esta tensão é dada entre o advérbio φανερως (de modo aberto, publicamente, claramente) e o adjectivo κρυπτω (escondido, oculto, em segredo). O seu modo de ir, de agir, não é assim o da praça pública mas o quase oculto, quase secreto, não porque assim tenha que ser, mas porque as condições, dadas na perseguição de que é alvo, o impõem.

É nesta zona de sombra, na fronteira entre o privado e o público, que o Cristo se desloca e fala, identificando-se. Ele é o enviado. O enviado de quem? Daquele que os homens não conhecem, que só Ele, o enviado, conhece. E quem é esse que O envia? A palavra grega αληθινος diz-nos que aquele que o envia é o verdadeiro. O que pode o Verdadeiro enviar? Apenas a Verdade.

Compreende-se por que motivo a Verdade, aquilo que o Verdadeiro nos envia, tenha de agir na fronteira do público e do privado, do manifesto e do oculto. A Verdade não encontra nos homens acolhimento. Pelo contrário, está ameaçada de morte. A Verdade do homem é-lhe insuportável e, nessa medida, ela não se pode manifestar com toda a clareza, não pode deixar que a luz do meio-dia caia sobre ela.

Há o drama histórico de Cristo perseguido pelos homens, mas para além dele há a dimensão simbólica que nos coloca perante um problema fundamental. Por que motivo, para nós homens, a verdade é tão difícil? O que tem ela que nos faça estremecer e negar a sua evidência? Por que a obrigamos a vir naquela fronteira entre o público e o secreto? Para além desta dificuldade, há uma segunda. A Verdade não vem de si mesma, foi enviada pelo Verdadeiro. Encontrar a Verdade ainda não é o suficiente. É apenas o começo da via para se tornar verdadeiro, para se confrontar com a sua real natureza, aquela que a tradição presente no Génesis diz ser feita à imagem e semelhança do Verdadeiro.

Haikai do Viandante (130)

Caspar David Friedrich - A Walk at Dusk (1832-1835)

Caminho no pó,
sob o silêncio da lua.
É noite, e espero-te.

quinta-feira, 14 de março de 2013

As condições da escuta

Francisco de Goya - No saben el camino

Naquele tempo, disse Jesus aos judeus: «Se Eu testemunhasse a favor de mim próprio, o meu testemunho não teria valor; há outro que testemunha em favor de mim, e Eu sei que o seu testemunho, favorável a mim, é verdadeiro. Vós enviastes mensageiros a João, e ele deu testemunho da verdade. Não é, porém, de um homem que Eu recebo testemunho, mas digo-vos isto para vos salvardes. João era uma lâmpada ardente e luminosa, e vós, por um instante, quisestes alegrar-vos com a sua luz. Mas tenho a meu favor um testemunho maior que o de João, pois as obras que o Pai me confiou para levar a cabo, essas mesmas obras que Eu faço, dão testemunho de que o Pai me enviou. E o Pai que me enviou mantém o seu testemunho a meu favor. Nunca ouvistes a sua voz, nem vistes o seu rosto, nem a sua palavra permanece em vós, visto não crerdes neste que Ele enviou. Investigai as Escrituras, dado que julgais ter nelas a vida eterna: são elas que dão testemunho a meu favor. Vós, porém, não quereis vir a mim, para terdes a vida! Eu não ando à procura de receber glória dos homens; a vós já vos conheço, e sei que não há em vós o amor de Deus. Eu vim em nome de meu Pai, e vós não me recebeis; se outro viesse em seu próprio nome, a esse já o receberíeis. Como vos é possível acreditar, se andais à procura da glória uns dos outros, e não procurais a glória que vem do Deus único? Não penseis que Eu vos vou acusar diante do Pai; há quem vos acuse: é Moisés, em quem continuais a pôr a vossa esperança. De facto, se acreditásseis em Moisés, talvez acreditásseis em mim, porque ele escreveu a meu respeito. Mas, se vós não acreditais nos seus escritos, como haveis de acreditar nas minhas palavras?» (João 5,31-47) [Comentário do Concílio Vaticano II aqui]

Quais as condições subjectivas da recepção da palavra? O que é pertinente notar neste excerto de João é que a grande inimiga da recepção da palavra, da escuta do testemunho, não é a razão crítica mas a vaidade centrada na busca da glória humana. De certa maneira, o texto remete mesmo para uma certa razão crítica que desconstrói as expectativas puramente humanas. Entre o absoluto e o relativo, os homens escolhem o relativo. Entre o infinito e o finito, os homens escolhem o finito. E é a relatividade e a finitude que são elevadas à glória e, dessa forma, se transformam em ídolos, poder-se-ia dizer em ídolos da praça pública.

A recepção da palavra e a audição do testemunho exigem essa distinção crítica entre o relativo e o absoluto, o finito e o infinito, o particular e o universal. A dinâmica crítica que permite compreender aquilo que é essencial não depende, todavia, de um mero exercício lógico efectuado por uma  razão desencarnada. Pelo contrário, a condição de possibilidade do uso da razão crítica reside no amor. É a cegueira do coração que torna a razão fria e impotente, reduzindo-a à esfera do cálculo de oportunidades, tornando-a dependente da egolatria.

As  condições subjectivas da recepção da palavra tornam-se, neste texto de João, bastante claras. Uma razão, com a sua natureza crítica, fundada no amor. Mas este amor não é um mero sentimento subjectivo, a emanação de uma afectividade mais ou menos desregulada, mas um amor absoluto (não há em vós o amor de Deus) que é apenas a operatividade essencial de Deus no seu compromisso com o mundo e os homens. Um amor que convoca coração e razão como os poderes que, ao escutar a convocação, põe o homem a caminho.