quarta-feira, 20 de junho de 2012

Poemas do Viandante (275)

João Queiroz - Sem título (2007-2008)

275. O DILACERADO CORPO DA TERRA ABRE-SE

o dilacerado corpo da terra abre-se
um segredo de calcário
os mármores incertos do palácio
agora incêndio nas trevas do olhar

ao subir a encosta escarpada
os dedos rememoram o tempo primitivo
os dias tecidos pelo medo e a fome
o corpo exposto na clareira
ao uivo dos predadores
ao voo rasante das aves migradoras

assim crescem os anos
conto-os no breve rosário de pedra
e desenho calendários de folhas
onde anoto cada dia
o mal que consigo traz
e a esperança sempre perdida
de algum bem

traço uma cruz de carvão na pedra
e oiço o eco solitário de uma voz
o corpo freme
balança-se e na inclinação
entrega-se à dúvida 
à imprecisa fronteira 
do infinito céu a precária terra separa

terça-feira, 19 de junho de 2012

Haikai do Viandante (86)

Salvador Dali - Devenir geológico (1933)

fria sombra no mundo
um cavalo e duas rochas
paisagem sem fundo

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Poemas do Viandante (274)

João Queiroz - Sem título (2011)

274. DE OLHOS FECHADOS ATRAVESSEI A FLORESTA

de olhos fechados atravessei a floresta
e os cardos laceraram-me os pés
ao ritmo do vento sobre as folhas

ao entrar 
depois da lisa superfície da rocha
comecei a esquecer o nome
e o obscuro vento da liberdade
batia-me aos ouvidos

promessas desfeitas na ramagem dos fetos
um sonho tingido pelo desvario de um deus
a recordação de um corpo
levedado na esperança do meu

perdido na minúcia das sombras
ergui um altar de orvalho
e queimei o incenso que restava
quando o corpo sentia o frio
nascido da ausência do teu

de todas as noites
resta-me aquela pintada na tela
estranho musgo de quartzo
no rasto ardido dos pinheiros
essas pequenas palavras na floresta da língua
vingança tardia
secreto silêncio da sombra

domingo, 17 de junho de 2012

Metáforas do amor

José de Togores - Amor en el bosque (1930)

Há um estreita conexão, em vários tipos de literatura, entre o amor e o bosque. Uma perspectiva superficial da relação dirá que o bosque é o sítio onde, numa visão romântica da vida, o amor poderá ser consumado. No entanto, o topos do bosque não terá tanto a ver com o sítio onde os amantes se poderão entregar às exigências de Eros e de Afrodite, mas com uma metáfora. Mais interessante do que ver o amor no bosque será compreender que o amor é um bosque. A transferência das qualidades do bosque para o amor poderá completar a metáfora camoniana do amor é fogo que arde... Aos excessos de calor e luz camonianos contrapõe-se a dimensão sombria, protegida do calor e da própria luz que o bosque permite figurar. Há no amor toda essa dimensão intermédia, onde as sombras, ao irromperam da relação entre o claro e o escuro, vão desenhando novas configurações, como se o amor fosse uma construção contínua de mapas, os quais se vão substituindo uns aos outros, pois os diversos territórios vão alterando as suas fronteiras. Esta imprecisão pode ser encontrada na imagem do bosque que torna difusas as silhuetas de quem o atravessa. Mas a metáfora do bosque não se opõe à metáfora do fogo, pois o bosque oferece o material combustível para os grandes incêndios. O bosque é o lugar onde aqueles que o atravessam podem ser apanhados na emboscada do amor.

sábado, 16 de junho de 2012

Poemas do Viandante (273)

Kazimir Malevich - Peasant Women at  Church (1911)

273. MALEVICH, PEASANT WOMEN AT CHURCH

sobre o frio chão
erguem ao alto
obscuros pensamentos
são desejos
pequenas ânsias
a vida recolhida
em breve oração

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Haikai do Viandante (85)

Jackson Pollock - Troubled Queen (1946)

sorriso sem cor
da pobre e casta rainha
perdida de amor 

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Cegueira e sabedoria

Manuel Vega - Caravana de ciegos (1919)

Édipo não é sábio quando responde ao enigma da esfinge nem quando se torna rei de Tebas. A verdadeira sageza chega quando, perante a verdade do seu casamento com Jocasta, ele se cega. Também é no estado de cegueira que Paulo de Tarso acede à suprema sabedoria. Há toda uma tradição que assenta no paradoxo da necessidade de ser cego para poder ver. Como compreender isto? Vale a pena voltar ao livro A da Metafísica de Aristóteles, ao seu início: "Por natureza, todos os homens desejam saber. Um sinal disto está no prazer que têm nos seus sentidos; para além da sua utilidade, eles são amados por eles mesmos; e acima de qualquer outro o sentido da visão. Não apenas quando se visa a acção, mas mesmo quando não se está a fazer nada, preferimos a visão a todos os outros sentidos. A razão é porque a visão, mais que os outros, faz-nos saber e traz à luz muitas diferenças entre as coisas".

O prazer de ver, esse prazer enraizado na nossa natureza, vai muito para além da sua utilidade, permitindo ao homem uma determinada forma de saber. Ora o que o texto de Aristóteles nos diz é que esse saber tem uma natureza analítica, ele faz-nos ver as diferenças, permite introduzir cortes na realidade global. A particularização e especialização que o sentido da vista permite e fomenta acabam por tornar-se numa espécie de alienação e de enviesamento. Preso no prazer de ver, o homem entrega-se  ao divertimento da diferenciação, ao prazer da multiplicação de aspectos da realidade que, desse modo, são cindidos e tornados independentes.

Este saber visual torna-nos cego para a unidade da realidade, prende-nos na multiplicidade e nos jogos que essa multiplicidade permite. O saber natural, por prazer que vê, apenas permite um saber que não é sábio e não o é porque, seduzido que está pela capacidade de diferenciar, é incapaz de perceber a unidade de tudo, o sentido dessa unidade. Por isso, várias tradições sublinham a necessidade da cegueira para ver. Ver não o particular, mas o universal, o todo, aquilo que as diferenças escondem. O mundo é uma caravana de cegos, de cegos que o são porque dependem da visão e do prazer que ela permite. Tornar-se cego para ver é o caminho da sabedoria.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Poemas do Viandante (272)

Kazimir Malevich - River in the Forest (1908 ou 1928)

272. MALEVICH, RIVER IN THE FOREST

as horas em que nos perdíamos
um sonho de falcão
uma ânsia de alturas
são agora um reflexo sombrio
nas águas frias
traços amargos a romper
caminhos na floresta
chaga na memória

terça-feira, 12 de junho de 2012

Haikai do Viandante (84)

Jackson Pollock - Cottonpickers (1935)

em silêncio a mão
sob um céu de cinza azul
colhe o algodão

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O espírito e a obediência

Hans Baldung Grien - Adan (1520-1523)

O acto que está na origem da desordem espiritual do homem foi um acto pelo qual Adão se separou de Deus, de si mesmo e da realidade que o envolvia. Foi a ruptura deliberada da comunhão existencial que dava a Adão a sua plena realidade e o fazia participar naquela que existia à sua volta. Por um acto de puro orgulho, sem o menor traço de sensualidade, de paixão, de fraqueza, de erotismo ou de medo, Adão põe um abismo entre Deus, ele e os outros. [Thomas Merton (1969). Le Nouvel Homme. Paris: Éditions du Seuil, p. 82]

Como compreender a insistência a outrance da Igreja Católica no princípio de obediência? A obediência, entendida como submissão a uma autoridade, é um elemento estrutural de múltiplas instituições. Sem ela, sem a submissão dos cidadãos à autoridade politicamente constituída, um Estado não funciona. Um exército estará condenado à derrota se o princípio de obediência à hierarquia não for seguido de forma indiscutível. Outras instituições, como escolas, empresas, clubes desportivos, etc., só funcionam fundadas, ainda que de forma matizada, no princípio de submissão à autoridade.

Poder-se-ia pensar que todas estas relações de obediência à autoridade são idênticas às relações de obediência que a Igreja Católica exige dentro de si. No entanto, isso não é verdade. Em todas as instituições onde o princípio de obediência tem um papel, ele é sempre, apesar de estruturante, instrumental. A obediência do cidadão à lei, do soldado à hierarquia, dos jogadores ao treinador, dos alunos aos professores, em todos estes casos visa-se sempre outra coisa: a ordem cívica, a vitória militar ou desportiva, a aprendizagem. A obediência no campo espiritual, aquela que é exigida pela Igreja Católica, contudo é um fim em si mesmo e não um mero meio para se atingir alguma coisa..

Só se pode compreender essa obediência, se se entender o que está em jogo. Ao colocar de lado as leituras pueris do mito de Adão e Eva, Thomas Merton, no trecho supra citado, abre um caminho para compreender essa obediência. O pecado original, como ressalta do texto, não tem nada de erótico ou sensual. O que, na mitologia judaica, perdeu o homem foi a revolta e o orgulho. O que significa esta revolta e este orgulho? A perda da verdadeira realidade do homem, a sua diminuição ontológica, o que é figurado por um corpo frágil e mortal, por uma vontade fraca e corruptível. A obediência é o exercício contrário ao acto de orgulho de Adão. Aqui a obediência não é um comportamento estratégico que vise, no fim, uma reintegração no estado anterior à revolta adâmica. A obediência, do ponto de vista espiritual, é símbolo e prática efectiva desse estado que Adão recusou. 

A submissão à autoridade espiritual é o elemento estrutural da viagem do espírito, porque ela é o exercício e a vivência do estado prévio à Queda. Tudo isto não significa que a Igreja Católica não use a obediência de forma instrumental, mas, contrariamente a outras instituições, ela fá-lo porque a obediência à autoridade é o princípio central do cristianismo, cujo arquétipo reside na submissão de Cristo, o Filho, à vontade do Pai, submissão até à morte, e morte de cruz. Isto, porém, só é inteligível a partir da compreensão da Queda adâmica e da perda ontológica que ela significa.