terça-feira, 9 de agosto de 2011

Imaginação

Kant divide a imaginação segundo duas funções. Por um lado, a imaginação é reprodutora, pois reproduz a imagem dos fenómenos concatenados pela sensibilidade; por outro, a imaginação é produtora. Ela produz imagens que ultrapassam o domínio fenoménico, embora não sejam mais que a sua recombinação. A natureza poética ou ficcional da imaginação inscreve-se no âmbito da sua função produtora. Mas estará a imaginação humana confinada à repartição entre mimesis e poiesis? Em caso afirmativo, ela estaria confinada à sensibilidade, que lhe forneceria os materiais, e eventualmente à razão, que funcionaria como uma espécie de guarda e que vigiaria os devaneios dessa imaginação.

O que se deve questionar, contudo, é se a imaginação não possuirá uma função comunicacional. Quanto do que imaginamos não se deverá à recepção de uma comunicação? E não se está a referir a comunicação recebida sensorialmente nem a ordenada pelo logos (entendido aqui na sua duplicidade de discurso e razão). Antes, a uma comunicação que resulta de uma comunhão de espírito, de influências voláteis não determináveis sensorialmente ou através da razão. Não será na imaginação que se fundam e alimentam processos como a oração e a meditação? E estes processos não serão actividades comunicacionais? Mesmo a níveis mais triviais, quanto da nossa revêrie e dos nossos devaneios não será comunicações vindas do devaneio e da revêrie de outros que assim nos chamam e nos tocam através da imaginação? A imaginação é a mais misteriosa e a mais global das faculdades humanas. Isto dever-se-á menos às suas capacidades miméticas e poiéticas do que à sua natureza comunicante. É ela que, vinda do mistério da sua natureza, funda a comunhão entre os seres.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

186. IGNORÂNCIA

nada sei do amor
que há em ti
nem da água do rio
– a tua infância –
ou da saudade
que te cabe
na distância
– da terra
o céu separa

fecho os olhos
e poiso a cabeça
nesse regaço
– certamente o teu –
quando o calor traz
o cansaço
que te arde
na sombra límpida
do rosto

domingo, 7 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

185. ILUMINAÇÃO

abre a porta
a aurora virá
fazer casa secreta
onde o coração
iluminará
de erva doce
a amarga solidão

sábado, 6 de agosto de 2011

O autor e a obra (4)

Num post anterior foi afirmado que a literatura só existe na suspensão do contacto real entre corpos, na suspensão de um desejo para que um outro se possa instituir. Mas o que poderá acontecer se, de novo, for suspensa a literatura? Poderá a fusão do espírito do leitor e o da obra ser uma ponte não já para um mundo puramente desligado da materialidade do contacto, mas para o encontro entre corpos que, partilhando através da obra um espírito, se poderão eventualmente tocar? Poderá, cruamente, quem lê desejar não apenas o espírito daquilo que lê mas o corpo e o espírito de quem escreveu aquilo que agora é dado a ler?

Essa é uma possibilidade real, a qual comporta equívocos. Neste caso, talvez como em todos os outros, a literatura (diria o mesmo das outras artes, bem como da filosofia e da religião) é apenas um instrumento (uma ponte, uma escada) para um campo alargado da experiência existencial. A suspensão do contacto real que permite uma certa manifestação de eros, poderá agora tornar-se numa potência intensificadora da instauração de um novo desejo erótico, onde os corpos se tocam, se experimentam, se vivem e se abrem para além deles. O fundamental, porém, reside na intencionalidade que se desenha desse hipotético encontro do corpo que escreve com o corpo que lê. Representará uma queda ou uma ascensão?

Aquele que escreve quererá confirmar o seu ego empírico no reflexo de quem lê e quem lê quer o reconhecimento empírico, por parte do que escreve, da sua egoidade? É aqui que se instaura o equívoco fundamental. O deus eros é rebaixado ao nível da pura concupiscência humana, um verdadeiro pecado mortal, onde os egos se procuram a si mesmos, buscam no prazer e na fruição a autoconfirmação, tocados, no fundo, pela necessidade biológica e pela angustiante incerteza sobre a sua efectiva existência. Verdadeira queda daquele espírito que se tinha libertado através da literatura. Queda nos domínios biopsicológicos que se tornam, dessa forma, o horizonte, ao mesmo tempo a cadeia, onde corpos e espíritos se entregam à deriva e à errância, as quais são a manifestação não de um encontro mas da separabilidade infranqueável de dois entes. Deriva e errância são apenas a negação de um caminho, a impossibilidade de se abrir à verdade e, como consequência, à vida verdadeira.

Há todavia a possibilidade de se abrir um novo regime de desejo, uma nova experiência de eros. A obra poderá, eventualmente, mediar o encontro entre dois espíritos e dois corpos, e instaurar um novo regime de possibilidades experienciais, onde o desejo dos espíritos e o desejo dos corpos se tornem, na paixão erótica, num único desejo, não o desejo deste corpo por aquele, não daquele espírito por este, mas o desejo de uma abertura para além da realidade meramente empírica, para além das armadilhas do ego biopsicológico. Os corpos que se tocam e se dão, que se entrelaçam na entrega amorosa tornam-se símbolo e abertura. Símbolo no sentido estrito em que o masculino e o feminino se completam e se constituem na unidade originária do antropos. Símbolo também da unidade ainda mais originária do absoluto e do relativo, de Deus e da alma. Concomitante a esta simbologia é a experiência de abertura, abertura para além dos egos privados dos amantes, abertura para um self que é ao mesmo tempo de cada um e transcende cada um, abertura para uma experiência do outro, de si e, acima de tudo, do Outro. Experiência de desindividuação individualizante, passe o paradoxo, experiência de conhecimento. O homem conhece a mulher e a mulher conhece o homem, e ambos, como um só, conhecem aquilo que os ultrapassa, e experimentam o sentido último da virilidade e da feminilidade. Ora este conhecimento não se deve, de forma alguma, confundir com o conhecimento racional ou empírico, nem com a experiência do prazer que resulta da fruição do sensível e do afectivo. Talvez seja amor operante que, enquanto conhecimento, realiza des-realizando e des-reificando (diria mesmo, des-confirmando) os egos, conhecimento que, enquanto via, se abre para a verdade inscrita no mistério da vida. Conhecimento que, pela sua natureza operativa, vai para além da acção e da contemplação, como se Marta e Maria fossem ainda uma divisão artificial de um operar que é, na sua essência mais íntima, um contemplar, e não sendo este mais que a verdadeira e efectiva acção.

Tudo isto, porém, se afastou da questão estética colocada pela relação entre autor, obra e leitor, como se a arte fosse apenas um prelúdio a algo que a ultrapassa infinitamente.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

184. MURMÚRIO

o segredo vem
pela poeira
murmura na noite
a cor dos teus olhos
o regaço ávido
de cinza
a brancura do seio
no frágil encontro
de meus lábios

assim te vejo
voltada ao poente
os cabelos em desalinho
o sol da tarde a cair
sobre a tempestade azul
do mar

um raio toca-te o ventre
e toda a alma
estremece
e abre-se para
a paisagem
murmurando
segredos ao vento
que me traz
na ânsia nocturna
o desconhecido império
do teu desejo

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O autor e a obra (3)

Poder-se-á colocar a questão do autor e da sua relação com a obra, mas para tal é necessário abandonar o campo da arte, nomeadamente o da literatura (aqui tomada como padrão exemplar da arte em geral). No primeiro post desta série escreveu-se que “introduzir o autor na questão da obra de arte significa, antes do mais, reduzi-la às dimensões do vestígio e do sintoma”. O que significaria introduzir na consideração da obra de arte inquéritos de natureza judicial e/ou médica. Mas se se abandonar a consideração da obra enquanto objecto estético, o que poderá acontecer?

Libertados da pressão estética, pode-se olhar a obra (aqui inclui-se qualquer obra e não apenas a de arte) como uma expressão do seu autor. Esta consideração arrasta, contudo, uma ambiguidade essencial. Que relação mantém o ego autoral com a obra produzida? Será a obra a afirmação do autor, a demostração de si, a confirmação da sua egoidade empírica? Ou, por outro lado, será a obra uma aprendizagem de morrer e de estar morto, como dizia Platão acerca do exercício da filosofia? Como se percebe, afasta-se decididamente a natureza estética da obra e coloca-se em confronto uma psicologia empírica e uma experiência metafísica.

Se a obra é uma manifestação do ego, a confirmação das suas dúvidas sobre a realidade própria, ela diz respeito ao campo empírico da psicologia, ao domínio das estratégias de afirmação de si na vida mundana, na espectativa de reconhecimento social. Diz respeito ao conjunto de processos com que o sujeito se agarra decididamente à sua própria imagem, à ilusão da sua substancialidade.

A obra, porém, pode ser um caminho de aprendizagem da morte, i e, da morte dessa subjectividade ilusória e uma ponte que pode permitir a passagem do ego ao self, entendido este como o centro essencial que liga o indivíduo à realidade essencial que o ultrapassa. A obra será então um caminho de desindividuação, de descoberta não de quem sou mas daquilo que é ao ser em mim. Que a obra, neste caso, seja um poema, um tratado, uma oração, a realização de um projecto económico, uma peregrinação ou outra coisa qualquer, isso deixou de ser importante. A importância é que ela se tornou caminho, via, viagem do mundo empírico para o espírito que me constitui e institui, o que importa é que ela se tornou vida, e uma vida que, percorrendo a vida, aspira à verdade.

terça-feira, 26 de julho de 2011

O autor e a obra (2)

O que Paul Ricœur vai sublinhar na sua hermenêutica é a objectividade da obra artística. O que está em jogo não é, como o pensava a hermenêutica e a literatura românticas, a apreensão do génio do autor, mas aquilo que ele chama o mundo da obra. A tese está escorada na ideia de autonomia do texto. Contrariamente a um acto da linguagem falada, o qual está suspenso das condições imediatas da sua produção, as obras escritas autonomizam-se do autor, da sua intenção, inclusive da sua interpretação. A leitura não será então uma forma de encontrar a intenção do autor, mas um processo de decifração do mundo que a obra transporta. Neste mundo haverá, por certo, muito do autor. As suas intenções, a sua cosmovisão, os seus aspectos ideológicos. Mas não é isso o fundamental. O fundamental é o universo proposto ao leitor, através do agenciamento artístico, e o confronto entre os universos da obra e desse leitor. A questão tornar-se-á mais interessante se recolocarmos o conceito de obra numa outra perspectiva. A obra será o suporte não de um mundo mas de um espírito. Entrelaçado à materialidade verbal e técnica da literatura está um dado espírito que se dirige ao espírito do leitor e o confronta. O corpo a corpo, em toda a sua materialidade, que o leitor trava com o romance, o poema, etc. inclui também um, digamos assim, um espírito a espírito, um confronto de espiritualidades. Também a sexualidade é um corpo a corpo, mas o seu fulgor resulta da presença do espírito nessa presença do corpo à alteridade do corpo do outro. A contiguidade dos corpos, assente na dinâmica do desejo, suporta a comunhão dos espíritos. Esta analogia permite compreender a literatura. Mas estamos perante uma analogia e não de processos idênticos. O corpo do leitor confronta-se com o corpo do livro, com a sua materialidade, e não com o corpo do autor. A literatura só existe nessa suspensão do contacto real. Essa suspensão não visa desviar ou transferir o desejo do leitor do corpo do autor para o corpo da obra, nem sequer sublimá-lo. Visa, outrossim, criar o espaço para um novo desejo, um espaço para uma outra emergência de eros. O deus manifesta-se agora em novas formas de desejar, de um desejo que se consuma na comunhão dos espíritos. Deste ponto de vista, as obras literárias, bem como as obras das outras esferas artísticas e, porventura, as da filosofia e da ciência, visam uma eclésia, uma comunhão geral dos espíritos, de espíritos que encontram na obra os motivos, mesmo os símbolos, para o seu reconhecimento.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Poemas do Viandante

 183. INCÊNDIO


a exaltação tardia
dos campos
trazia uma aragem
sobre o rumor
dos teus passos


ias e vinhas
e o meu coração
vivia pobre e incerto
à espera da noite
para incendiar
o pequeno rio
onde nascia
o amor

O autor e a obra (1)

Como olhar para a relação entre autor e obra (poema, romance, tragédia, sinfonia, quator, quadro, escultura, etc.)? Assiste-se, após a retórica da morte do autor, a uma certa recuperação da autoria e da situação do autor na leitura das obras e na sua compreensão. A relação entre autor e obra é equívoca e remete para duas ordens de discurso que não pertencem ao jogo da linguagem artística.

Em primeiro lugar, envia-nos para um questionamento jurídico. A quem imputar aquela obra? Por que razões a produziu? Como determinada idiossincrasia do autor se reflecte ali? O inquérito faz parte assim de um processo que está em julgamento e sobre o qual se deve pronunciar uma sentença. A obra de arte é então, se não a prova de um crime, o vestígio deixado pelo delinquente. A natureza processional e jurídica da intromissão do autor fica bem à vista.

Em segundo lugar, a relação autor – obra coloca-nos perante o discurso médico. A obra não é apenas o vestígio de uma delinquência mas o sintoma de uma dada configuração psicológica ou, melhor, biopsicológica. A partir da leitura das obras de um autor, supostamente, poderei traçar, na conjunção de Nietzsche com a psicanálise, uma leitura das forças vitais e dos processos recalcados de um autor. Força vital e recalcamento psíquico significam trazer para a questão da arte os problemas da patologia e do discurso médico

Introduzir o autor na questão da obra de arte significa, antes do mais, reduzi-la às dimensões do vestígio e do sintoma. O corolário é fácil de observar: os inquéritos que se abrem nada têm a ver com a experiência estética e com o confronto, o corpo a corpo, entre o leitor e a obra.

domingo, 17 de julho de 2011

Poemas do Viandante

182. DÁDIVA

dá-me essa tristeza
sem nome
uma rua de pedras gastas
e a brancura da pele
no sublime dia
dos vinte anos

dá-me a penumbra
onde arde ainda
aquela fogueira
que a noite ateava
no desamparo
dos teus olhos