sexta-feira, 15 de maio de 2009

Saber demais

Saber da luz e ser cego, conhecer o som e ser surdo. Como fugir desta condição onde o não saber cresce dentro de tudo o que se sabe? Não vale a pena o estratagema do velho Sócrates, o só sei que nada sei. Não devia ele um galo a Asclépio? Não, eu sei de mais, todos sabemos demasiado. De tanto sabermos, já nada sabemos. É na luz que cresce a escuridão, é no som que cresce o silêncio. É no oásis que se eleva o deserto. Pudera eu aniquilar todo o meu saber e tornar-me cego e surdo no deserto ardente.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Poemas do Viandante (11)

11. caem palavras

caem palavras 
breves sinais

um retrato 
uma cifra
a noite rasurada 
pelo cais

A luz que oriente

Um dia de dissipação. O espírito arrastado pelo turbilhão dos devaneios, uma distracção contínua, uma impossibilidade de ir para o essencial. Um dia de seca e de aridez, um dia desperdiçado, um dia escuro e afastado da luz, de qualquer luz, por mais pobre e sumida que fosse. Mas este é apenas mais um dia entre os muitos onde a vontade se arrasta impotente, e nessa impotência se entrega à luxúria desenfreada do devaneio. O devaneio nasce do fascínio que certas coisas exteriores exercem sobre a imaginação, impedindo o espírito de operar. Mas por que será tão frágil o meu espírito, tão incapaz de resistir à tentação? É um espírito perdido, abandonado nos baldios da terra, sem rota nem estrela polar. Ainda virá uma luz que o oriente?

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Amor

Haverá amante e coisa amada? Enquanto um e outro suspirarem ainda o amor não estará presente. Quando este vem, já não há quem ame nem quem seja amado, mas apenas o puro amor subsiste, nessa indiferença tão diferenciada, nessa prisão tecida de liberdade.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Poemas do Viandante (10)

10. oiço o vento


oiço o vento 
pelos canaviais
um murmúrio
na cidade

alguém chega 
cantando
no vendaval 
da saudade

segunda-feira, 11 de maio de 2009

O mar incriado

Mergulhar no mar incriado da divindade pura, diz Angelus Silesius. Apenas isso e nada mais do que isso. Mas como entrar nessa água? Saber-nos-emos despir para que o mar não nos confunda? Se se despir completamente, se tirar uma a uma as peças de roupa que o revestem e mascaram, haverá ainda uma distinção entre aquele que mergulha e a água desse mar incriado onde mergulhará? Despir-se de si, abandonar-se, tornar-se vazio; o mar aí estará no puro esplendor do que não tem começo nem fim.

domingo, 10 de maio de 2009

Poemas do Viandante (9)

9. falam poetas

falam poetas
do exótico fruto
e cantam
a seda do oriente

sonham sonhos
de veludo
e de tâmaras
a taça ardente

sábado, 9 de maio de 2009

Da conduta viciosa

Há na conduta viciosa qualquer coisa que merece meditação. Não refiro o vício nas suas dimensões moral e social, ou mesmo na dimensão ética, se distinguimos esta, de natureza mais pessoal, da moral, de natureza mais colectiva ou gregária. A dimensão que merece meditação é a do espírito. No vício, através dos processos de iteração inerentes à conduta viciosa, o espírito fecha-se nesse acto de pura repetição, já sem consciência, de uma conduta marcada pela necessidade. O vício começa então por ser uma prisão onde o espírito aliena a liberdade. Ao alienar a liberdade afasta-se da sua natureza. O vício antes de ser um problema do indivíduo na sua relação consigo e com os outros é um problema do espírito, que assim é negado. Mas por que há essa necessidade de alienar o espírito? Porque este é atraído por uma luz que o ultrapassa e lhe dá ser. Mas essa luz tão obscura e espessa, e ao mesmo tempo excessivamente luminosa, faz o espírito tremer. Perante este "temor e tremor", o espírito foge de si e defende-se na alienação do vício, isto é, da conduta que prende o espírito na terra estranha da necessidade e da pura repetição da nulidade. O vício é o exercício contínuo de fuga perante o único real efectivamente real.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Poemas do Viandante (8)

8. partiram

partiram
entre acenos
e gritos
na madrugada

os barcos iam
leves e serenos
a vida
menos que nada

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Poemas do Viandante (7)

7. esse olhar


esse olhar
onde pétalas
caíam

um rumor  
se acendia

inclinava-se 
para o meu
sem fronteiras 
sem melancolia