sábado, 13 de abril de 2024

A memória do ar (29)

Mário de Oliveira, Paisagem, 1973 (Gulbenkian)

Os campos que se abrem ao peso do ar florescem em Primaveras tardias, onde a memória do passado se constrói na lentidão com que o tempo, embalado pelas brisas matinais, se apodera da terra e perscruta aquilo que o ar esconde na opacidade da sua pura transparência.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Geometrias de fogo (29)

José Dominguez Alvarez, Rua ao Sol, 1930 (Gulbenkian)

A impiedade do fogo cai sobe a praça. Traz em si uma premonição infernal, pesadelos a assombrar almas que tremem perante um mundo rodeado de labaredas. Os homens, para se esconder da maldição, percorrem as sombras num ir e vir até que o Sol se esconda e o fogo se perca para lá da linha do horizonte.

terça-feira, 9 de abril de 2024

Sonetos de Primavera (3)

Léon Kossoff, Red Brick School Building, Willesden, Spring, 1981

A luz da tarde abre o horizonte,

a cidade cintila crua e sôfrega

tecida no azul dum céu de cristal,

nascida no espelho da memória.

 

Ao longe, as muralhas do castelo,

mais perto, o rumor vivo do rio.

As pessoas caminham em silêncio,

presas na sombra pálida do dia.

 

Sigo as labaredas da memória,

inscrevo no cristal o céu azul

roubado ao espelho da infância.

 

Solícita, a cidade feita sombra

chama-me no rumor rude do rio,

fala-me no silêncio de quem passa.

 

Abril de 2024


domingo, 7 de abril de 2024

A sombra da água (29)

W. Eugene Smith, Iwo Jima, 1945

Também pela água chega, como uma milícia, a sombra da morte. Traz com ela uma lua de coral para alumiar os que entregam a alma à floresta do silêncio e deixam o corpo abandonado sobre as areias, onde poisarão bandos de gaivotas e anjos confundidos pelo calor da batalha.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

O Espírito da Terra (29)

Autor desconhecido, Hawaiian Tree Study, 1900-1910

É uma terra tocada pela sombra da solidão. Os que por ela caminham trazem nas veias o sangue tocado pela substância porosa da loucura. Sentam-se sob a copa das árvores e esperam que o espírito lhes sopre nos ouvidos o caminho a seguir. Então, levantam-se e enfrentam o horizonte com a resina luminosa do poente.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

A memória do ar (28)

Inês Cannas, s/título (PIQ 6), 2000 (Gulbenkian

Atmosferas tomadas pela corrupção trazida pelo tempo cercam de verde e oblívio o vigor ancestral das montanhas. Onde havia o apaziguamento dos olhos humanos, há, agora, um mundo de perturbação envolto pelo ar sulfuroso dos dias de cólera e pela alucinação de quem pensa sobre o devir daquilo que é tocado pela mão dos homens.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Sonetos de Primavera (2)

Paula Modersohn-Becker, Man lying beneath a Blossoming Tree, 1903

Veio Abril, o mês da vã promessa,

o tempo onde o sol e a fria chuva

se encontram nos olhos extasiados

de quem vai pelos campos, solitário.

 

Um ardor nupcial fulge na terra.

Cintilações e fogos de artifício

fendem as sombras ávidas da noite,

são cânticos de pássaros nos céus.

 

Pelos campos caminho solitário,

guardo a promessa nos meus olhos

abertos para o êxtase de Abril.

 

No fogo desta noite rasgo as sombras.

O que estava morto ressuscita

na voz núbil dos pássaros que cantam.


Abril de 2024


sábado, 30 de março de 2024

Geometrias de fogo (28)

Michel Kidner, Orange, Pink and Violet, 1964 (Gulbenkian)

O fogo decompõe-se e pacientemente elabora um catálogo de cores, onde a cada cor corresponde uma emoção, um sentimento, um desejo, uma paixão, pois não há fogo no mundo que não emane de um incêndio interior, daquilo que nos homens está em combustão, arde-lhe no sangue e surge no mundo na imobilidade do olhar.

quinta-feira, 28 de março de 2024

Impressões 116. Jardins

Fernando Lemos, Jardim, 1959 (Gulbenkian)

Os jardins nascem de uma métrica vegetal e de uma gramática feita de obsessões. Adormecem ao raiar da aurora e acordam quando a luz se dissolve no poente. São habitados por longos vícios florais e algumas virtudes sem nome. Cenários de sombras e fogo num palco onde os homens, sem o fio de Ariadne, se perdem continuamente no labirinto onde nenhum Minotauro os espera.

terça-feira, 26 de março de 2024

A sombra da água (28)

Arthur R. Dresser, Die Klippen von Corbière im Sturm, 1891

Também da água se deve dizer que possui, no seu íntimo, a virtude da audácia. Não é fúria ou raiva, tão pouco um exercício de cólera que move as águas tempestuosas, mas a pura coragem de enfrentar a dureza das rochas, o destemor de querer abrir um caminho naquele lugar onde caminho algum parece possível.

domingo, 24 de março de 2024

Sonetos de Primavera (1)

Manuel Filipe, Inverno-Primavera (Homenagem à Sagração
da Primavera de Igor Stravinsk
i, 1978 (Gulbenkian)

Chegou a Primavera sob um manto

de promessas eternas, um engano

que a todos encanta e abre à vida.

Veio plena de luz e sortilégios.

 

Crescem os dias, as noites silenciam

os antigos terrores, todos dançam

uma dança arcaica, rodopiam

sem parar na poeira fria do tempo.

 

Vamos pela floresta do engano,

caminhamos na luz branca da vida,

presos aos sortilégios prometidos.

 

O silêncio da noite é um bálsamo,

traz o esquecimento da poeira

onde o tempo germina a fria morte.

 

Março de 2024


sexta-feira, 22 de março de 2024

A memória do ar (27)

William Henry Jackson, Yucatan, 1889

O vento transporta a memória do ar, uma memória feita das coisas que toca, das árvores e dos arbustos, dos animais e das montanhas, dos rios e dos homens, dos artefactos e dos objectos naturais. É uma memória, se entregue ao próprio ar, imóvel. Permanece em pura quietude, até que o vento a transporta, cada vez mais longe, até que ela se dissolva ou se resguarde naqueles lugares de eterna quietação.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Pintura e haikus (38)

Tomás Mateus, Pintura, 1966 (Gulbenkian)

Dividir o espaço,

imaginar as cidades,

cerzir luz e cor.

segunda-feira, 18 de março de 2024

O sal do silêncio (112)

Juan Antonio Aguirre, Bailarinas, 1990

Dançam a sagração da Primavera envoltas no azul dos oceanos. Bacantes sem mácula, transportam a voz do deus no silêncio da boca. Giram, rodopiam, elevam-se da terra e a ela voltam. A sua leveza é o sal com que salgam o segredo do mundo, o enigma do sangue, o mistério da paixão.

sábado, 16 de março de 2024

Sonetos de Inverno (12)

Gilles Aillaud, Deserto, 1986

Muda o mundo, na vereda do tempo.

Estações vêm, estações vão, sem fim.

O Inverno decaiu, sombra morta

no jardim onde as rosas declinam.

 

No rumor azul do vento, escuta-se

uma voz fremente, a pura essência

do que passa sem deixar um sinal

ou um rasto na areia do deserto.

 

Trazer mundos dos jardins esquecidos,

Trazer sombras dos Invernos passados,

Trazer rosas da vereda da morte.

 

Sou o vento que apaga os rastos,

a voz pura que fremente se cala

o sinal que no deserto se esconde.

 

Março de 2024

 

quinta-feira, 14 de março de 2024

Câmara discreta (20)

Ed van der Elsken, Self-portrait with Ata Kandó, 1953

Surpreender-se a si mesmo, deixar-se apanhar pela câmara que está nas próprias mãos, olhar-se no momento em que se observava. Depois, deixar vir uma longa e lenta interrogação. Quem é aquele que vejo? Assim começa uma exercício de demorada violência, um caminho em que a faca afiada da dúvida corta o pano frágil da certeza. Uma coisa é a identidade recebida na passividade da existência, uma outra é a identidade conquistada através do duro combate iniciado pela inocente pergunta quem sou eu?

terça-feira, 12 de março de 2024

Geometrias de fogo (27)

Joaquim Rodrigo, Trás-os-Montes, 1964 (Gulbenkian)

Há uma geometria de fogo na geografia da Terra. A incandescência esconde-se para além do horizonte, mas retorna sobre as planícies, as montanhas e os vales, desenhando triângulos e rectângulos. Por vezes, deslizam do céu círculos perfeitos. Logo se transformam em hexágonos e, mais à frente, em pentágonos. Quando a Lua nasce, o fogo é reabsorvido pela noite e a Terra descansa da sua ardente geografia.

domingo, 10 de março de 2024

No limiar (16)

Victor Palla, sem título, 1990 (Gulbenkian)

As figuras hesitam na fímbria da realidade. Ainda não estão certas da sua essência e temem aventurar-se numa existência que lhes seja estranha. Movem-se em ambientes translúcidos, evitam a transparência, enquanto tudo à sua volta está mergulhado no oceano inquieto da indecisão, nas águas turvas onde nem o dia nem a noite são nítidos. Por vezes, aproximam-se umas das outras. Procuram a irmandade dos que já deixaram a terra deserta do nada, mas ainda não chegaram às planícies exuberantes do ser. Buscam na fraternidade consolação, como aqueles que chegaram à existência a encontram ao poisar os olhos num ramo de camélias.

sexta-feira, 8 de março de 2024

Sonetos de Inverno (11)

Mário de Oliveira, Lucalena de las Torres, 1967 (Gulbenkian)

Uma voz sediciosa soletra

a palavra e a revolta de Inverno.

As estrelas rodopiam ao vento,

astros mudos no silêncio da sombra

 

Apressado, veio Março tomado

pelo canto dos antigos profetas.

Folhas mortas, castas, caem das árvores,

sussurrando sortilégios e espantos.

 

Pelas frias avenidas de Inverno,

do silêncio soletrado virão

inocentes as palavras de sal.

 

Auspícios descem de bocas caladas.

Os profetas são agora estátuas

nos jardins onde os mortos se calam.

 

Março de 2024

quarta-feira, 6 de março de 2024

Arqueologias do espírito 29

Ferdinand Olivier, Procession of Pilgrims in the Forest, 1814 

Talvez o espírito tenha descido sobre os homens na sombra da floresta. Ali, aquele animal desprotegido encontrava abrigo e, por instantes, podia esquecer o medo terrível que o envolvia. Sob os ramos do arvoredo, escutava a passagem do vento pelas folhas e descobria os raios luminosos que fendiam a copa das árvores para reverberarem na erva húmida. Por vezes, os homens encontravam-se na clareira e deixavam que a luz os banhasse, mas logo o perigo de estarem expostos os fazia voltar para a sombra, onde se sentavam e narravam longamente as aventuras que tinham vivido ou que inventavam naquela hora. Ao contar, ao inventar, uma propriedade nova nascia dentro de cada um e arrancava-o à pura animalidade de onde tinha vindo. Era o espírito que descia sobre ele e o tornava num outro ser.

domingo, 3 de março de 2024

A sombra da água (27)

Fernando Calhau, sem título #441, 1980 (Gulbenkian)

A água é uma sombra projectada sobre a superfície da Terra. Avança fremente pelos canais desenhados por um arquitecto preso ao flúor da alucinação, rasga as velhas rochas para descobrir um caminho nunca pensado, cobre os abismos para que os mortais possam descansar os seus olhos sem temer a dor da queda.

sexta-feira, 1 de março de 2024

Sonetos de Inverno (10)

José Dominguez Alvarez, sem título (Aspecto de rua com figuras) (Gulbenkian)

A tristeza destes dias de frio,

sob um sol sem o motim do Verão.

Nostalgia dos murmúrios da infância,

desventura duma vida exígua.

 

Devoradas pelo tempo, as horas

rodopiam perturbadas sem parar.

Turbilhão feito de ócio e dor,

a penumbra dum sonoro segredo.

 

A infância deambula nos dedos

com que colho a nostalgia da vida,

tão exígua na ventura que houve.

 

Eis o vórtice onde tudo se perde,

turbilhão, dor infinita das horas,

onde canto em secreto silêncio.

 

Fevereiro de 2024

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

O sal do silêncio (111)

João Dixo, Quem pinta, pinta-se, 1978 (Gulbenkian)

A reflexividade dos nossos actos é um pacto com o silêncio. Entre o que fazemos e o que somos, nesse interstício que vai de nós a nós, há um silêncio de fundo, tão radical que raramente damos por ele. É nele, porém, que unimos a poeira do que fazemos ao sal que somos.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

A memória do ar (26)

Maria Helena Vieira da Silva, L'air du vent, 1966 (Gulbenkian)

Voar, eis o vício do vento. Deslocar-se sobre os segredos dos homens, para os envolver no tremendo da ventania, no terrível do vendaval. Por vezes, o ar toma o nome de ciclone, corre apressado numa fúria desmedida, desloca-se em turbilhão, como se fosse habitado por uma raiva despida de razões, como se tivesse cansado de segredos e de homens.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Sonetos de Inverno (9)

Muirhead Bone, View of Rome at Sunset, c. 1912

A paisagem assombrada da tarde,

vendaval vindo no voo do vento,

as mulheres de cabelos revoltos,

os cavalos delicados da noite.

 

Vou, de Inverno em Inverno, sombrio,

faço luz na escuridão da caverna,

onde oiço o ecoar da memória

afogada no silêncio do tempo.

 

Cavaleiro sem cavalo na noite.

É a hora de rasgar o caminho

na paisagem fria e negra de névoa.

 

Sou o eco que rasura a memória.

Sou a luz branca da escura caverna.

Sou o tempo e a sombra de Inverno.

 

Fevereiro de 2024 

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Geometrias de fogo (26)

Anton Zwengauer, Landscape with Deer at Sunset, 1847

Era um lago habitado por um fogo plácido, um incêndio de pétalas reconciliado com a água e a terra, desejoso de serenidade, amante dos dias de sol e das noites estreladas. Um fogo feito de frutos resplandecentes e de esperanças sensatas, um fogo inclinado para o crepúsculo, um fogo que se move lentamente entre ás águas paradas e o sangue desatinado do coração.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

A sombra da água (26)

Piotr Mondrian, Farm with Trees and Water, 1906

É uma água sem o sal da viagem, sem a sombra das noites. Irrompe pura na Terra ou cai solícita dos céus. Nela, não há navios, nem os pescadores procuram a harmonia dos peixes. De noite, murmura canções tecidas com o fio do silêncio; de dia, deixa que da sua boca se evapore um hálito de rosas.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Haikai do Viandante (435)

José Dominguez Alvarez, Paisagem de Montanha (Gulbenkian)

 Sombras nos caminhos

são símbolos na montanha.

Sangue de Outono.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Sonetos de Inverno (8)

Rockwell Kent, Admiralty Inlet, 1922

A camisa desgastada de Invernos

é um trapo enrolado nas mãos,

é o corpo pelo tempo rasgado,

uma mancha que declina sem luz.

 

Revestido de matéria efémera,

o espírito balança ao relento.

Vai e vem, preso ao fulgor do que passa,

tão perdido no delíquio dos dias.

 

Atormentam-me as sombras esquivas

declinadas pela luz deste Inverno,

a camisa corrompida do corpo.

 

Se o sol resplandece nas montanhas,

o espírito encontra o caminho

para a casa que ao longe o espera.

 

Fevereiro de 2024 

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

No limiar (15)

Carlos Carneiro, sem título, 1970 (Gulbenkian)

A realidade não é um presença constante, dela está ausente a placidez das coisas eternas. É uma aproximação lenta, um vir de longe, atravessando as areias dos desertos, as águas escuras e inóspitas dos oceanos, as florestas cerradas no dorso das montanhas. Aproxima-se como uma sombra, porque é morosa a procissão que tem de percorrer a partir do nada, elaborando-se em esboços sem fim, ganhando consistência no lusco-fusco dos dias, até que atravessa o limiar do mundo e encontra a carne que lhe cobre o corpo e nos faz exclamar eis a realidade viva.