terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Impressões 68. Xadrez sob azul

Noronha da Costa, Composição Azul, 1970
Sobre o tabuleiro de xadrez da existência paira uma névoa de azul. Debaixo do véu, personagens compõem um drama feito de reis e rainhas, cavalos à desfilada e torres por conquistar. Os bispos abençoam os pequenos peões que nunca chegarão aos estribos do cavalo para, com a sua lança de água, matarem de sede o rei ou, numa súbita metamorfose, se tornarem diligentes rainhas.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Meditação Breve (145) Criação

Marta Soares, Sem Título XX, 2000
Em todo o processo de criação há uma luta contra a obscuridade, como se tudo fosse uma noite insondável e um pobre artesão combatesse contra a resistência dos materiais e a ameaça do dragão, para que um novo som, uma nova figura, mil novos mundos saíssem das trevas e viessem à luz.

domingo, 27 de dezembro de 2020

Micronarrativa (45) O beijo

Robert Doisneau, Le Baiser de l'Opera, 1950
Ainda não o sabiam, pois muitas são as coisas que se escondem aos olhos dos homens e mais ainda as que o coração não consegue desvendar. Ele inclinou-se ligeiramente para a frente, ela ofereceu-lhe a boca, os corpos vibraram e a vida oscilou. A emoção do primeiro beijo era tão forte que não lhes permitia compreender que era o último.

sábado, 26 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 57

Emil Nolde, Entardecer de Outono, 1924
Aproxima-se o solstício
de Inverno.
Os dias diminuem
para que a noite cresça
sobre as heras
do muro da madrugada.

Um vento suave desliza
das estrelas,
empurra as folhas caídas
para o recato
do pensamento,
para o murmúrio da melancolia.

Dezembro de 2020

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Arqueologias do espírito 14

George Inness, Evening Landscape, 1862

Esses momentos em que a luz é já um exercício de nostalgia e a noite a promessa pronta a cumprir-se, essa hora indecisa do crepúsculo inscreveu-se fundo no fundo do espírito dos homens. Entre a beleza do dia que acaba e o terror das trevas, o coração silencia-se por instantes e uma estação no calvário da existência ganha então, aí mesmo, um lugar, onde prepara a ressurreição da luz, no dia que se seguirá à noite.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O Espírito da Terra (7)

Alexandre Calame, L'Hiver, 1851

Coberta de neve, a Terra dorme suspensa à espera do que virá. Tudo emudeceu, os animais terrestres, as aves do céu, os rumores semeados pelo vento na ramagem despida das árvores. Noite do mundo, silêncio onde germinam os esporos de onde brotará, para súbita e selvagem sagração, a rosa de cristal da Primavera.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

O sal do silêncio (43)

Edward Steichen, The Brass Bowl, 1904
Uma sombra solene de cansaço desliza-lhe dos olhos, perde-se num lugar invisível, enquanto o corpo resiste à tentação de se deixar cair para o fundo negro, o lugar onde o silêncio benévolo é corroído por outro, obstinado e terrível, que se ergue como um monstro pronto a devorar todas as promessas que se ocultam nos olhos de uma mulher.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Histórias sem nexo 20. Zenão e Zulmira

Francis Picabia, Animação, 1914

A zebra do Zenão zurra aos ziguezagues, a Zulmira, de zígnia, zabumba, zabumba. Se um zéfiro zune zelador sobre a zelosia dos zelotas, logo a zibelina do Zoroastro zuca com zelo no zombeteiro zumbido dos zonzos.
 

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 56

Hafidh Al-Droubi, Harmony in Blue, 1966
A vagarosa inocência
do crepúsculo
cobre a cidade
com sílabas de luz
presas ao aroma do poente.

A noite fende a muralha
do dia e lança
os seus exércitos
de erva
sobre a placidez das praças.

De carro, os novos Atridas
voltam a casa,
para a incerteza
da felicidade,
para a segurança da sorte.

Dezembro de 2020

domingo, 20 de dezembro de 2020

Diálogos morais 53. Cala-te

David Seymour, One Child of a Large Family with a Homemade Doll, Vienna, Austria, 1948
- Estou zangada.
- És uma inútil, a quem tenho de transportar.
-
- Nem reages, és má, mesmo muito má.
- Não passas de um monte de trapos e serradura.
-
- Fala comigo!
- Quando preciso de falar com alguém, apareces tu, uma muda.
- Cala-te, não posso ouvir-te.
- Sempre falas.
- Não, mas oiço bem.
- Agora disseste palavras.
- Disse, mas isso não é falar. Cala-te e dorme.

sábado, 19 de dezembro de 2020

O Espírito da Terra (6)

Erik (Dorn) Bodom, Høyfjell, 1871

O fulgor do dia esvai-se, perdido no ondular das águas. Pássaros rasgam o horizonte e voam sob o trémulo manto de nuvens. A noite estende as suas armadilhas de veludo sobre a terra que, sonâmbula, se entrega sem contenda, o coração a latejar e o espírito exaurido pela azáfama do dia.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Pintura e haikus (20)

João Hogan, Paisagem, 1960

Caminhos de areia
no silêncio da paisagem.
Vias de solidão.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Tens de voltar

Alfred Stieglitz, A Snapshot, Paris, 1911

Um acaso pode quebrar o feitiço que nos retém no presente. Um dia, vi-me perdido no meio de uma cidade onde todos se vestiam de forma estranha. Uma mulher, um rosto familiar, chamou-me a atenção. Cheguei à fala com ela. Perguntou-me a razão por que me vestia de modo tão inusitado e olhou-me com condescendência. Falou-me da família, da filha que tinha nascido no ano anterior. Disse o nome dessa filha e eu estremeci. Quis saber o local e data de nascimento, embora eu já o soubesse. Tinha-o escutado à minha avó, era a curiosa história do seu nascimento. Eu falava com a mãe dela, a minha bisavó que morreu trinta anos antes de eu nascer. Divertida, exclamou: conheci-te mal te vi. O tempo é uma ilusão, mas tens de voltar para a tua ilusão. 

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 55

Alexander Rothaug, Curse
A melodia do silêncio
bate à porta
e entra pela casa
do crepúsculo.

Escuto-a na lonjura
do oceano,
no pássaro poisado
no coral da cerejeira.

Danço-a na leveza
da manhã,
se as mãos te tocam
na argila do coração.

Novembro de 2020

 

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Impressões 67. Luzes do Norte

Sydney Mortimer Laurence, Northern Lights

A luz é um animal preso à metamorfose, muda de lugar para lugar, construindo mundos que nunca deixam de surpreender quem os observa. Aos amarelos do Sul, contrapõe os azuis do Norte. Ali os homens sonham, entre planícies gélidas tocadas de anil, pequenas cabanas, abrigos onde arde e ruge o laranja avermelhado do fogo que os salvará.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Arqueologias do espírito 13

Stanisław Witkiewicz, Spring fog, 1893
A dissimulação da realidade sob um manto de nevoeiro, a suspeita de que alguma coisa reside naquilo a que os olhos, não sem pena, descortinam como esboços, o temor de um perigo velado pela cortina da névoa ou a expectativa de algum bem dissimulado entre a neblina, tudo isso abriu o espírito para a dimensão do mistério, o que existe fora do homem e o que reside em si, sempre oculto na penumbra do pensamento ou no crepúsculo da imaginação. Adentrar-se pelo manto húmido da névoa e assim se abrir ao segredo do mundo, ao enigma de si. 

domingo, 13 de dezembro de 2020

O sal do silêncio (42)

Peder Mørk Mønsted, Paisagem de Inverno, 1917

Quando o Inverno desce sobre a Terra, traz consigo a rude necessidade, e em todo o lado, campos ou cidades, a vida torna-se mais rústica, mais precária, mais autêntica, como se o frio fosse uma provação iniciática e, a quem a suportasse com êxito, abrisse a porta para um outro mundo, mais imponderável, mais luminoso, mais próximo da verdade que a todos espera no fim do caminho.

sábado, 12 de dezembro de 2020

A casa e o mundo

Enzo Sellerio, Vizzini, Italy, 1955
Se foi sempre louca? Ó não. Não apenas era a rapariga mais inteligente na escola como, ao crescer, se tornou a mais bela do bairro. O coração perdeu-a. Tinha pretendentes, claro. Apaixonou-se por um, o menos indicado segundo os padrões da família, e, como sabe, as famílias dos meios populares têm por aqui, ainda hoje, tantos anos passados, um poder excessivo sobre o futuro dos filhos, mais ainda sobre o das filhas. Os pais fecharam-na na mansarda e disseram-lhe, não sem ironia, que bem podia esperar pelo eleito. Morreram há muito, mas os irmãos não a libertaram. O pretendente desapareceu do bairro sem explicação. Ela? Cumpre as ordens dos pais. Continua à espera que ele venha. A janela da mansarda tornou-se a sua casa e o seu mundo.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 54

Júlia Ventura, Geometrical reconstructions and figure with roses #5, 1987
Espero-te na casa da harmonia,
o areal coberto de limos,
o lume a fulgurar
na montanha da memória.

Os dias são aves apressadas,
esquecidas do ninho
onde deixaram os ovos
a incubar o fruto do futuro.

Senta-te no carrossel do tempo.
Ouve a música da terra
e leva aos lábios a taça
de onde escorre o vinho do vento.

Novembro de 2020

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Haikai do Viandante (405)

Emile Claus, La route après l'orage, 1869
 Estrada deserta
perdida na tempestade.
Rumor no caminho.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

O Espírito da Terra (5)

Arseny Ivanovich Meshchersky, Winter. Icebreaker, 1878

Também a terra se entrega nas mãos gélidas do Inverno. Tudo se torna mais agreste e uma beleza contida germina nas paisagens frias, como se a realidade se tornasse mais secreta, mais profunda, menos frívola, menos volúvel. Espera silenciosa por uns olhos que a vejam e se contaminem com a promessa que nela se esconde. 

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Diálogos morais 52. Visões

Richard Avedon, Elise Daniels, Turban by Paulette, Pré-Catalan, Paris, 1948
- Estás a ver?
- Estou, estou...
- Como é possível?
- Neste mundo, é de esperar tudo.
- Estás mesmo a ver? Não sejas condescendente.
- Estou a ver, podes crer.
- E não te indignas com aqueles ali, logo eles?
- Eles quem?
- O que estás a ver? Diz-me.
- O teu pescoço, a tua mão...
- Não é isso.
- Ah o resto só posso imaginar. Por enquanto.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Medo

Nobuyoshi Araki, Colourscapes, 1991
Não foi a malevolência de uma bruxa má que lhe pôs aquelas amarras à volta do corpo. Também não foi algum amante dado a práticas de dominação ou excentricidades para incendiar o desejo. Não se lhe conhecem namorados, fixos ou ocasionais. A versão mais fidedigna, pelo menos é a mais verosímil, diz que é ela própria que se liga desse modo. A finalidade? A de todas as mulheres, encontrar o príncipe encantado. Ao que for capaz de a desamarrar, ela entregará o corpo e a vida. Se tem havido pretendentes? Como à mulher de Ulisses, também a ela não lhe faltam. Falham todos. Ela sorri apenas quando mais um desiste desconsolado. Se já tentei? Não, tenho medo de conseguir e de, nesse instante supremo, o meu amor por ela desaparecer sem deixar rasto.

domingo, 6 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 53

James Thomas Watts, A Misty Autumn Morning (near North Wales)
Despedimo-nos da embriaguez
de cores do Outono
e entramos na sonolência
de cinza do Inverno.

Os dias deslizam de solstício
em solstício.
A terra revolve-se para trazer
um rasto de sal e fogo ao coração.

Na língua, descobrimos palavras
com que dizemos
o fulgor do que passa
na cintilação suave do silêncio.

Novembro de 2020

sábado, 5 de dezembro de 2020

Impressões 66. De si para si

Francesca Woodman, Rome, 1978
Caído, o corpo desliza de metamorfose em metamorfose, aprendendo pela dor o caminho que leva de si para si. O silêncio zune e o espírito, a princípio confuso, encontra a porta por onde deve entrar para a casa que, por instantes, será a sua.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Arqueologias do espírito 12

Alexandre Calame, Waterval van de Handeck aan de Grimsel, between 1830 and 1848
Imerso em si, o homem olha o revoltear das águas e escuta a música que chega até ele vinda antes do tempo. No turbilhão, ressoa a operação gigantesca de trazer um universo à existência e o espírito, aquele que pairava sobre as águas, entrega-se à rememoração, pois uma linha sem espessura, mas indelével, o autêntico fio de Ariadne, liga-o ao ânimo daquele que observa em silêncio o fluir revoltoso das águas. E na contemplação do que é visível, encontra o contemplador um caminho para o invisível, instruindo-se nesse secreto exercício da memória. 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

O sal do silêncio (41)

André Kertész, Distortion #40, 1933

Ébrio, o olhar vagueia em silêncio pelo corpo nu. As cordas do desejo, de tão tensas, estiram a realidade, e súbitas metamorfoses transtornam a visão que, exaurida pela beleza, distorce aquilo que se revela, no pudor da presença, diante de si. Uma pergunta, então, assombra o espectador, mas ele, de tão atónito, não consegue formulá-la, enquanto o corpo que se transforma dança dentro dos seus olhos. 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

O Espírito da Terra (4)

Albert Bierstadt, Atardecer en la pradera, 1870

Tocada pelo sol, a terra deixa lavrar na pele um grande incêndio. Não de fogo, mas de cores, com as quais conduz o espírito deslumbrado para o mistério que a habita. Ao arder assim, ela purifica-se e abre-se para a incerteza da noite, como se já o seu coração pulsasse na água rasa da aurora.

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 52

Thomas Girtin, Sunrise on the Sea
A noite desfralda as velas
e zarpa para o porto
da manhã.

Navega sobre as vagas
da tentação
no rumorejo das trevas.

A lua ilumina o caminho,
o silvo cintilante
dos primeiros raios de sol.

Novembro de 2020

 

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Histórias sem nexo 19. A coéfora coralista

Eugène Atget, Boulevard de Strasbourg, Corsets, Paris, 1912
A coéfora comprou um coelho e de corpete, como uma coralista, contou como cogitou o contrato do comodoro colaborante. Era um coro de corpetes concebido num corpo de cólera. Cobre? Cobalto? Coral, disse o cónego, compra-se no comércio do comodoro, no covão do colibri ou no covil do cotim.