sábado, 18 de julho de 2020

Haikai do Viandante (397)

Nikolay Dubovskoy, Calm, 1890
No puro sossego
nasce a feroz tempestade.
No céu, luz e nuvens.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Impressões 54. Passado perfeito

Paul Signac, Pierre Hâlé's Windmill Sainte-Briac, 1884
Alturas há em que, rompendo a muralha de mármore do presente, o passado nos chega em cintilações e murmúrios tão perfeitos que o julgamos encantado.

terça-feira, 14 de julho de 2020

A Sarça Ardente - 25

Zao Wou-Ki, 27-6-79

Subi pela serra, caminhos de pedra
e terra macerada
no sal grosso dos anos.

O sol descia pela folhagem
de árvores tardias
presas ao rumor das rochas.

Ao longe, cintilavam aldeias perdidas
e nas nuvens simulacros
de anjos resplandeciam fervilhando de luz.

Abril de 2020

domingo, 12 de julho de 2020

Diálogos morais 41. Mudanças de cor

Emil Nolde, Blue Couple (in Profile) in Sidelight
- Em que estás a pensar?
- Em nada.
- Então porque ficaste vermelha?
- Uma ilusão provocada pela lua.
- Pensava que...
- Não tens que pensar em nada.
- Não posso?
- Não.
- Com tanto não, não admira que tenhamos ficado azuis.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

A mulher difusa

Saul Leiter, Carol Brown in “Harper’s Bazaar”, c.1958
Dir-lhe-ia que é vítima da ilusão cartesiana. A verdade não reside naquilo que é claro e distinto. Não apenas a verdade, também a felicidade habita o indistinto, o que é turvado pela sombra. A minha mulher, lembra-se dela, variava no grau de definição com que se apresentava perante mim e o mundo. Alturas havia em que era demasiado obscura, a sua presença suscitava melancolia e piedade. Normalmente, o que me tornava particularmente feliz, ela era apenas difusa, não havia nela nem obscuridade nem clareza. Só isso permitiu que a amasse. Um dia, porém, apresentou-se diante de mim clara e distinta. Resplandecia. A sua presença era tão intensa que explodiu. Não tornei a casar.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Haikai do Viandante (396)

Robert Mapplethorpe, Grapes, 1985
Natureza morta.
Contra as trevas e a noite,
luz e vinho novo.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Meditação Breve (131) O hóspede indesejado

Malcolm Marley, Age of Catastrophe, 1976
Talvez o Homem seja o hóspede indesejado, do qual os donos de casa se querem ver livres o mais depressa possível. É difícil, ao olhar o mundo, não exclamar: isto vai acabar mal. Não se trata, infelizmente, de pessimismo.

sábado, 4 de julho de 2020

A Sarça Ardente - 24

Lucio Muñoz, 8-86, 1986

O peso do passado adormece
no quarto da memória.
Dorme um sono de gaivotas
na areia da noite.

O oceano rodopia em ondas
de cobalto e ardósia.
O navio nublado da recordação
afasta-se do cais.

Sou um tripulante descuidado.
Olho as águas
e nas algas, o cardume de sombras
da sombra que fui.

Abril de 2020

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Meditação Breve (130) Destruição

René Burri, The Kaiser-Wilhem-Gedachtniskirche, West Berlin, 1959.
Nunca sabemos como lidar com a destruição. Reconstruir fragmento a fragmento o que o tempo e a vida destruíram ou deixar a ferida aberta, em carne viva, para que a benevolência de uma cicatriz não apague a memória da dor? 

terça-feira, 30 de junho de 2020

Pintura e haikus (18)

João Queiroz, sem título, 2016
De súbito, a luz.
Pedra a pedra, a montanha
abre-se ao céu.

domingo, 28 de junho de 2020

Pintura e haikus (17)

Maria Helena Vieira da Silva, Bibliothèque, 1949

Pura biblioteca,
de que são feitos os teus livros?
De água, luz e sal.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Micronarrativa (34) Na fronteira

Ara Güler, Children playing among the tombstones in the Seyhülislam Yahya Efendi cemetery at Ortaköy, Turkey, 1985
Entre lápides e túmulos, a vida é mais sossegada. Na cidade dos mortos, crianças vivas brincam nesse limiar que divide dois mundos. Quem está na fronteira, vê-os a ambos e caminha para cá e para lá sem passaporte nem autorização especial.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

A Sarça Ardente - 23

Francisco Suñer, Cabeza azul, 1984

Fantasio dias de sol tolhidos
no labirinto da luz.
Sombras furtivas descem
e traçam sinais
na verdura dos caminhos.

Mulheres azuis pelas rua,
trazem nos seios
o desejo que me incendeia,
promessa de água
na cornucópia do vento.

Recordo-me das primeiras letras.
Escrevo-as rente à noite
e espero nelas
a revelação de um nome
no silêncio do teu silêncio.

Abril de 2020

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Micronarrativa (33) Uma sombra

Constantine Manos, Daytona Beach, Florida, 1997
Chegou tarde, apesar de vir de bicicleta. Quando se aproximou da cabine de telefone pública, já alguém tinha tinha atendido a chamada que há tanto tempo esperava. Uns segundos, pensou, e foi o suficiente para perder a minha oportunidade. Não passo de uma sombra.

sábado, 20 de junho de 2020

Haikai urbano (55)

Toni Schneiders, Familienbild, Lübeck, 1950
Velhos gatos olham
a rua onde ninguém passa.
Uma mulher cala-se.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Meditação Breve (129) Em baixo e em cima

Alfred Stieglitz, The Steerage, 1907
Uns viajam no convés de cima e outros no debaixo, o que nunca se sabe é se os que estão em cima são na verdade mais elevados do que aqueles que estão em baixo. Não convém comparar estaturas, e ainda menos estaturas morais, quando os corpos se encontram desalinhados no lugar que ocupam no mundo. 

terça-feira, 16 de junho de 2020

Diálogos morais 40. Tempo

Weegee, Time is Short, 1940s
- Cada minuto conta.
- É verdade, não há minuto que não conte.
- O tempo é curto.
- Falso.
- Falso?
- O tempo é longo, excessivamente longo.
- Se cada minuto conta...
- Curta é a vida esmagada pelo desejo do tempo.
- O tempo tem desejos?
- Tem, de se alongar até à eternidade.

domingo, 14 de junho de 2020

A Sarça Ardente - 22

Zao Wou-Ki - 27-6-79

Os primeiros dias de Primavera
descem ao palco
do ano envoltos num vestido
de sombra e cinza.

Hoje choveu e as ruas abandonadas
cantaram canções de água
sob o olhar de pedra
das tílias tocadas pelo tempo.

Como num sonho chego à encruzilhada,
espera-me um enigma.
Vacilo, mas o crepúsculo
anuncia-me a claridade da manhã.

Março de 2020

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Diálogos morais 39. Perfeição

Garry Winogrand, Austin, Texas, 1974
- O que aprendemos nós com os antigos? 
- A perfeição da imobilidade.
- Então, por que motivo nos movemos constantemente?
- Queremos chegar à perfeição.
- Como, se estamos continuamente mobilizados, em movimento?
- Procuramos o lugar...
- O lugar, qual lugar?
- O lugar onde a perfeição nos imobilizará.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

O sedutor

André Hambourg, La conversation, 1929
Querem que vos conte uma história, perguntou o homem. Sou toda ouvidos, responderam as duas desconhecidas. Numa noite de Inverno há muitos anos, neste mesmo lugar, um homem encontrou duas mulheres que nunca vira. Era um sedutor e elas, de imediato, sentiram-se atraídas por ele. A certa altura, perguntou-lhes se queriam que ele lhes contasse uma história. Responderam que sim. Ele contou-lhes que há muitos anos, numa noite de Inverno, um homem tinha encontrado duas desconhecidas, que se sentiram de imediato atraídas por ele. Depois de lhes ter contado a história saíram os três. E o que aconteceu ao sedutor, casou com alguma? Quando a polícia o interrogou, confessou que sim, fora ele que as matara. 

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Impressões 53. Incerteza

Fan Ho, Journey to Uncertainty, 1956
Quando a vida se encurta, a expectativa alonga-se, cresce, eleva-se até que a última das certezas se torne, também ela, incerta. Aí, na mais rude das incertezas, fica a última morada.

sábado, 6 de junho de 2020

Haikai do Viandante (395)

Rodney Smith, Two Women in Black, 1992
Negro sobre negro
cresce o desassossego.
Que luz vos espera?

quinta-feira, 4 de junho de 2020

A Sarça Ardente - 21

Lucio Fontana, Ambiente spaziale (Labirinto bianco), 1968

Os frutos de Setembro vêm longe
e no caderno azul
há páginas brancas,
presas por fio de sisal.

Vão estreitos os dias, a luz do sol
coalha no mantel de linho
esquecido sobre a mesa.

Não guardei nenhuma palavra
das que me deste.
Dissipei-as
na tristeza do entardecer.

Sem mácula, deixo os olhos
correr em silêncio
e uma rosa abre-se em rumor.

Março de 2020

terça-feira, 2 de junho de 2020

O tempo

Charles Marville, Rue de Constantine, ca.1865
Tem razão, no século XIX, o tempo deslizava mais lentamente do que hoje. Não se confunda. Eu não quero dizer que um minuto, então, tinha mais segundos. Como hoje, tinha apenas sessenta. Os segundos porém eram mais dilatados, o que tornava os minutos maiores, mais pesados. O efeito sobre as horas era notável. Comparadas com as de hoje, aquelas eram muito mais lentas. Terríveis se havia pressa em que passassem. Lutavam contra a tentação da velocidade. O sucesso foi relativo, como sabe. Se retroceder ainda mais dois ou três séculos, a situação é então incompreensível. Os homens viviam muito menos anos, mas duravam muito mais. Não, não é especulação, nunca falo do que não vi ou experimentei.

domingo, 31 de maio de 2020

Histórias sem nexo 8. A trineta

Julio Romero de Torres, La niña de la trenza
A trineta da trança trocou de trisavô ao troar da trombeta. Transferiu-o para outra trineta e, enquanto tricotava e a trisavó lhe dizia traz-me o trisavô, troou três vezes o trombone. A tribo levou-a ao tribunal para a trucidar. Ela trocou-lhes a tragédia, desfez-lhes os truques e, transparente, transferiu-se como trapezista para trupe de Trancoso. 

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Impressões 52. A sombra

Artur Pastor - Série Nazaré, 1953/57
Na parede, uma sombra projectada por outra ganha vida, resiste à luz, cobre-se no silêncio da eternidade, enquanto o revérbero do mar se reflecte em segredo no céu, que cintila movido por um sol de seda e cetim.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Micronarrativa (32) O sonho da modelo

Carl Mydans, Art students at the painting class. Texas, 1939
Era uma modelo muito requisitado nas escolas de pintura. Pousava não por necessidade ou vocação. Alimentava, não sem teimosia, uma secreta esperança. Um dia, depois de acabar a última sessão, ao levantar-se viu saírem vivas dos quadros réplicas suas. Eu sabia, gritou. Um dia haveriam de vir comigo.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

A Sarça Ardente - 20

Jaime Burguillos, Ocaso, 1976

O teu silêncio preenche-me o coração.
Dele faço palavras
e semeio-as na terra virgem
presas na pétala pura do provir.

O teu silêncio preenche-me o coração.
Oiço-te no murmúrio
do mundo, na cidade cercada
pela sarça ardente do esquecimento.

O teu silêncio preenche-me o coração.
A música das esferas celestes
cai em cataratas
de abandono e rios de verde e melancolia.

O teu silêncio preenche-me o coração.
Atravesso o mundo
e a maçã que colhi levo-a
na púrpura de seda dos  teus segredos.

Março de 2020

sábado, 23 de maio de 2020

Haikai do Viandante (394)

Paul Cézanne, House and Trees, 1890-1894

A casa entre árvores
sussurra o prazer da tarde.
Dias de Primavera.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Meditação Breve (128) A sagrada família

Eve Arnold, Fisherman and family. Island girl. Bahia Honda, Cuba, 1954
Um homem, uma mulher e uma criança. De imediato reconhecemos aí a realização de um dos mais poderosos arquétipos da cultura ocidental, o da sagrada família. O que torna algo num arquétipo? A excepcionalidade. O que institui Maria, José e o Menino num arquétipo é o carácter absolutamente excepcional e inusitado daquilo que os junta. É a sua não normalidade que lhes permite constituir-se como uma norma que durante séculos ordenou o caos que é a família dos seres humanos.