sábado, 8 de junho de 2019

A fotografia

Horst P. Horst, London, 1936

Dançaram toda a noite. A princípio não os notei, mas, a certa altura, a forma como dançavam prendeu-me o olhar. Havia neles uma leveza que nunca vira, embora nunca tentassem distinguir-se dos outros casais. Conhece, por certo, aqueles pares que gostam de centrar em si os olhares, que se esforçam para manifestar uma distinção técnica e com isso parecem realizar um grande desígnio. Este era diferente, esforçava-se para ser apenas mais um. Quando a festa terminou, segui-os. Eles caminharam em silêncio e nunca deram as mãos. Chegados perto rio, pararam. Foi então que os fotografei. Nesse instante, sem que eu perceba como, desapareceram. Encontrei-os quando revelei a fotografia. Ali estavam eles, presos ao papel.

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Diálogos morais 7. Que pena

Bill Brandt, Penny-farthing for their thoughts, from A Day on the River, 1941

- Estou cansada. Para lá daquela margem está a nossa felicidade.
- Também o creio. Quem me dera que lá estivéssemos.
- É fácil, atravessamos o rio.
- Impossível, só tenho uma bicicleta.
- Que pena, seríamos felizes.
- Que pena, mesmo.

quinta-feira, 6 de junho de 2019

O sal do silêncio (17)

Andreas Feininger, Figurenarchitektur von Lyonel Feininger, 1971

Universos de pedra são como casas onde habitam homens silenciosos, clareiras onde tudo se vê mas nada tem sentido. Os seus habitantes caminham ao acaso, encontram-se e logo se afastam, sem que uma razão desfaça o enigma ou uma súbita iluminação lhes esclareça a existência.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Pintura e haikus (10)

Mario Sironi, L'eclisse, 1942

Eclipse de pedra
no frio silêncio da rua.
O rumor da morte.

terça-feira, 4 de junho de 2019

Poesia do Viandante (722)

Gerhard Richter - Abstraktes Bild (1995)

722. tudo estremece

tudo estremece
no mar da mansidão
as palavras puras
roubadas
à gangrena do léxico
o rumor da ressurreição
na poeira da páscoa
o homem solitário
adormecido
no dédalo da desventura

(27/12/2016)

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Impressões 32. Anjos

Lord Snowdon, Ballet Dancers Rudolph Nureyev and Dame Margot, 1963

É apenas um instante, uma ilusão maculada de alegria, um fruto que se abre para a maturação. Depois, elevam-se e são anjos. Escondem-se nos telhados e vigiam os homens. Por vezes, uma ânsia de gravidade atinge-os. Nesse momento, poisam ao de leve nas ruas e caminham envoltos no seu corpo de luz.

sábado, 1 de junho de 2019

Meditação Breve (102) Da luz como artifício

Eve Arnold, Gala Opening Metropolitan Opera, New York, 1950

A luz artificial, aquela que faz a glória da nossa civilização, tem o estranho condão de sublinhar o que há de obscuro e umbroso na realidade. Ao tocar num objecto ou numa pessoa, o que se manifesta, mesmo que, embotados pelo hábito, já não o notemos, é a sombra que a envolve.

sexta-feira, 31 de maio de 2019

Impressões 31. Mundos circulares

Ramón Pérez Carrió - Bassa de Santonja, 1989

Há quem sonhe com mundos circulares, possuído por um desejo de perfeição ou um anseio de beatitude. Depois, ao acordar, projecta o sonho no mundo e recebe nos seus olhos a sombra do mistério e o passaporte para o silêncio.

quinta-feira, 30 de maio de 2019

O sal do silêncio (16)

Benvenuto Benvenuti, Alba in padule, 1926

A manhã rompe o silêncio e abre-se sobre o mistérios dos pântanos. As árvores despem o luto e deixam que as cores atraiam para elas os olhares de quem está longe.

domingo, 26 de maio de 2019

Poesia do Viandante (721)

Gerhard Richter - Abstraktes Bild (1995)

721. arquitecturas de água

arquitecturas de água
folhas tecidas
na leveza
do nada
grandes vitrais
tocados
por vozes de pérola
no açafate
dos dias dragados
pela espada da ilusão

(27/12/2016)

sábado, 25 de maio de 2019

Micronarrativa (16) Da salvação

Rudy Burckhardt, Legs of Woman Walking Across Manhole Cover, New York City, 1939

O barulho dos saltos ao bater na chão ecoa ainda na minha memória. De súbito, levanta-se uma tempestade terrível e ela, temerosa, embrulha-se no silêncio da sua sombra. Caminha então como se levitasse ou um anjo a tomasse em seus braços luminosos para a entregar na casa onde um dia de júbilo a aguarda.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Haikai urbano (47)

Eliot Elisofon, Signs in Kyoto, 1961

Signos e sinais,
na fria chuva de Quioto:
Vida e mistérios.

domingo, 19 de maio de 2019

A concha de Penélope

Frank Eugene, Miss Gladys Lawrence - The Seashell, 1910-13

Ela transportava sempre aquela concha consigo, levando-a, uma vez por outra, ao ouvido. Então, ficava assim durante longos momentos. Depois, como se orasse, apertava-a nas mãos. De seguida, pousava-a e retomava o trabalho, aquele que haveria de desfazer durante a noite. Interrompia-o para sintonizar de novo o mar naquele objecto mágico. Sempre que o fazia, uma sombra cobria-lhe o rosto e uma dor varava-lhe o peito. Também no dia em que, irreconhecível, Ulisses desembarcou em Ítaca, ela levou a concha ao ouvido. O que escutou deu-lhe tal alegria que deixou que o objecto se desprendesse das mãos e se estilhaçasse nas duras lajes do palácio. O mar deixara de lhe falar.

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Poesia do Viandante (720)

Gerhard Richter - Abstraktes Bild (1995)

720. um amor de água

um amor de água
dobrado
na dádiva da dor
o carvão do crime
resgatado
à erva esconsa
um símbolo
cindido entre
o gelo e o júbilo

(26/12/2016)

domingo, 12 de maio de 2019

Impressões 30. Estátuas frias

Fernand Khnopff, Memories, 1889

Imóveis, as jogadoras descansam dos acasos do jogo. Olham-se e não falam. Guardam os segredos no cofre-forte da discrição. O que sabem só a cada uma diz respeito. Esperam apenas que o tempo passe e se tornam pedra, estátuas frias na turbulência do tempo.

sábado, 11 de maio de 2019

O sal do silêncio (15)

Max Baur, Park Sanssouci, Potsdam

Piso as folhas caídas da árvore do Outono, oiço-as ranger sob o peso dos meus pés e caminho desvalido como um eremita perdido no crepúsculo da grande cidade. Sigo o caminho que não leva a lado nenhum. Sou cego e guio-me a mim mesmo e espero, no ventre dessa cegueira, a luz que me há-de resgatar do império da noite.


sexta-feira, 10 de maio de 2019

Haikai do Viandante (369)

Tamamura Kozaburo, Mount Fuji from Takaido Station, ca 1900 

O monte ao longe
espera-te em silêncio.
Vai, vai devagar. 

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Meditação Breve (101) Tudo o que é grande

Hiroshi Sugitomo, Baltic Sea, near Rügen, Germany, 1996

Olhamos a vastidão do mar, o murmúrio do vento rente às aguas, a cor indecifrável que fere a memória. Tudo o que é grande reflecte o silêncio dos céus e aguarda o coração que lhe desvende o mais secreto dos segredos.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Poesia do Viandante (719)

James Juszczyk - Another Passage (1991)

719. passagem a passagem

passagem a passagem
percorro o caminho
do esquecimento
orlado por ervas
e uvas
tocado pelo vendaval
da memória
o som da sonora cegueira

(26/12/2016)

terça-feira, 7 de maio de 2019

O sal do silêncio (14)

William Henry Fox Talbot, A Scene in a Library, 1844

Parecem esquecidos, mas estão apenas à tua espera. Aguardam, pacientes e fiéis, que a solidão te chame para eles e, em silêncio, descubras o que te têm para dizer.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Haikai urbano (46)

Kurt Hielscher, Harbour, Hamburg, Germany, 1922

Nas águas do porto
há um sonho de viagens:
ir e não voltar.

domingo, 5 de maio de 2019

Diálogos morais 6. Tentações

Jack Delano, Union Station, Chicago, 1943​

- Aqui, sob a luz, estamos demasiados expostos.
- Não será melhor verem-nos? 
- Isso evitará tentações.
- E o melhor não é evitar a tentação?
- Não sou padre ou pastor. Pagam-me para apanhar quem se deixou tentar.

sábado, 4 de maio de 2019

Impressões 29. A luz que desce da voz


Canticles of Ecstasy, música de Hildegaard von Bingen. A luz que se desprende daquelas vozes ilumina a noite e um murmúrio clama que a Idade Média não pode ter sido um tempo de trevas, se havia quem cantasse assim. Deixo que as vozes me arrebatem, enquanto o coração sossega e descansa do calvário do dia.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Poesia do Viandante (718)

José María Yturralde - Ad Quadratum (1990)

718. a escura esquadria

a escura esquadria
do quadrado
sombra
de sílabas
na paisagem vermelha
tão verde
dos campos
incendiados
no solstício de verão

(26/12/2016)

domingo, 21 de abril de 2019

O sal do silêncio (13)

Hippolyte Flandrin, The Resurrection

Não apenas o sal habita no silêncio, mas também o fermento. É ali, no silêncio sepulcral que habita o centro do mundo, que fermenta vida, corroendo os grilhões de aço da morte. Chegada a hora, ela irrompe banhada pela luz do segredo. Em cada irrupção há um ressurgir no qual, sob o véu silente, se escuta a música  eterna das esferas celestes.

sábado, 20 de abril de 2019

Diálogos morais 5. Partilha

Stanley Kubrick, Life and Love on the New York City Subway, 1946

- Contem-te, está ali um homem a dormir. Se ele acorda...
- Não acorda, está morto.
- Que horror. Não brinques com coisas sérias.
- Horror seria ele estar vivo e ter de te partilhar com ele.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Poesia do Viandante (717)

Meyer Schapiro - Surreal Rocks (1960)

717. rochas gânglios

rochas gânglios
de pedra
na crosta da terra
inflamações
a arder
na planície
espelhos
espalhados
na cinza do mar

(25/12/2016)

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Pintura e haikus (9)

Chaim Soutine, Cagnes Landscape with Tree, 1923-24

Paisagens de verde
sombreadas de amarelo.
Luz da Primavera.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

O sal do silêncio (12)

Paul Wolff, Housewife, grass-bleaching the linen, 1930s

Há gestos, tão vivos, congelados no passado que parecem querer soltar-se das férreas grades do calendário, para abraçarem o húmus da terra e entregarem-se ao ardor que, na maresia das manhãs, se desprende já dos raios solares. 

terça-feira, 16 de abril de 2019

Diálogos morais 4. Prazeres

Irving Penn, Man Lighting Girl’s Cigarette (Jean Patchett), New York, 1949

- Obrigada.
- É um prazer.
- Compreendo. Tem prazer no que me faz mal, no que me pode matar.
- E que prazer poderia eu ter no que lhe fizesse bem?