terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Micronarrativa (10) A veladora

Antonio Beato, Karnak Luxor, 1862

Convidei-a a vir no barco. Era a sua última oportunidade, disse-lhe. Ela não o desmentiu. Respondeu apenas que o meu convite era inaceitável. O seu lugar, sublinhou sem tristeza, era nos santuários. Há mais de quatro milénios que velava por eles. Não seria o amor que a desviaria da missão, acrescentou e desapareceu entre as ruínas.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Poesia do Viandante (702)

Agnes Martin - Falling Blue (1963)

702. um azul cai no outono

um azul cai no outono
desses olhos
um azul árduo
desliza
dos lódãos
e dos ciprestes
ondula nas oliveiras
sopra e sussurra
no hibisco da infância

(23/12/2016)

domingo, 20 de janeiro de 2019

As bordadeiras

Kusakabe Kinbei, Parasol embroiderers in Japan, ca 1890

O trabalho lento, mas minucioso, dava-lhes um lugar no mundo.  O que era desprovido de graça, ao sair das suas mãos, parecia ter sido tocado por um deus. As ruas eram assim mais belas devido ao seu trabalho e não havia mulher que não se sentisse orgulhosa de ostentar um guarda-sol por elas bordado. Um dia, saíram da oficina e não tornaram a aparecer. Circulam versões para todos os gostos. A mais verosímil conta que, no fim de uma rua, entraram por uma porta e não mais foram vistas. Dias depois, a polícia instigada pelos patrões foi procurá-las. Arrombou a porta e quando se preparava para entrar descobriu que nada havia para onde ir. Além dela, estava, absurdo e ameaçador, o vazio absoluto.

sábado, 19 de janeiro de 2019

Haikai do Viandante (363)

Aureliano de Beruete y Moret, El Manzanares

A água que corre
lava a solidão do dia.
Áspero Inverno.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Meditação Breve (93) Territórios

Wolfgang Suschitzky, Democracy, 1961

Onde penetra a contagem e o cálculo, esse campo de alarido e luta, nada de essencial se passa. Tudo o que é decisivo se furta ao jogo das maiorias e das minorias e permanece reservado e em silêncio num território só a alguns acessível.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Micronarrativa (9) A carta

Hans Baumgartner, Ferien am Canal du Midi. France, 1949

Sentar-me perto da água e escrever. A anotação de uma memória? Um poema movido pela paisagem? Uma crónica das aventuras em férias? Não. Escrever uma longa carta com tudo o que hei-de querer saber quando chegar a casa e a abrir.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Poesia do Viandante (701)

Agnes Martin - Piedra gris II (1961)

701. o vibrato da estátua

o vibrato da estátua
lavrado na luz
treme tomado
pelo pavor
do vento
se a neve cai
na palidez da pedra

(23/12/2016)

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Pintura e haikus (6)

Fernando Lerín, sin título, 1985

Paisagens azuis
crescem na luz do Inverno.
Terra, mar e céu.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Meditação Breve (92) Felicidade

Cas Oorthuys, Typical Dutch Scenery, 1950s

Tudo se inclina para uma suave melancolia. O dia passa calmo, os homens sentam-se tranquilos, a terra e a água casam-se sem tumulto e o próprio amor desliza rente às emoções, sem que os sentimentos borbulhem ou o desejo se exteriorize em categóricos imperativos.

domingo, 13 de janeiro de 2019

Subida aos céus

Eric Enstorm, Gracia. Bovey, Minnesota, 1918

Vindo da rua, sentou-se. Durante alguns minutos, leu, com compunção, uma das epístolas do apóstolo Paulo. Fazia-o sempre antes das refeições. Paulo, acreditava ele não sem fundamento, velava pela sua frugalidade. Depois pousou, com mansidão, os óculos sobre o livro sagrado. Com o mesmo espírito contrito, comeu a sopa e partiu o pão. Fraccionado este, elevou-o ao alto e murmurou uma breve oração. Colocou-o na boca, como se fosse o último pedaço de pão que comeria. De seguida, com os cotovelos apoiados na mesa, cruzou os dedos e encostou nas mãos a cabeça. Quem o visse diria que estava em meditação tão profunda que o espírito saíra do corpo. Foi assim que se elevou aos céus.

sábado, 12 de janeiro de 2019

Haikai urbano (43)

Fred Lyon, A Walk in the Fog, 1949

Névoa sobre névoa.
Uma família passeia
presa à solidão.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Poesia do Viandante (700)

Agnes Martin - La rosa (1964)

700. a rosa não é uma rosa

a rosa não é uma rosa
mas um paradoxo
de folhas
no rio da razão
floresce sem florescer
rumina sem rumor
no calor do campo
no amor da roseira

(23/12/2016)

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Micronarrativa (8) Anjos

Jean Dieuzaide, Turquie, toit d'une maison. Terrasse de Kayadibi,1954

Quando menos se espera, damos com anjos a espreitarem-nos dos mais inesperados lugares. Uma fresta, uma porta entreaberta, uma janela a ninguém acessível. Voltamo-nos, rapidamente, e lá estão eles com os seus olhos espantados e o coração em ânsia.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Pintura e haikus (5)

Pierre-Albert Marquet, Cielo encapotado en Hendaya, 1926

Um jogo de cores
separa céu, mar e terra.
Fantasia e mistério.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Meditação Breve (91) Passado

André Kertész, Place Gambetta, Paris, 1929

Uma velha praça, um carro que se desvanece, o transeunte protegido pelo guarda-chuva, os candeeiros da iluminação pública alinhados como numa parada militar. É tão perfeito o passado que o coração, ao avistá-lo, chega a doer.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Impressões 15. Abandono

Will Ellis, Abandoned NYC

O abandono é uma casa que acolhe a voz de muitas dores o pulsar do sangue levado pelo desalento da vida.

domingo, 6 de janeiro de 2019

Poesia do Viandante (699)

Agnes Martin, Flor al viento, 1963

699. flores flutuam

flores flutuam
ao vento
refluem contra
o muro do poema
deixam cair
perfumes de pólen
no sal da servidão

(23/12/2016)

sábado, 5 de janeiro de 2019

Haikai urbano (42)

Ara Güler, Paar in Zeyrek, 1960

Caída dos céus,
desliza sobre a cidade.
Neve, branca neve.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

O livro da vida

Florian Schmidt, Turn The Page

Sim, ela enlouqueceu. Temo, pode crer, que a situação seja irreversível. Um dia, sentou-se e abriu um livro que eu nunca vira. Era o livro da sua vida, exclamou alegre. Então, começou a ler e a virar as páginas. Na segunda, exclamou: que estranho! Na terceira, o assombro aumento na sua face. Quando virou a quarta, havia já um ricto de temor na testa. Depois, começou a virá-las cada vez mais rapidamente e dizia: não, não pode ser. Gritava, chegou a arrancar alguma folhas e a rasgá-las Então, já em completo desespero, atirou-me o livro. Eu abri-o e em todas as páginas estava escrito a mesma coisa. Era essa a sua vida.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Impressões 14. Apocalipse

Riccardo Schweizer, Apocalipse, 1957

O Apocalipse não é uma consumação de um fim definitivo do mundo, mas a revelação da possibilidade de um começo. Todo o Apocalipse traz em seu seio um Génesis.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Micronarrativa (7) Geisha

Thomas Hoepker, A geisha in traditional oiran dress in a 17th century tea house. Kyoto, 1977

Sentada, ela espera a hora de se elevar. A luz toca-a e ilumina-a para que o segredo a envolva e, para os olhos ávidos, se torne opaca. A sombra espera-a para a conduzir à casa da noite.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Poesia do Viandante (698)

Agnes Martin, Esta lluvia, 1960

698. chuvas de dezembro

chuvas de dezembro
envoltas
no desvão da dor
caem no terraço
do olvido
e abrem os dedos
da solidão
na fronteira da fantasia

(23/12/2016)

domingo, 30 de dezembro de 2018

Micronarrativa (6) A carta

Alexey Titarenko, Old woman, St. Petersburg, Russia, 1999

Estou tão cansada que nem forças tenho para desdobrar o papel e ler a carta. O que poderá ela dizer que eu não saiba já. As palavras que escreveste pesam como chumbo e o meu corpo cansado mais do que para a tua memória inclina-se para a terra.

sábado, 29 de dezembro de 2018

No bosque

Carlos Morago, Arboleda, 1998

Um bosque é o suficiente para alimentar o romantismo que nos habita. Desesperado, talvez por um desgosto de amor ou por um desastre financeiro, ter-se-ia suicidado entre as árvores. O local não deixa de ser convidativo aos grandes gestos, mas a verdade é bem diferente. Não se lhe conheciam paixões ou interesses. Entrou no bosque, é certo, mas o seu corpo nunca foi encontrado. A versão mais razoável é a que conta um amigo que o acompanhou. Chegado à clareira, ao anoitecer, disse-lhe. É aqui que vou ficar. Logo o corpo começou a sofrer uma estranha metamorfose. Quando a luz da manhã chegou, ele era aquela árvore que ali vê. A mais alta e imponente de todas. O resto são fantasias.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Pintura e haikus (4)

Arnold Böcklin, Château en ruine, 1847

Murmúrios de luz
sobre montes e ruínas.
Sombras do crepúsculo.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Impressões 13. Passam

Sergio Larrain - Magnum Photos, Bolívia, Potosi, 1957

Passam e trazem com elas a morada do silêncio, um olhar de inquirição, uma sombra sobre o corpo. Passam e são o dia e a noite, o princípio de esperança e o fundo desespero. Passam e acordam na memória o rasto de uma nuvem esquecida.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Poesia do Viandante (697)

Frantisek Kupka - Discos de Newton (1911-12)

697. discos de newton

discos de newton
sombreiam o som
do arco-íris
soltam solstícios
na casa
do sol
esculpem
lápides de luz
ao soltarem-se da sombra

(22/12/2016)

domingo, 23 de dezembro de 2018

Presenças

Bartolomé Esteban Murillo, El regreso del hijo pródigo, 1668

No seu núcleo mais misterioso - e por isso mesmo mais espiritual - o nascimento do Menino Jesus não será outra coisa se não o regresso do filho pródigo. Os textos das tradições sagradas possuem uma espécie de circularidade, na qual um mesmo sentido é dito de maneiras diversas, remetendo as narrativas umas para as outras, como se lutassem para que um sentido decisivo, embora obscuro, não se perca. Seja no nascimento, seja no regresso, estamos sempre confrontados com a chegada do que não se espera, com o inusitado de uma presença que anula o absurdo da ausência. No nascimento do Menino, é o filho pródigo que se torna presente. No regresso do filho pródigo é o Menino que se afasta da sua ausência.

sábado, 22 de dezembro de 2018

A rainha da noite

Milton Greene, Marilyn Monroe, 1953

Todas as histórias que se contam sobre a sua morte são apócrifas. Servem para serenar a razão e tranquilizar os súbditos. Eu vi como tudo aconteceu. Como sempre, ela estava vestida de negro. Naquela noite, ao contrário do hábito, não deambulou entre os presentes, nem dançou. Sentou-se no chão descalça. A parede de vidro deixava perceber a noite cerrada sem lua nem estrelas. O que se via do seu corpo era luminoso. Fiquei fascinado. Não era o único. O fascínio, porém, logo deu lugar ao sobressalto quando ela começou a perder o brilho. Depois, sobreveio a comoção. Corremos para ela. Não estava morta nem viva. Tinha-se apagado, literalmente.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Haikai urbano (41)

The New York Times Photo Archives, 43rd Street and Broadway. New York, 1937

As neves de Inverno
rasgam rumores nas ruas.
Vultos em silêncio.