quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (577)

Pier Luigi Lavagnino - Alberi (1969

577. árvores arvoradas

árvores arvoradas
no silêncio
dos campos
as raízes rasgam
a terra
e os ramos
tocados de verde
sopram ao vento
a soledade
sombria do céu

(16/08/2016)

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Para quê?

Gwen John - A Corner of the Artist’s Room in Paris (1907-9)

Um dia sentar-me-ei naquela cadeira e olharei a manhã. Para quê?, pergunta-me, inquieta, a manhã. Deixo correr os olhos pelo muro da frente, pelo azul do céu, pela macieira desgrenhada que ainda não vejo. Fico em silêncio, e a manhã, entrando pela janela, abana-me e insiste: Para quê? Não sei o que dizer, pois tudo o que sei é pintar, distribuir as cores pela tela, fazer nascer a luz e a sombra. Sento-me, então, ao cavalete e pinto, pinto a cadeira onde me hei-de sentar, a janela por onde veja o mundo, o livro sobre a mesa e a manhã que me olha atónita e não cessa de perguntar: para quê?

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Da profundeza

Georges Rouault - De profundis (1917-27)

O ser humano é um habitante do mundo do meio. Não pertence nem ao território rarefeito do alto, nem às terras inóspitas das profundezas. Essa vida no mundo mediano, porém, limita-lhe o olhar e o desejo. Acontece, muitas vezes, que, arrastado para essas profundezas, fazendo a experiência da queda e do adverso dos baixios, ele ergue os olhos para cima e o seu desejo leva-o para além daquilo que cabe ao homem.

domingo, 25 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (298)

Paul Cézanne - As margens do Marne (1888)

das margens do rio
avistam-se sombras na água
flutuam e passam

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (576)

Jacqueline Lamba - Ciel Noir (1986)

576. um céu de seda

um céu de seda
negra
desce na rua
coberta de neve
e a noite
cai
na neve negra
de uma seda
celestial

(10/08/2016)

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

O primeiro passo

Frantisek Kupka - O primeiro passo (1909)

A glória do primeiro passo, na opinião comum, resulta da combinação do início de um caminho com a definição de uma direcção. Não se pensa, porém, no negativo desta glória. Todo o primeiro passo é já afastamento, abandono, o começo de um esquecimento. Toda a glória funda-se assim na dor, numa experiência traumática, naquilo que as tradições monoteístas chamam queda.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Na casa de Misia

Pierre Bonnard - A casa de Misia (1906)

Foi na casa de Misia que a conheci. Quando chegava, ela já estava. Sentada, na varanda, lia em silêncio. Era frugal nas palavras. Se os encontros da tarde se prolongavam pela noite, ela excluía-se de qualquer animação. Olhava para todos nós, os seus olhos eram um incêndio contido. Com o tempo compreendi que ninguém lhe dirigia a palavra, mas não havia qualquer hostilidade. Apaixonei-me, confesso. Uma tarde, já ao crepúsculo, não me contive. Dirige-me a ela e perguntei-lhe o nome. De imediato, se desvaneceu. Senti uma mão no ombro. Era a dona da casa. Sorriu e disse-me: está na hora, Orfeu, de nos constares uma história.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

A janela fechada

Pablo Picasso - La ventana cerrada (1899)

Talvez seja por medo do exterior que o homem se fecha em si mesmo. A janela fechada simboliza essa oclusão. O fechamento da janela não resulta, contudo, de uma decisão. Ele é, mais que tudo, o resultado de um processo que começa talvez antes do nascimento. Toda a educação visa solidificar o fechamento de si e reforçar as portadas da janela. Por vezes, alguém, sem saber claramente a razão, arromba a janela e sai de si. É aí que começa a arte, a filosofia ou a experiência mística. Todas elas são o fruto de um acto de violência, de uma insubordinação contra a ordem que encerra o homem na clausura de si mesmo.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (575)

Paul Ackerman - A l'aube (1962)

575. sonho o ardor

sonho o ardor
da aurora
na praça
fria e fétida
da noite
componho
com traço
de tristeza
a angústia
do sonho
sonâmbulo
ao despertar

(10/08/2016)

domingo, 18 de setembro de 2016

Sobre a camuflagem

Pancho Gutiérrez Cossío - Camouflage (1921)

A camuflagem, em aparência, é um exercício que visa evitar o reconhecimento pelo outro. Fundamentalmente, quando este outro é um inimigo ou um predador. A camuflagem surge, deste modo, com um exercício vital. A sobrevivência depende da arte do disfarce. Rapidamente, a espécie humana transferiu a dissimulação da esfera da luta pela sobrevivência para a da vida social, como se sentisse também nesta uma ameaça. Sem dar por isso, tomou aquilo que é um mero expediente de sobrevivência como sendo a sua própria natureza. Tomamos a máscara, ou o efeito de camuflagem, como a nossa efectiva realidade. No momento em que o homem sente um suspeita sobre a distância que vai entre a camuflagem e a realidade de si mesmo, nesse momento começa a aventura espiritual. Até ali, o que via era apenas e só o animal acossado que também é.

sábado, 17 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (297)

Albert Bierstadt - Autumn Woods (1886)

outono nos bosques
vem vestido de verão
rios de solidão

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O positivo e o negativo

Gerardo Rueda - Positivo - Negativo (1965)

A distinção entre o positivo e o negativo será uma das formas de classificação mais básicas usadas pela espécie humana. O problema é que esta classificação, como todas as outras semelhantes, nada nos diz sobre a coisa classificada, mas sobre aquele que atribui a classificação, que projecta, ao classificar, os seus desejos e os seus temores. Estamos ainda no domínio do pensamento mágico. A vida espiritual começa onde cessa a necessidade de classificar, onde acaba a magia. O positivo e o negativo são grilhões que prendem o espírito à ilusão, ilusão que ele próprio projecta sobre o mundo.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (574)

 
Victor Vasarely - Quasar (1966)


574. quase um quasar

quase um quasar
a luz vinda
do negro negro
inominável
incendeia-se de azul
nas partículas
frias dos teus
olhos
nas trevas tocadas
trocadas
na alegria
negra da noite

(10/08/2016)

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O jogador secreto

René Magritte - O jogador secreto (1927)

Confesso, sempre tive o secreto prazer de jogar. Porquê o segredo? Está enganada. Por que haveria de ter vergonha de competir? Não, não, também não é verdade que tema ser tomado por criança presa à diversão. Todos estes anos ao meu lado e ainda não me conhece. Não é a vitória, nem o risco, nem o divertimento. É amor, jogo por o amor à regra, e não há jogo sem uma estrita regra. Sou vítima da mais secreta e vergonhosa das paixões, a paixão por aquilo que limita e oprime.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

A demanda

Salvador Dali - El farmacéutico de Ampurdán que no busca absolutamente nada (1936)

A vida do espírito começa como uma demanda. Alguém sente que perdeu alguma coisa ou que lhe falta algo. Parte, então, em busca daquilo que sente em falta. A demanda arrasta-o e traz com ela o sentimento da perda e da inutilidade. Será que haveria alguma coisa para buscar? Quando descobre que nada havia para demandar, sente, no mais fundo de si, a alegria de ter encontrado o que procurava.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Da cegueira do amor

Joaquín Mir - Amores cegos (1900)

A paixão amorosa é vista, muitas vezes, como o resultado de uma cegueira. De certa maneira, é assim. Contudo essa cegueira deve ser compreendida como aquela cegueira que atinge certos profetas, para que eles possam ver mais longe e mais fundo. A cegueira do apaixonado permite-lhe ver algo que só perante ele se manifesta e que só o seu estado de cegueira lhe permite ver. A paixão é um convite a ver outra realidade e a viver de uma outra maneira. A impotência dos homens para tal, a sua incapacidade em persistir no caminho que diante deles, por instantes, se abriu, transforma tudo numa ilusão que o tempo acabará por destruir. E de cego de amor transforma-se em cego real, isto é, vê aquilo que todos vêem.

sábado, 10 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (573)


Franz Marc - Blue Horse with Rainbow (1913)

573. um cavalo azul

um cavalo azul
voa num céu
de cristal
relincha
na sombra
irisada do arco-
-íris
e
solto galopa
a norte da noite


(09/08/2016)

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (296)

Paul Caponigro - Monument Valley, Utah (1970)

a rocha cinzenta
desdobra-se em mil portas
segredos de pedra

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Do caminho

Max Klinger - O caminho

Toma-se com frequência o caminho como metáfora indicativa de um percurso de vida, de uma aventura espiritual, de uma demanda da verdade. No entanto, dever-se-ia ser mais sensível à ideia heideggeriana de caminhos que levam a lado nenhum. Esse é o verdadeiro caminho. Não há lado algum aonde ir, nem lado algum de onde sair, pois o lugar de partida e o sítio de chegada são um e o mesmo. 

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

A escolha

Hermen Anglada-Camarasa - As opalas (1904)

Não sei se as sonhei. Há muito que não distingo sonho e realidade. Não é esta o fruto do nosso desejo ou do nosso temor? Sentava-me na varanda e olhava a floresta. Apaziguava-me. Uma noite distingui algumas configurações luminosas, uma luz leitosa com reflexos irisados. O fenómeno repetia-se em noites de lua-nova. Inquieto, decidi ver o que era. Quando me aproximei, descobri seis estátuas femininas. Não soube identificar o material. O coração tremeu ao não perceber de onde vinha a luz que as iluminava. Quando toquei na primeira, ela disse: os teus olhos iluminaram-nos, agora os teus dedos dão-me vida. Escolheste-me.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

A metáfora da criação

Frantisek Kupka - Criação (1911-20)

Normalmente, vê-se a criação do mundo por Deus, narrada no Génesis bíblico, ou como um facto histórico (o fundamentalismo cristão ou outro), ou como uma alegoria onde se transmite, por imagens, o trabalho de Deus na criação do mundo (o cristianismo aberto à modernidade), ou como uma mera ilusão proveniente da superstição (o ateísmo). A criação pode ser vista, porém, como uma metáfora, uma metáfora utilizada para designar algo que não tem nome. 

E o que não tem nome, neste caso, é o mistério da emergência do mundo. A metáfora não diz nada acerca do conteúdo desse mistério. No entanto, ela dá-nos uma indicação. Indica-nos que esse mistério dá que pensar ao homem. Ela não nos diz nada do que se passou, mas diz-nos que isso nos interessa radicalmente. A criação, enquanto metáfora, aponta menos para uma hipotética actividade de Deus no passado e mais para uma preocupação humana sempre aberta ao futuro. A meditação dessa metáfora não é apenas estética. É também existencial. Compromete aquele que medita nela não com uma fé mas com a própria existência. Daí a sua força.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (572)

Franz Marc - Animal in Landscape (Painting with Bulls II) (1914)

572. touros terríveis

touros terríveis
touros
pintam a paisagem
de sangue
e ocre
e no ócio
do seu furor
desenham
um vitral de vidro
uma salina de sal

(09/08/2016)

domingo, 4 de setembro de 2016

Do obstáculo

Béla Uitz - Luta (1922)

Na vida material dos homens, a ideia de luta tem um lugar central. Está associada ao esforço com que alguém pretende realizar um projecto, à sua capacidade de ultrapassar obstáculos e de imprimir, no mundo, a sua impressão. A capacidade para lutar é vista como virtuosa. Na vida espiritual, porém, a necessidade de lutar é ainda o sintoma de um excesso de materialidade e de uma visão de si oposto ao outro e ao mundo. Não se trata de vencer obstáculos, mas de compreender que não existe nem aquele que quer ultrapassar o obstáculo nem o obstáculo a ser ultrapassado. Essa cisão é ainda uma ilusão da vida material. Obstáculo e obstaculizado são uma e a mesma coisa. Não há impressão alguma a imprimir no mundo.

sábado, 3 de setembro de 2016

O regresso

Giorgio de Chirico - O enigma da chegada da tarde (1912)

Sentia-se um velho Orfeu. Não, não era o luto pela morte de qualquer Eurídice. Nem sequer a consciência da sua fraqueza ao não ser capaz de suster a tentação do olhar. Quando a tarde caía, era impelido, como Orfeu o fora para a lira, a sentar-se ao piano. Deixava as mãos perderem-se nas teclas. Improvisava. Na música, doía-lhe o enigma do entardecer. Os sons tornavam-se água, um oceano sem fim. Então, ele entrava no grande navio. Fugia. Fugia do mistério do poente, do enigma do entardecer. O outro lado do mar esperava-o. Chegada a noite, exultava, o exílio terminara. Era a sua pátria.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (295)

Piet Mondrian - Sheepfold in the Evening (1906)

no campo anoitece
as ovelhas no redil
sombra sobre sombra

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (571)

Jackson Pollock - Convergence (1952)

571. moléculas movem-se

moléculas convergem
num oceano
de mágoa
giram e rodam
rodopiam
traçam
um lago
de sombra
no
                silêncio
e na
                solidão

(05/08/2016)

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Inquietações e incertezas

Luis Prades - Ángeles inquietantes (1964)

A inquietação não é apenas um mero estado psicológico. Ela é também uma experiência existencial. A inquietação traduz uma crença profunda alicerçada na certeza de que o mundo é tal como estamos habituados. Quando a realidade se torna incerta, a incerteza traduz-se na inquietação. Deparam-se então dois caminhos ao viandante. O primeiro liga-se à tentativa de recuperar o mundo da certeza, para que a crença não se desfaça e a inquietação desapareça. Este é um caminho reactivo. O segundo caminho funda-se na aceitação da incerteza, no fazer dela a estrada por onde se vai, e aceita que a nossa crença na estabilidade do mundo é uma projecção da nossa necessidade de segurança e nada tem a ver com a realidade. Este é o caminho do espírito, que aprende que o vento soprar onde quer.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Eclipses e conversões

José María Yturralde - Eclipse (1996)

E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. (João 1:5)

O acto da conversão está longe de pertencer apenas ao domínio da religião. Ele é inerente a toda a vida espiritual do homem. Thomas S. Kuhn vê a transição, na ciência, de uma matriz disciplinar a outra como uma conversão, pela qual o cientista passa a olhar a realidade e a ciência de uma outra perspectiva. Encontramos isso também na arte e até em fenómenos mais prosaicos como a política. A conversão é sempre a adopção de um outro ponto de vista. Ela não é, contudo, apenas isso. É também o desfazer de um eclipse, a remoção de um objecto opaco que oculta a fonte luminosa. Não se trata apenas de olhar de outra maneira. A própria luz também é outra. Toda a vida espiritual do homem começa - e continua - com o enfrentar de um eclipse, um eclipse onde um ego obscurece a luz que vem do ipse, de si mesmo.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Encontro no bosque

Carlos Morago - Arboleda (1998)

Os bosques são lugares românticos, tem razão. O sussurro do vento no arvoredo, o rumor da água, o jogo infinito de luzes e sombras. Há muito, porém, que não entro em nenhum. Tenho um ar assombrado? Talvez. O que vou contar guarde-o para si. Numa tarde de Junho entrei num bosque. A certa altura, deu-me sono. Sentei-me e encostei-me a um velho carvalho. Quando acordei vi diante de mim alguém. Era muito velho. À minha volta, as árvores tinham desaparecido, o rio secara, apenas uma erva seca e rala... e aquele velho. Olhava-me. Reconheci-o. Não voltarei a entrar num bosque. Não quero tornar a encontrar-me.

domingo, 28 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (570)

Eusebio Sempere - Ritmo lineal (1953)

570. um ritmo roxo

um ritmo roxo
quasi linear
floresce
no centro da linha
um ponto
uma flor
castelos de cartas
que se abrem
e desabam
desabam
no silêncio da cor

(05/08/2016)