quinta-feira, 11 de junho de 2015

O cavaleiro errante

Oskar Kokoschka - Cavaleiro errante (1915)

Tinha chegado ao fim da linha, pensou. Ouvia o correr das águas do rio e, nessas águas, via desfilar, cena atrás de cena, os episódios da sua errância. Quantas metas falhadas? Quantas oportunidades desperdiçadas? Quantos caminhos andados por engano? Não, não era um cavaleiro andante coroado de vitórias em mil combates decisivos. Era apenas um homem que caminhara de erro em erro até à noite em que tudo se desfaz. Fechou os olhos e entregou-se ao rumor das águas. Primeiro, pareceu-lhe um alvoroço confuso. Depois, a confusão ganhou em sentido no seu espírito e o rio caminha vasussurrante na planície. Por fim, quando a aurora despontou, era apenas um débil murmúrio que ecoava no seu coração. Levantou-se e naquele instante, pela primeira vez, soube o caminho a seguir e aquilo que o esperava.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

O ponto originário

Frantisek Kupka - À volta de um ponto (1911-12)

A trama da vida dos homens é tecida à volta de um ponto. É o ponto originário, secreto, oculto na profundidade do ser. Nesse ponto, falou a voz que nos convocou à vida. E é nesse ponto original e singular que continua a bradar essa mesma voz. Muitas vezes, é como se estivesse no deserto. Outras, porém, ela acorda o viandante que há em cada ser humano e põe-no a caminho.

terça-feira, 9 de junho de 2015

A sacralidade do pão

Nicolas de Staël - O Pão (1955)

A natureza sagrada do pão não deriva da Última Ceia e da instituição da Eucaristia por Cristo. Diria antes que essa instituição foi feita porque o pão era já um símbolo sagrado. Nele se conjugava a vitória da humanidade sobre a dura necessidade natural e a descoberta de uma liberdade que eleva o homem acima da natureza. O pão era, na verdade, sentido como um verdadeiro milagre, uma dádiva, um dom, o qual não poderia ser a criação de um mero animal mesmo racional. A racionalidade era sentida como a capacidade de acolher o dom e não de o criar por si mesmo.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Algum lugar

Juan José Aquerreta - Algún lugar (1991)

Quando dizemos "algum lugar" não estamos conscientes do papel que, ao nível existencial, a indefinição introduz. O viandante parte sempre deste lugar, de um lugar de fronteiras claras e definidas, de um território geograficamente constituído. A viagem é, ao contrário, um processo de continua indefinição dos lugares, de desterritorialização. A indefinição, todavia, não é o fim último que orienta o viandante. Ela é apenas uma mediação, na qual a fixidez da existência perde os seus contornos e começa a abrir-se. Abrir-se para quê? Para o lado nenhum, para o nenhures, para a ausência de território, de fronteiras e de determinações. A viagem leva o homem do determinado para a mais pura indeterminação.

domingo, 7 de junho de 2015

Os objectos do quotidiano

Giorgio Morandi - Natureza-morta (1937)

Nos objectos do quotidiano não se reflecte apenas a necessidade que conduz o homem à sua produção. Também aí se espelham as figuras do espírito. Estas figuras não são meros conceitos estruturados pelo talento do designer. São presenças reais de um mundo não material que, ao tomar forma, ganha corpo e torna-se símbolo da dupla natureza humana: corpo e espírito. Também nos objectos do quotidiano habitam os deuses.

sábado, 6 de junho de 2015

Haikai do Viandante (235)

JCM - Ruínas (2008)

ruínas são runas
traço escrito pelo tempo
são a voz do vento

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Poemas do Viandante (510)

Antón Goyanes - Sombra (1990)

510. volto ao vento da infância

volto ao vento da infância
à primeira casa

a velha porta aberta
espera-me ali

entro e sento-me em silêncio
no frio do passado

e uma sombra devastada
cresce para mim

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Uma visão panorâmica

Salvador Dali - Arquitectura surrealista (1932)

Se olharmos de longe o percurso da viagem que fazemos - da vida que vivemos - rapidamente descobrimos, nas linhas que a compõem, uma estranha arquitectura, a resolução existencial de um projecto de que, ao mesmo tempo, somos os autores e os operários. Projecto esse, contudo, que só descobrimos depois de realizado, do qual só tomamos consciência quando nos afastamos dele para obter uma visão panorâmica.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

A luz do crepúsculo

Georges Rouault - Barcos de pescadores ao sol poente (1939)

Não, ele não era pescador. Sempre que podia, porém, embarcava com os homens do mar para ver chegar a noite. Enquanto os homens se entregavam à faina, ele contemplava o sol. Sentia uma vertigem quando o astro começava desaparecer na linha do horizonte. A noite aproximava-se, mas uma estranha luz, a luz do crepúsculo, permanecia viva. Ele olhava para ela e sentia-a, naquela hora, como uma promessa. Também ele era um homem crepuscular. Acreditava secretamente, contudo, na promessa. A noite viria, mas a luz triunfaria e ele descobria a verdade que se ocultava no crepúsculo que o habitava, no crepúsculo que ele própria sentia ser.

terça-feira, 2 de junho de 2015

O centro e a periferia

Egon Schiele - Subúrbio I (1914)

O centro atrai os homens pois é ali que reside a possibilidade de reconhecimento e, por isso mesmo, a possibilidade de fama e de glória. O centro é o dispositivo - a grande máquina - que sustenta a vaidade dos homens, que produz o seu fascínio consigo mesmos, que alimenta a grande fábrica do narcisismo. O viandante deve aprender o caminho da periferia, deve amar o subúrbio, deve caminhar para desolação. Não apenas porque abandonou qualquer ilusão sobre si mesmo, mas porque descobriu que é no irrelevante, no desprezado, no subúrbio que fala a voz que o chama, que é aí, onde o reconhecimento foi suspenso, que ele é reconhecido naquilo que é. É aí o verdadeiro centro do mundo.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

O mistério da encarnação

Umberto Boccioni - Dynamism of a Cyclist (1913)

O mundo contemporâneo preocupou-se, essencialmente, com o dinamismo dos corpos. Melhor: interessou-se, em primeiro lugar, com a dinâmica dos mecanismos, pois o corpo, no século XVII, foi reduzido a uma máquina e, desde então para cá, nunca o deixou de ser, uma máquina cada vez mais eficiente e atraente, mas não mais do que uma máquina. Para penetrarmos no mistério - no sagrado mistério, diria - do corpo é preciso, em primeiro lugar, suspender o fascínio pelo seu dinamismo mecânico. Depois há que ousar e perceber que o corpo não é outra coisa se não espírito que ganha carne, espírito encarnado. E aqui reside o mistério, o mistério da encarnação.

domingo, 31 de maio de 2015

A dissolução da fronteira

Isidre Nonell Monturiol - Repouso (1902)

Sentou-se e encerrou-se dentro de si. Exauridas as forças, não é a energia que pretende recuperar. Isso seria desviar-se do caminho, esquecer-se do que a levou ali. Quer perder-se, abandonar-se, liquidar toda a resistência que, em si, a opõe à luz do espírito, ao chamamento da voz que, ao pronunciar o seu nome, a convocou para a vida. Repousa do mundo para que a fronteira se dissolva e tudo ganhe sentido.

sábado, 30 de maio de 2015

O grande rio do silêncio

JCM - Mitologias (os afluentes do silêncio) (2014)

O grande rio do silêncio, assim começo a minha crónica. Olho-o, sentado na varanda, e vejo frases, palavras, sílabas, as pequenas letras a caminharem para ele. Nascem impetuosas, mas logo se moderam e fazem do ritmo um exercício de abstinência, para desaguarem puras e belas no rio que as conduzirá ao oceano. Aí, livres do peso vocálico, abrem-se para que os deuses as tomem de volta, as enriqueçam de segredos e enigmas, e as devolvam plenas aos homens, para bênção ou desdita destes.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Haikai do Viandante (234)

JCM - Mitologias (2014)

sob o nevoeiro
esconde-se a luz do sol
eis o dia primeiro

quinta-feira, 28 de maio de 2015

O seu caminho

JCM - Mitologias (2014)

Foi o desejo de solidão que o levou ao mar. A solidão, porém, era apenas um sintoma, talvez um sinal daquilo que chamava por ele. Sentado no pequeno veleiro, olhava o oceano e deixava que o silêncio que habita o bramir das águas chegasse até ele. Tarde ou cedo, meditava, ouviria a voz que o chamou e saberia o que ela queria dele. E assim, durante todos os dias que viveu, levantou-se, embarcou e navegou de manhã à noite, sempre com a esperança de ouvir aquilo que que dele a voz queria ao trazê-lo à vida. No momento da morte percebeu, porém, que a voz falara sempre dentro dele e que o seu caminho era apenas ir e vir nas águas infinitas do oceano.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Poemas do Viandante (509)

Georgia O'keeffe - Black Cross, New Mexico (1929)

509. No centro da escuridão

No centro da escuridão
desenho a luz.

E com ela ilumino
as minhas palavras.

Sílabas incendiadas
no meio da tormenta.

Letras de água e fogo,
uma flor na cruz.

terça-feira, 26 de maio de 2015

Estar na margem

Henri Rousseau - Nas margens do Oise (1908)

Estar na margem não é ser marginal. Estar na margem não é ser excluído. A margem não é um destino terrível para todos os seres humanos, só para aqueles que sonham estar no centro do palco. Viandante é aquele que descobriu que não há diferença entre a margem e o centro. Para ele, todos os centros são periferias e todas as margens, o centro do ser.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

A leve alteração

Joan Hernández Pijoan - Cinco espaços dourados (1976)

As lentas e imperceptíveis metamorfoses do espaço exigem um espírito aberto para a diferença. O que significa isto? Significa que a vida espiritual não é uma abstracção mas um exercício contínuo de abertura e atenção ao diferente. Não apenas à diferença ostensiva que nos fere o olhar, mas também à leve gradação que simboliza a liberdade do espírito. O divino não se manifesta só na radical alteridade. Também na leve alteração habitam os deuses.

domingo, 24 de maio de 2015

Um naufrágio

Henri Edmond Delacroix Cross - O naufrágio (1907)

Um súbito pensamento levou-o para o mar, embarcou incauto para o grande naufrágio, para o lugar onde a morte e a ressurreição marcaram encontro, o decisivo encontro da sua vida. Não sabia o que acontecera, mas mergulhara uma e outra vez nas águas tempestuosas do oceano. A primeira, trémulo de medo, sentiu-se envolvido num turbilhão que parecia não acabar. A segunda, como se submergisse na tranquilidade benévola do regaço infinito de Deus. Olhou-O, na face. Morreria? Ao emergir, descobriu-se ressurrecto. Sabia agora o grande segredo da vida e entregava-se, sem resistência, à dança da morte. De súbito, uma mão aproximou-se e puxou-o das águas. Ouviu vozes e tudo em si se desvaneceu. Foi o que ele me disse. 

sábado, 23 de maio de 2015

Haikai do Viandante (233)

JCM - Colour Dreams (2014)

irrompe a lua
no frio céu azul da tarde
o deus que te aguarda

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Uma pequena luz

JCM - Black & White Dreams, Valladolid (2006)

A luz afunda-se no oceano e deixa a noite crescer dentro da cidade. Então ele anoitece pelas praças e vielas, espera, como uma promessa, o regresso daquilo que o ilumina, o chama para a vida, o visita mesmo se dorme. Quando a noite é mais negra, ainda uma pequena luz bruxuleante fulgura no fundo do seu coração. Abre os olhos, e ela ali está. Despida. Então ele soletra-lhe o nome e estende-lhe a mão, sente a pele deslizar-lhe sob os dedos. Deseja-a. Ela sorri. Todo o seu corpo freme e o olhar cintila. É a luz que o ilumina, a voz que o ergue da morte e o ressuscita para a eternidade de cada dia. Desperto, descobre-se só, mas a luz arde ainda num lugar secreto, no fundo silencioso da caverna da sua consciência.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Aprender a quietude

JCM - Time on space (2008)

Podemos pensar que a viagem espiritual é como um mergulho nas águas inóspitas do oceano. Isso, porém, é uma ilusão fundada no voluntarismo que tomou conta da nossa cultura. Na verdade, a viagem espiritual é antes um aprender a estar quieto e silencioso, um aprender a deixar que o espírito se derrame sobre si, como as águas do oceano se derramam sobre as velhas rochas, para que, lentamente, uma vida nova cubra a pedra rude com um verde belo e vigoroso.  

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Poemas do Viandante (508)

Jean François Millet - Nu reclinado

508. a noite em que tudo dorme

A noite em que tudo dorme
desce nos teus dedos.

Vem vagarosa e sublime
poisar sobre mim.

E eu oiço uma canção breve
na luz do teu rosto.

Assim embalado canto
e logo adormeço.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Um terrível fascínio

Daniel Vázquez Díaz - A fábrica adormecida (1920)

O mundo como fábrica. Nesta metáfora nós encontramos a apoteose de uma civilização baseada na pura acção. Melhor, numa acção degradada já em mera fabricação de artefactos para serem dados ao consumo. O acto de fabricar exerce sobre os homens um terrível fascínio. E é nesse fascínio que o homem aliena a sua natureza contemplativa, onde toda a acção é suspensa e o homem entrega-se à escuta da Voz que chamou por ele.

domingo, 17 de maio de 2015

Sobre vestígios

JCM - Vestígios (2014)

O homem pode encarar a vida de diversas formas. Há aqueles que julgam que o mais importante é deixar vestígios no mundo, como se este fosse o seu império. Outros há, contudo, que, a dado momento, descobrem a irrelevância do seu próprio vestígio. Tarde ou cedo ele será definitivamente apagado e esquecido. Resta-lhes preocupar-se com o vestígio que a vida no mundo deixa neles, aquilo em que ela os ajudou a tornar-se.

sábado, 16 de maio de 2015

O que se pode tornar visível

Romolo Romani - Imagem (1908)

Estamos de tal maneira habituados às nossas imagens precisas e nítidas que nunca nos questionamos se, nos primeiros tempos de vida, eram estas imagens precisas e nítidas que se apresentavam perante os nossos olhos. Muito provavelmente não. Uma dura mas inconsciente aprendizagem conduziu-nos à focalização do olhar. Vemos aquilo que aprendemos a ver. E se para lá destas imagens, que agora nos são visíveis, outras, talvez mais nítidas e precisas, estejam ocultas, estejam perdidas na invisibilidade a que nos condenamos pelo uso habitual dos sentidos? Esse é o trabalho do viandante, viajar de imagem em imagem, procurar no invisível aquilo que se pode tornar visível.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Raízes na terra

JCM - Símbolos, signos e sinais. Lisboa, Jardim Botânico, (2007)

Como a árvore, também o viandante deve lançar as suas raízes na terra. Só aquele que tem raízes fundas pode suportar as intempéries que o vento - aquele vento que sopra onde quer - traz consigo. Sem raízes na terra, como pode o homem olhar para o alto, contemplar os céus, e não ser arrastado na queda? Só aquele que desce pode encontrar a seiva que o fará subir.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Haikai do Viandante (232)

Nandor Mikola - In the Morning (1987)

desce sobre mim
a solidão da manhã
vida e luz sem fim

quarta-feira, 13 de maio de 2015

A força do amanhecer

Max Pechstein - Dawn (1911)

O amanhecer é frequentemente usado - até à usura - para simbolizar o começo de algo novo. A persistência da sua força simbólica não deriva, contudo, da analogia entre o começo do novo dia e aquilo que na vida dos homens é tomado como novo. A força simbólica do amanhecer é muito mais profunda pois reside nas forças poderosas da natureza que se manifestam nessa hora e no impacto que essas forças têm sobre o corpo, a alma e o espírito dos homens.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Convite à passagem

JCM - Muros (Lugo), 2007

Aquilo que detém o corpo é impotente para deter o espírito. O obstáculo não é um limite mas uma provação que solicita a que o espírito, escorado na sua pobreza e na abertura ao que está para além dele, o ultrapasse e se ultrapasse. O muro não é o fim da viagem mas um convite à passagem.