quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Poemas do Viandante (467)

Ferdinand Hodler - Desnudo tumbado con flor (1888)

467. a flor luminosa solta-se

a flor luminosa solta-se
o tempo a perdeu

mas levada pelo vento
poisa na tua mão

e tudo se transfigura
na noite de breu

lua e trevas são agora
sol no coração

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Cegos e guias de cegos

JCM - Distopia (o olho do panóptico) (2014)

Deixai-os. São cegos e guias de cegos. Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala. (Mateus 15:14)

É no contexto de uma discussão sobre o que é a tradição que surge esta resposta. Por que razão se diz que se está perante cegos e guias de cegos? Porque a tradição espiritual é reduzida à observância ritualista sem relação com a vida verdadeira. É a ausência de contacto com a vida do espírito que torna os homens cegos. E aqueles que os guiam são ainda cegos, talvez mais cegos, pois vendo não vêem a vida. Cuidam apenas de um sistema de observação - que hoje diríamos distópico - que permite controlar a observação exterior das regras rituais sem tocar naquilo que vivifica o homem, e lhe dá a possibilidade de passar da cegueira à visão.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Por que duvidaste?

Norman Narotzky - All life is there (1984)

E logo Jesus, estendendo a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste? (Mateus 14:31)

Esta pergunta - por que duvidaste? - fica sem resposta. Pedro não disse nada. Este silêncio, porém, é eloquente e dá que pensar. Situa-se no encontro conflitual entre fé e dúvida. Qual o significado do silêncio de Pedro? A finitude da sua humanidade indica que esse conflito é constitutivo do homem. Enquanto ser natural dotado de razão, o homem está cindido entre a crença absoluta e a dúvida. Pedro não respondeu pois a sua natureza era a resposta. Duvidar faz parte da condição humana. Para que apenas a fé mais pura brilhasse, seria necessário que Pedro, sendo humano, fosse mais do que um homem. E foi isto o que, por várias vezes e em diferentes circunstâncias, lhe foi pedido.

domingo, 3 de agosto de 2014

A cura dos enfermos

Pablo Picasso - La malade

E, Jesus, saindo, viu uma grande multidão, e possuído de íntima compaixão para com ela, curou os seus enfermos. (Mateus 14,14)

Duas perplexidades surgem ao leitor perante este texto de Mateus. A primeira leva-o a perguntar: por que razão uma grande multidão leva ao desencadear da compaixão, de uma íntima compaixão? A segunda diz respeito aos enfermos que nela estavam e que foram curados. Quem são eles, esses enfermos? A primeira perplexidade encontra resposta no versículo anterior. Essa grande multidão é composta por aqueles que O seguiram desde as cidades. A compaixão denota a compreensão do esforço - da ascese - que representa seguir o Mestre. Segui-Lo emerge, deste modo, como um processo contra-natura, um exercício que exige sacrifício. Mas quem são os enfermos? São aqueles que, mesmo ao segui-Lo, caem na errância, perdem o alvo. Fazem o caminho mas não sabem o sentido desse caminho. Reproduzem o gesto ritual, mas este é já destituído de verdadeira vida. Por isso é dito que estão doentes. São esses os enfermos que a compaixão leva à cura, isto é, à revelação do sentido do caminho que estão a fazer.

sábado, 2 de agosto de 2014

Folhas mortas

JCM - Folhas mortas (2014)

Exaustas, as folhas entregam-se à morte. Não porque a morte tenha triunfado, mas para que a vida volte de novo e, na exuberância e frescura do verde, se torne símbolo que oriente o viandante no caminho. Sempre que este se depara com folhas mortas é a vida plena e triunfante que espera.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

O verdor da vida

JCM - Viriditas (2007)

Terra viriditatem sudat. (Hildegard von Bingen, Symphonia armonie celestium revelationum)

Viriditas pode ser traduzido por verdor, a qualidade daquilo que é verde. O termo designa um dos conceitos centrais da mística de Hildegard von Bingen. Designa a qualidade daquilo que é saudável e, por isso, é verde, fresco. Esta saúde refere-se tanto ao domínio físico como ao espiritual. Pode ser entendida como um equilíbrio, mas um equilíbrio que resulta da escuta da Palavra, como se a vida, no verdor que a mostra como saudável, apenas do Logos pudesse provir.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

A maior das quimeras

Max Ernst - Quimera (1925)

Não há gente mais dada a quimeras do que aquela que se diz realista e apenas interessada na materialidade do mundo. A abertura ao espírito - a vida contemplativa - tem por pressuposto o abandono de toda e qualquer ilusão, seja uma ilusão material, seja uma ilusão dita espiritual. Pois aquele que quiser salvar a sua vida - a maior das quimeras-, perdê-la-á.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Haikai do Viandante (198)

Francis Schanberger - Two Leaves (secret hiding place) (2013)

secreto lugar
onde o teu corpo me espera
na noite ao sonhar

terça-feira, 29 de julho de 2014

Do tempo e da eternidade

JCM - Do tempo e da eternidade (2007)

Água e árvores. A água, claro, é um símbolo da temporalidade, do fluxo do tempo. As árvores, não sendo eternas, podem sem dificuldade simbolizar a eternidade. Se nos deixarmos guiar por esta simbólica talvez possamos penetrar um pouco no mistério da criação daquilo que é temporal. Como as árvores precisam de água para se alimentar, também aquilo que é eterno mergulha as suas raízes no fluxo temporal, alimentando-se do sentido que assim faz nascer.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Do ocaso e da aurora

Jaime Burguillos - Ocaso (1976)

Quando desce a noite, descobrimos a verdade do dia. No ocaso encerra-se a luz. Cercada pela noite, porém, a luz não se desvanece. Respira lentamente e prepara, nas trevas mais densas, o raiar de uma outra e mais decisiva aurora. A viagem continua.

domingo, 27 de julho de 2014

À volta de um ponto

Frantisek Kupka - Alrededor de un punto (1911-12)

Por vezes, o viandante volteia uma e outra e outra vez em torno de um ponto. Sinal de que está perdido? De certa maneira, sim. Fundamentalmente, porém, sinal de que, tomado pela errância, procura já o caminho que o leva ao que chama por ele.

sábado, 26 de julho de 2014

Signo sinal 4. A natureza como palavra

Joseph K. Dixon - A Native American sends smoke signals in Montane (1909) [National Geographic Found]

O homem pode utilizar os elementos da natureza como signos e símbolos, porque toda a natureza é já - no todo e nas partes - signo e símbolo. Através dela, aquilo que está para além da natureza comunica connosco. Saibamos nós ver e escutar O que nela se manifesta e se torna palavra.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Poemas do Viandante (466)

JCM - Entrada (2014)

466. quero-te ver nesta porta

quero-te ver nesta porta
à luz que se esvai

aguardo-te no segredo
que de ti descai

desejo-te nessa hora
vem e logo vai

quinta-feira, 24 de julho de 2014

A sombra sobre a palavra

Rembrandt - Parábola do homem rico (1627)

Por que lhe falas em parábolas? (...) Por isso lhes falo por parábolas; porque eles, vendo, não vêem; e, ouvindo, não ouvem nem compreendem. (Mateus, 13:10 e 13)

A parábola e a alegoria são formas indirectas de tornar acessível um certo conteúdo discursivo excessivamente luminoso. E o som e a luz são de tal modo fortes que os olhos e os ouvidos dos homens não os suportam. Falar por parábolas - ou através de alegorias - é projectar uma certa sombra sobre a palavra. Não para que ela se oculte, mas para que se revele segundo a possibilidade de escuta daqueles que por ela são atingidos.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Um traço de luz

JCM - Origem da Vida (2014)

Um traço de luz irrompe nas trevas e, lentamente, dissemina-se na planície da noite. Onde tudo parece ausência, lentos grãos de vida brotam da escuridão. Sementes carregadas de esperança anunciam a via, a verdade e a vida.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Haikai do Viandante (197)

JCM - Caminhos (2014)

sendas de verão
rasgam a pele da terra
abrem-se na mão

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Perder-se no infinito

Lennart Olson - Cangas de Onis III (1991)

Onde vão dar os caminhos que levam a lado nenhum? Esse nenhures é, em primeiro lugar, o sinal da finitude do viandante. Seja qual for o sítio onde se encontre ou para onde se dirija, devido à sua finitude, o viandante está ou estará em lado nenhum. Esta é, porém, uma visão nascida da fragilidade de um ser finito. Nenhures é, na verdade, o signo do infinito, daquilo que não tem fim. Toda a viagem tem como finalidade que o ser finito se perca no não finito, no infinito que, sem limites, o aguarda.

domingo, 20 de julho de 2014

Na imensidão do mar

JCM - Devaneio (2014)

Como um barco solitário na imensidão do mar, também o viandante se dirige a um porto. Quem olha de longe julga que ele vai imerso num devaneio desmedido, mas ele sabe que aquela é a realidade. A mais autêntica realidade, pois é a sua, aquela a que apenas ele pode, na imensidão da vida, aceder. 

sábado, 19 de julho de 2014

Poemas do Viandante (465)

Susan Burnstine - Transit

465. espero-te neste lado

espero-te neste lado
da velha fronteira

vem sem medo nem cuidado
na noite primeira

para que o sol incendiado
te faça fogueira

sexta-feira, 18 de julho de 2014

A frágil bondade

Etienne Cabran - Almost fragile

A viagem espiritual não é um exercício em que o prazer, a liberdade ou  mesmo salvação do viandante sejam o motivo e a finalidade do pôr-se a caminho. O que está sempre em jogo é a protecção daquilo que é frágil, a começar, para usar um título feliz de Martha Nussbaum, a fragilidade da bondade. Não há, no mundo dos homens, nada mais frágil do que a bondade. Risível, vilipendiada, desprezada, abandonada, a bondade, aquilo que tem origem no supremo Bem, chama cada homem a protegê-la na sua fragilidade.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Puras silhuetas

Man Ray - Silhouette of Lee Miller, Paris (1930)

Entre as trevas que se temem e a luz que não se suporta, repousamos na sombra como quem encontra o compromisso certo que permite a continuação da vida. E tudo o que somos, pensamos, fazemos e sofremos vem marcado por esta condição sombria, por esta mistura que nos torna em puras silhuetas.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

O imperativo musical

Ferdinand Schmutzer - Vienna (1901)

Escondestes estas verdades aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos. (Mateus, 11:27)

O que solicita a música ao espírito do homem? Que ele diminua, que se torne pequenino. Que o homem se torne pobre em espírito! Eis o imperativo musical. A música, como se fosse a emanação de um outro mundo, não se dirige à razão, mas ao que está acima dela e quer tornar-se o próprio do homem, a sua propriedade, a sua natureza.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Haikai do Viandante (196)

 

no escuro ramal
nas velhas folhas sombrias
a luz é sinal

segunda-feira, 14 de julho de 2014

A via do sonho

W. Eugene Smith - Street of Dreams. Pittsburgh, Pennsylvania (1955)

Pensa-se muitas vezes a vida do espírito como destituída de ligação ao real. Não seria mais do que um longo devaneio pela rua dos sonhos, um exercício onírico de fuga ao trágico da existência ou uma incapacidade de afirmação da vontade de poder. A verdade, porém, é que a vida do espírito nasce da atenção ao trágico da existência e do abandono de todos os sonhos que a  vontade de poder faz nascer no homem. O caminho espiritual nasce onde o delírio onírico acaba.

domingo, 13 de julho de 2014

Poemas do Viandante (464)

Serge de Sazo - Paris (1960)

464. eis as trevas que me assombram

eis as trevas que me assombram
no meio da cidade

entre elas fantasmas dançam
sem luz nem idade

velhas imagens que cantam
ao som da verdade

sábado, 12 de julho de 2014

Razão de ser

Fred Stein - Fountain, Paris (1935)

O olhar fascinado por uma fonte, pelo fluxo de água vinda não se sabe de onde, é o sinal de que um mistério toca, naquele momento, o espírito dos homens. Não é apenas a simbolização do nascimento que nos espanta devido ao segredo que habita todas as origens. É porque ali, na imagem de uma fonte, se encontra aquilo que nos motiva, como se o voltar sempre e sempre à origem fosse a nossa razão de ser.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Na solidão da paisagem


Na paisagem escarpada, no território acidentado, encontra o viandante o difícil caminho que o espera. Por vezes, chama-o a luz; outras, é o segredo da terra que o aguarda. Entre a luz e as trevas, terá de abrir a via, aquela que apenas ele, na solidão da paisagem, poderá trilhar.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Poemas do Viandante (463)

Jean Dieuzaide - Lisbon (1954)

463. mistério de sombra e cal

mistério de sombra e cal
que a tudo povoa

mar e água restos de sal
neste sol que voa

símbolo signo sinal
a luz de lisboa

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Espelho de água

Imogen Cunningham - Eiko’s Hands (1971)

Na água pura reflecte-se, como num espelho, a leveza das mãos, o ócio que nelas nasce e o trabalho que delas se espera. Nesse espelho de água inscreve-se o caminho que aguarda o viandante, um caminho secreto e transparente, fluido e sólido. Assim se apresenta o espírito quando chama o homem.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Da natureza da esperança

Bill Perlmutter - Nazaré, Portugal (1956)

Há sempre esse momento de espera, uma suspensão para que os olhos se abram para a desmedida do horizonte e tracem novas rotas ou encontrem aquilo que, tão esperançosamente, aguardam. A esperança não é outras coisa senão o olhar que se projecta para o caminho que nos solicita ou para aquilo que nos aguarda.