quinta-feira, 12 de junho de 2014

Haikai do Viandante (192)

Bert Hardy - Portuguese rice harvest (s/d)

esta nostalgia
que cresce no sol da tarde
na força da luz

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Dispositivos de cegueira

Loomis Dean - Las Vegas (1955)

Há uma luz que, por natureza, nos cega. Há outra que é pensada e produzida para nos cegar, um dispositivo de cegueira. A luz do espírito - à imagem da luz solar - sempre foi vista como excessiva para o homem, necessitando este de uma intermediação para lidar com ela. Os dispositivos de cegueira, porém, são de outra ordem. Apresentam uma natureza feérica e são suportáveis pelos seres humanos. Por trás deles esconde-se, todavia, um mandamento que nos ordena, sem remissão, que fechemos os olhos e nos entreguemos às trevas exteriores, onde, errantes, nos esquecemos de nós mesmos.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Dos abismos

Mark Tansey - Derrida queries de Man (1990)

Os abismos do pensamento não são abismos. Em última análise, estão protegidos seja pela rede da retórica, seja pela mão da lógica. Por mais interessante que seja um pensamento abissal, ele não deixa de ser um mero pensamento, algo que se retira do abismo que é a vida e ganha autonomia numa razão e no registo gráfico de que se reveste. Só a vida - com o trágico que contém - está perto do abismo. O mais pequeno equívoco e tudo se precipita nesse sem fundo e sem nome a que chamamos morte.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

À espera de ventos propícios

Edvard Munch - Sailboats in the Harbor (1905)

Quantas vezes ficamos longo tempo parados no caminho? Quantas vezes tudo parece sem sentido e sem uma abertura para a viagem? E no entanto o tempo flui, corre e precipita-se, como se alguma coisa o esperasse. Nessas alturas, em que parece especado e sem destino, o homem é apenas como um veleiro ancorado no porto. Espera que os ventos propícios retornem e o levem onde quiserem.

domingo, 8 de junho de 2014

Se a tempestade se aproxima

Léonard Misonne - A Storm Arrives

Há violentas tempestades que, vindas da revolução dos elementos, se abatem sobre o Viandante. Essas, porém, são tempestades benignas. Terríveis são as que nascem no coração do homem. Partem do centro vital, espalham-se por cada recanto do ser, abalando todos os interstícios. Quando se aproximam, o melhor é o Viandante esperá-las em silêncio. Deixar que esse silêncio revele o terrível que se aproxima, para que a verdade então se manifeste.

sábado, 7 de junho de 2014

Poemas do Viandante (459)

László Moholy-Nagy - Nude (entre 1928-1937)

459. corpo perdido no sono

corpo perdido no sono
corpo ao abandono

suave vestígio de sombra
água que me assombra

vida trazida p'lo vento
luz fogo tormento

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Abrir a cozinha

Al Capone’s free soup kitchen, Chicago (1931)

Ali, onde a fome reina, não há lugar para escolher o senhor de quem se é súbdito. A necessidade traz com ela a vassalagem. O que abrir a cozinha terá a multidão à porta. O seu gesto será acolhido como um dom da Graça. São ínvios os caminhos pelos quais o homem faz a sua viagem.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Haikai do Viandante (191)

Juan Rulfo - Nicho de Atlihuetzía

vestígio de vida
irrompe pela a memória
a casa perdida

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Aprender a matizar

Man Ray - Noire et Blanche (1926)

O primeiro dever do viandante é aprender a matizar, deixar de ver  o mundo a preto e branco, exercer a virtude da gradação. Houve homens que julgaram descobrir a santidade na mais dura austeridade, verdadeiros atletas do espírito. A vida espiritual, porém, não é uma maratona, e o extremo rigor é sintoma não de espiritualidade mas de patologia. Pegamos no branco e no preto e depois criamos um mundo de sombras. Noutras alturas, há que tomar apenas o branco e decompô-lo nas múltiplas cores que fazem a vida. A viagem é uma aprendizagem da gradação da luz.

terça-feira, 3 de junho de 2014

O inimigo interno

Grete Stern - Consentimiento (Sueños) (1949)

Não são as ilusões ou o mal que caem sobre nós e, contra a nossa vontade, nos tomam de assalto e subjugam. Somos nós que consentimos e nos entregamos. O inimigo externo tem sempre poderosos aliados dentro de muralhas.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Signo sinal 3. A sombra de uma sombra

Hans Baumgartner - Vor dem Arbeitsamt, Zürich (1935)

Mais que um rasto deixado pela ocultação da luz, a sombra é um sinal, um símbolo. Sinaliza o homem e simboliza a sua condição. Não será, desse modo, a sombra de uma sombra? Na sombra revela-se não apenas aquilo que há de sombrio no homem, mas a sua natureza intermédia, a de não ser nem pura luz nem pura treva. Uma sombra deixado como rasto. Por quem?

domingo, 1 de junho de 2014

Seguir em frente

Leo Matiz - Polígono

Adentrar-se mais e mais no mistério, percorrer a longa galeria onde luz e trevas se sucedem sem fim, seguir em frente sem olhar para trás. Orfeu não suportou a exigência que a vida lhe pôs e perdeu Eurídice. Quem busca uma certificação ganha a certeza da perda. Resta, ao homem, apenas seguir em frente, saber que a luz ofusca e que as trevas são a noite escura da purgação dos equívocos e das ilusões. O resto é o mistério indecifrável.

sábado, 31 de maio de 2014

Poemas do Viandante (458)

Max Dupain - Model Olive Cotton, Cornulla Sandhills, New South Wales, Australia (1937)

458. o véu que te revela

o véu que te revela
no segredo de areia

o sol que se rebela
e logo te incendeia

a boca de canela
fogo que me ateia

sexta-feira, 30 de maio de 2014

De olhos no cume

Hiroshi Hamaya - Winter starts on peak of Mount Fuji. Japan (1962)

Subir pouco a pouco, elevar-se lentamente, colocar os olhos no cume. Que outro símbolo pode dizer melhor a tarefa do homem na vida? Subir ao cimo da montanha, enfrentar os duros caminhos e abrir o coração para a intempérie. Despojar-se do inútil e ascender confiado na acção gratuita do invisível.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Tornar-se cego

Júlio Pomar - Cegos de Madrid (1957)

Não se trata de ser cego, mas de tornar-se cego para ver. Pelos olhos entra o que nos deslumbra, e, deslumbrados, apenas temos olhos para o objecto do deslumbramento. Se nos tornarmos cegos, porém, o campo do visível deixa de ocultar o do invisível, daquilo que se esconde por detrás das coisas que prendem o olhar. Ao tornarmo-nos cegos abre-se a remota possibilidade de aprendermos a olhar.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Uma clareira azul

Fernando Lerín - Sem título (1985)

De súbito, no meio da mais tenebrosa das tempestade, surge uma clareira azul no céu. Os elementos estão em fúria, mas um novo caminho abre-se diante do viandante, chamando-o para o outro lado, oferecendo-lhe a graça de uma passagem.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Haikai do Viandante (190)

Max Dupain - Nude in sunlight (1937)

de nuvens coberto
um sonho de sol e água
sombra no deserto

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Sentimento de incompletude

 Hippolyte Blancard - Sem título (1888)

O que desencadeia em alguém o desejo da viagem, a necessidade de se pôr a caminho e de se tornar viandante? Não é a busca de novas sensações, nem o prazer da aventura ou a ânsia de descobrir novas realidades. Tudo isso são ainda funções que o turismo pode suprir. Aquilo que atira o homem para a viagem do espírito é o sentimento de incompletude. Alguma coisa que é sentida como sendo própria está em falta. O viandante faz-se ao caminho à procura da outra parte de si mesmo.

domingo, 25 de maio de 2014

Ruínas e memória

Lucien Clergue - Ruines, Arles (1954)

Mais que o memorial ou o monumento conservado, as ruínas representam uma espécie de fidelidade mnésica. A memória, na sua faceta restauradora ou comemorativa, tende a idealizar o passado, a despi-lo do tempo. mentindo assim sobre a nossa condição passageira. As ruínas, porém, mostram-nos o passado e o presente, evidenciam o trabalho do tempo. Recordam-nos vivamente que somos pó e ao pó voltaremos.

sábado, 24 de maio de 2014

A estrita necessidade

Hiroshi Hamaya - A girl carrying a baby on her shoulders as she goes to make errands in the snow covered landscape of Aomori. Japan (1955)

Quantas vezes hesitamos no caminho? Quantas vezes o conforto do momento é sinónimo e motivo de adiamento, de procrastinação, de exercício de uma ilusória liberdade. Depois, quando a necessidade se abate sobre o viandante, ele põe-se a caminho e enfrenta as mais terríveis condições. Nesses momentos, descobre que a liberdade nasce ali onde a mais estrita necessidade o impele.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Na terra devastada

Man Ray - Waste Land (1929)

Não fugir. Insistir, permanecer na terra devastada, deixar que ela traga até nós as primeira palavras, que abra a bolsa onde guarda os segredos e nos deixe espreitar. Ali, onde a terra foi devastada e abandonada pelos homens, também é lugar de viagem. Melhor, é sítio de peregrinação e de espera. Espera que a terra fale e a verdade, abençoada pelo silêncio, se revela.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Haikai do Viandante (189)


no mundo vazio 
no infinito deserto
silêncio sombrio

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Atravessar a ponte

Andreas Feininger - Storm clouds hover over the Brooklyn Bridge and the ghostly skyscrapers 
of Manhattan’s financial district in March (1946)

Imaginamos sempre que uma ponte assegura a continuação de um caminho que um obstáculo interrompe. Passar a ponte é retomar a normalidade quebrada. Mas a passagem de uma ponte pode ser uma prova, uma prova tormentosa. Nessa passagem alguma coisa se transforma em nós e quando se chega ao outro lado já se será outro. Não.Uma ponte não assegura uma continuidade, não é uma mera ligação que une o idêntico. Ela é um lugar de ruptura, de descontinuidade, o símbolo que nos chama à transformação, à metanoia.

terça-feira, 20 de maio de 2014

A incerta viagem

Ho Fan - Journey to Uncertainty (1956)

Na inauguração dos tempos modernos, a certeza foi definida como o alvo a atingir pelo pensamento humano. A vida riu-se de tamanha pretensão e tornou tudo mais incerto, como se o caminho que cabe a cada um devesse ser feito na escura noite, onde apenas a fé e a graça podem iluminar o homem na incerta viagem que lhe cabe.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Retorno a casa

Francesca Woodman - From Space2, Providence (1975-76)

Numa primeira fase da vida, os homens lutam pelo conhecimento e afirmam-se separando-se das coisas, assim transformadas em objectos. Posta à distância, a realidade é capturada pelo entendimento do homem. Essa fase, porém, está longe da sabedoria. O viandante começa a trilhar os caminhos da sabedoria quando se perde nas coisas e se despe da pretensão delas se diferenciar. Toda a viagem é um longo processo de retorno a casa.

domingo, 18 de maio de 2014

Poemas do Viandante (457)

Bill Brandt - Hampstead, London (1945)

457. esse corpo que se entrega

esse corpo que se entrega
despido ao olhar

esse amor desatinado
a gritar no peito

esse desespero manso
perdido na face

esse desejo de luz
nunca satisfeito

sábado, 17 de maio de 2014

Exercícios da errância

Deborah Turbeville (desconheço título e data)

Os caminhos que levam a lado nenhum, o estar perdido na floresta, tudo exercícios da errância, desse errar que nos afasta do alvo e nos faz cair da esperança de chegar a bom porto. Esperamos apenas um sinal, talvez a companhia de alguém que, perdido também, possa acompanhar-nos e partilhar connosco a dor da perdição. Talvez nesses instantes Paulo de Tarso tenha razão. Ali onde abunda a perda, superabunde a graça.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

O paraíso perdido

Charles Marville - Stream of Armenonville, Bois de Boulogne (1858-60)

Talvez todos os seres humanos tragam dentro de si uma secreta imagem do paraíso perdido, desse lugar ameno de onde teria sido excluído todo o conflito. Sempre que podem, tentam reproduzi-lo na terra, imaginando lugares onde os homens se possam recolher na natureza e esquecer a dura vida a que estão condenados. Estar num lugar desses é sempre um exercício de rememoração, um activar de uma memória de algo que não vivemos mas que trazemos dentro de nós. Uma memória projectiva.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

De espaço em espaço

Jacinta Gil Roncalés - Hacia otros espacios (1991)

A viagem é sempre o caminhar por outros e para outros espaços. Mas se ficarmos presos ao truísmo, não compreenderemos nunca que viagem e vida nada têm de diferente. Para nos afastarmos da banalidade, o melhor será pensar o espaço como uma metáfora, a qual nos abre para uma outra compreensão dessa viagem. Cada novo espaço significa uma nova forma de experimentar o mundo e de ser. Com a transformação dos espaços é o viajante que se torna outro.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Os poderes da terra e da sombra

Eliot Elisofon - Marlon Brando kneeling before Kim Hunter in 
a Broadway production of Tennessee Williams’s A Streetcar Named Desire (1947)

Olha-se a cena de Marlon Brando e Kim Hunter e percebe-se, de imediato, que o acto de ajoelhar perante outro ser é muito mais que um acto de submissão a um poder fáctico. Pelo contrário, é um acto da mais pura liberdade, aquela que nasce do amor, desse amor que tudo crê, tudo espera, tudo suporta, desse amor que descura o próprio interesse. A grandeza do cristianismo está toda aí. O homem que ajoelha perante Deus fá-lo por amor e não movido pelo medo de uma potência terrível e opressora. E sempre que, numa Igreja, alguém ajoelha por medo, por submissão a um poder terrível, já está longe do cristianismo e caiu na idolatria, ao transformar os poderes da terra e da sombra em divindades a que presta adoração. Só o amor é justificação para que alguém se ponha de joelhos.