domingo, 13 de abril de 2014

A luz do corpo

Imogen Cunningham - Jackie (1928)

Quantas vezes o visível não é mais do que opacidade. A nudez está longe de ser uma ostensiva exibição. Pelo contrário, ela pode ser um exercício de pudor, onde o corpo ao mostrar-se se oculta na luminosidade que dele emana. Inebriado pelo espectáculo e cego pela luz, o espectador perde o mistério que ali se manifesta.

sábado, 12 de abril de 2014

Um leve murmúrio

Ray K. Metzker - City Whispers, Los Angeles (1981)

Penso na ideia de uma cidade dos sussurros e vejo-a na sua razão de ser. Podemos pensar que onde apenas se sussurra, onde só leves murmúrios se fazem ouvir, a vida está de tal forma comprometida pelo medo que ninguém ousa levantar a voz e falar. Há, porém, espaços onde a liberdade não impede a fala, mas que solicitam que aqueles que tomam a palavra o façam em leves murmúrios. São os lugares onde se manifesta uma Palavra mais decisiva e fundamental do que a palavra dos homens. E essa Palavra é tão decisiva que estes compreendem que a sua voz não se deve erguer - se não querem cair no ridículo - para lá do leve sussurro.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Poemas do Viandante (454)

Gianni Berengo Gardin - Venice (1958)

454. Sob o céu de Veneza

Sob o céu de Veneza,
dançamos pelos campos.

Somos de outro tempo,
de outra luz, de outra rua.

As mãos nas mãos perdidas,
o desejo que chega.

E tudo se incendeia
sob o céu de Veneza.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

O nome que lhe deram

Ray K. Metzker - Valencia (1961)

O homem moderno, nestes dias sem rumo, está longe de ser um viandante. O seu movimento incessante denuncia-o como mero transeunte, alguém vai e vem sem saber que toda a viagem é, na verdade, uma peregrinação. Não para admirar as relíquias dos santos, mas para si mesmo. O viandante procura o significado do nome que lhe deram. Este não é um simples designação, mas um mistério e um projecto de descoberta e coincidência com a palavra que o chamou à vida.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Haikai do Viandante (183)

Hengki Koentjoro - Sakura (2014)

um rumor de branco
nas cerejeiras em flor
luz e sol e canto

terça-feira, 8 de abril de 2014

O desejo infinito

Joshua Benoliel - Bairro Grandella (Festas dos Santos Populares) - Estrada de Benfica - Lisboa (início do séc. XX)

Há sempre nas festividades humanas, por faustosas que sejam, um rasto de desilusão, como se o prazer e a alegria esperados fossem outros e não aqueles que estão prometidos e são proporcionados. A incomensurabilidade entre o desejo humano e as suas possibilidades de realização é, na verdade, infinita, pois se a festa, aquilo que é o fruto mais raro da vida material, é finita, o nosso desejo é infinito e só no infinito pode ser saciado.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

A promessa e o desejo

Brett Weston - Classic Nude (1975)

Um dos elementos da dinâmica do desejo reside na apresentação do objecto de desejo como promessa. A promessa faz a mediação entre a indiferença do desejado e o compromisso que toda a entrega representa. A promessa é um sim que ainda é não, mas um não que entra num processo de transmutação semântica que culminará na sua metamorfose em sim. Prometer é intensificar o desejo daquele que deseja, levá-lo ao paroxismo. Mas a promessa só funciona desse modo se houver desejo daquilo que se constitui em objecto de desejo. Na ausência de desejo, qualquer promessa se torna risível. 

domingo, 6 de abril de 2014

Entre duas cegueiras

Alfred Eisenstaedt - Woman under streetlight in Montmartre at night. Paris, France (1963)

A luz, por rigorosas e claras que sejam as explicações científicas, nunca deixará, para os homens, de ser um mistério. Não podemos olhá-la fixamente, pois cega-nos, mas sem ela seremos também cegos. Esta ambivalência da luz traz uma certa ordem, a ordem que diz respeito aos homens na terra. Devemo-nos deixar  envolver por ela, devemos olhar o seu efeito sobre o mundo e os seus objectos. Devemo-nos deixar guiar pelo seu resplendor, mas mais do que isso não nos cabe a nós, pobres mortais perdidos entre duas cegueiras.

sábado, 5 de abril de 2014

A vertigem

Berenice Abbott - Broadway and Rector from Above, New York (1935)

A vertigem é uma confissão do corpo. Ele elevou-se mas a terra ainda o atrai, e fá-lo de tal forma que gera, no sujeito, o desejo de nela se estatelar e, assim, se fundir no húmus da terra. A vertigem é a confissão de uma alma telúrica que, deslocada do seu ambiente, a ele deseja retornar. Quem quiser, porém, fazer a viagem tem de aprender a caminhar no alto e a conviver com as solicitações terrestres que convocam a cada momento o tributo da queda.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Eclipsar a sombra

Eugène Atget - Eclipse (1911)

O desejo dos homens, no delírio com que se compreendem, é o de eclipsar o próprio Sol, tomando eles o lugar dianteiro e oferecendo-se como a luz do mundo. Disfarçados de faróis, os seres humanos transformam a vida sobre a Terra na mais trágica das comédias. A viagem que o Viandante almeja não é em direcção à ribalta. Mais do que eclipsar o Sol, o Viandante quer eclipsar-se a si mesmo, apagar a sua sombra e deixar que a Luz brilhe na mais pura luminosidade.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Haikai do Viandante (182)

Brett Weston - Bamboo Forest, Japan (1970)

um vento de cinza
na floresta de bambu
fogo e silêncio

quarta-feira, 2 de abril de 2014

A convocação do deserto

Charles Clifford - Catcus e Agaves (1862)

Há sinais na paisagem que anunciam o deserto. O que se perfila perante o viandante não é uma aventura num território inóspito e adverso, a porta para a glória dos triunfadores e dos que ultrapassam os limites que o corpo e a natureza impõem aos homens. Se o deserto chama o viandante é para lhe mostrar que ele não é mais do que um grão-de-areia na vastidão infinita do ser. No deserto, mesmo que este seja a mais fértil das planícies, o viandante é convocado para a humildade, essa tão estranha palavra para ouvidos e corações modernos.

terça-feira, 1 de abril de 2014

A noite dos sentidos

Robert Lebeck - Leningrad, Russia (1962)

É terrível a memória que nos traz a desmesura das praças vazias, aqueles lugares ainda não tomados pelo azougue dos automobilistas, sítios terríveis onde se escuta o eco do poder. Ali o viandante sente-se reduzido à sua verdadeira dimensão. Um grão de pó perante o sublime que emana da opressão nascida do delírio humano. Uma alma deslumbrada pela luz e que reduz os seus anseios à chegada da escura noite dos sentidos.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Poemas do Viandante (453)

Nicolás Lekuona - La calle de nadie, 1932

453. Uma sombra pela rua

Uma sombra pela rua
desce sem destino.

Leva o peso do passado
e a luz do presente.

Leva o prazer e a mágoa 
a elegia e o hino.

Leva o coração cansado
e o amor ausente.

domingo, 30 de março de 2014

O reino das sombras

Istvan Hanga - Ombre et appareil (ca. 1933)

Uma das ilusões dos amantes da técnica - e quem não o é, nos dias de hoje? - está na crença de que ela poderá ajudar o homem a sair da caverna platónica, onde apenas vê a sombra da realidade. Um telescópio, um microscópio, uma câmara de filmar ou de fotografar, enfim qualquer um dos mil dispositivos que são inventados para intensificar o poder dos nossos sentidos... Mas por mais intensos que estes se tornem graças ao poder da técnica, o que lhes é dado são sempre sombras. Gigantescas ou microscópicas, mas ainda e sempre sombras. Não suportariam a realidade.

sábado, 29 de março de 2014

Haikai do Viandante (181)


a sombra anuncia
na lonjura da floresta
o raiar do dia

sexta-feira, 28 de março de 2014

Da vida frutuosa

Edward Weston - Meraux Plantation House, Louisiana (1941)

Há certamente qualquer coisa errada numa vida que deixa como herança a ruína. Quando os homens centram a sua existência na materialidade do mundo, não demorará muito que essa materialidade seja reduzida a destroços e que tudo não seja mais que pó. O problema, porém, não está na materialidade. Quantas obras do espírito, obras que um dia foram aclamadas como intemporais, se viram vergadas pelo peso do tempo e se transformaram em poeira, um traço da vaidade humana inscrito na parede do mundo? Como pode uma vida frutificar e deixar uma herança? Talvez aquela que comece por abandonar qualquer pretensão à grandeza e à construção de qualquer herança.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Fugir ao mistério

Paul Wolf - Frankfurt (1929)

Haverá coisa mais temível do que a uniformidade da multidão? Não é apenas o espírito crítico que desaparece quando o homem mergulha no rebanho. O pior é o fechamento que o estar-em-multidão representa. Fechamento a quê? Ao mistério. A multidão exige espectáculo. Só a sábia solidão permite ao homem confrontar-se com o mistério de tudo o que existe. Mas não será para fugir a esse mistério que o homem anseia pela uniformidade da multidão?

quarta-feira, 26 de março de 2014

Perder as escamas

Esteban Vicente - Descubrimiento (1922)

São múltiplos os caminhos que, na viagem que cabe a cada um, se podem tomar. Não é certo que esses caminhos, ao bifurcar-se, não acabem por levar ao mesmo lugar. Um desses caminhos pode ser denominado o caminho da verdade. Não devemos, todavia, tomar a verdade como o acordo entre o nosso discurso - ou as nossas representações - com a realidade. Devemos tomá-lo no sentido grego de ἀλήθεια (alétheia), de desvelamento. A viagem é um desvelamento, o tirar o véu que nos impede de ver, a contínua revelação. Estar comprometido com a viagem no caminho da verdade não é uma questão cognitiva ou discursiva, mas existencial. Viajar significa que o viandante se dispõe a perder as escamas que, cobrindo-lhe os olhos, o impedem de ver.

terça-feira, 25 de março de 2014

Num campo de refugiados

Henri Cartier-Bresson - INDIA. Punjab. Kurukshetra. A refugee camp for 300.000 people. Refugees exercising in the camp to drive away lethargy and despair. Autumn 1947

Na tradição católica, a terra é vista, muitas vezes, como um vale de lágrimas, um lugar de exílio para uma alma criada para uma outra pátria que não a terrestre. Se esquecermos o vale de lágrimas e nos ficarmos pela ideia de exílio, perdemos o que é essencial nessa ideia, o facto de os homens, na terra, estarem, todos eles, num campo de refugiados, onde precisam de afastar a letargia e o desespero.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Sombra da morte

Roger Fenton - Valley of the Shadow of Death (1855)

A sombra da morte não acompanha o viandante apenas em alguns trechos da viagem, lugares mais sombrios ou com história lúgubre. Ela é a companheira inseparável daquele que se faz ao caminho. Por vezes, conselheira previdente; outras, o inimigo a derrotar. Retorna sempre, certa da vitória, mas no coração do viandante brilha, uma e outra vez, a esperança de que a vida acabará por triunfar.

domingo, 23 de março de 2014

O maior dos perigos

Robert Capa - BARCELONA, Spain. Running for shelter during an air raid alarm, January 1939.

A vida dos homens, por um hábito ancestral ancorado na tradição, é constituída em torno do abrigo. A eminência do perigo inscreveu-se nos genes e nos hábitos e, mal se suspeita uma ameaça, logo começa a corrida para o lugar de protecção. Esquece o homem, porém, que o abrigo não é outra coisa senão a caverna platónica. Esta pode-nos abrigar dos perigos, mas também nos abriga do choque com a realidade e com aquilo que, efectivamente, nos desafia. Quantas vezes o abrigo é, pela sua excessiva protecção, o lugar do maior dos perigos, o da negação da realidade.

sábado, 22 de março de 2014

Solidão e fragilidade

STEFANO RELLANDINI - REUTERS - Veneza, capital da região do Veneto

Retomemos a solidão, agora para a compreender a partir da fragilidade do homem. A solidão, a solidão essencial, não pode ser compreendida nem como a prova da força e de afirmação orgulhosa do homem, nem como o sintoma de uma fraqueza tal que o torna inapto para a vida com os outros. A fragilidade que está sob a solidão pode ser compreendida a partir do equilíbrio do barqueiro sobre as águas. A solidão, a solidão essencial, é sempre o difícil equilíbrio de alguém sobre as águas da sua própria fragilidade. A solidão manifesta-se, deste modo, como um bem precioso que, pela sua fragilidade e a fragilidade onde assenta, se pode perder e tornar irrecuperável.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Haikai do Viandante (180)

Joan Hernández Pijoan - Paisagem com um carvalho (1974)

perdido na paisagem
ergue-se o velho carvalho
sombra e imagem

quinta-feira, 20 de março de 2014

O lugar da solidão

Robert Doisneau - Rue des Ursins - Paris 4e (1945)

Somos demasiado sensíveis à definição aristotélica do homem como animal social. Não percebemos, todavia, que a verdade dessa definição oculta uma outra realidade humana, a sua solidão. Nesta não devemos ver apenas o abandono, mas a forma como o homem pode realizar tudo o que lhe é essencial. Só na solidão o homem é, na verdade, capaz de escutar a voz do outro. A própria sociabilidade humana está escorada na solidão do homem.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Suspensão

Sergio Larrain - Chiloé Island, Chile (1959)

O difícil lugar do homem sobre a terra. Nem solidamente enraizado, nem capaz para, como uma ave, voar nos altos. Suspenso. O seu lugar é a suspensão. E esta é o sítio onde se cruza o medo da queda e o desejo dos céus.

terça-feira, 18 de março de 2014

Que assim seja

José Alfonso Morera Ortiz - "Amén" (1990-94)

Que resta ao homem mergulhado no abismo? Não seria ridículo interrogar-se sobre a sua situação, especular sobre os fundos abissais ou as possibilidades de chegar a terra segura? Sim, tudo isso seria ridículo e inútil. Se o abismo o convocou e se ele seguiu a intimação, a única resposta possível é: que assim seja.

segunda-feira, 17 de março de 2014

O desabrigo dos sem-abrigo

Oscar Gustave Rejlander - Homeless (1860)

A condição de sem-abrigo não é acidental, não é o resultado dum azar na vida ou duma deficiente mobilização das faculdades racionais do homem. Sem-abrigo é a condição do homem no mundo, por maior que seja o palácio onde vive, por maiores que sejam os cuidados e a segurança mobilizados. Estar vivo é estar desabrigado, exposto à arbitrariedade dos elementos naturais, aos caprichos da sociedade, ao jogo da sorte, em suma, à surpresa da vida. Estar desabrigado, porém, pode ser também um acto de se tornar disponível para ouvir aquilo que, no fundo do homem, chama por ele.

domingo, 16 de março de 2014

De degrau em degrau

Hernández Pijoan - Cinco espaços dourados (1976)

Um dia ouvi que uma certa tribo de esquimós, cujo nome já não recordo, tinha mais de sessenta palavras diferentes para designar o branco. Viviam numa paisagem onde, praticamente, só existia a cor branca e tiveram necessidade de apurar a linguagem para especificar as diferenciações que lhes permitiam viver. Também o viandante tem necessidade de introduzir diferenciações na paisagem por onde caminha. Fá-lo como se criasse os degraus duma escada infinita, onde cada degrau impele o espírito para um novo e já transitório degrau.

sábado, 15 de março de 2014

Esquecer-se de si

Robert Capa - FRANCE. 1944. Normandy. Omaha Beach. The first wave of American troops lands at dawn.

O mais difícil da viagem não é o caminhar, o mais difícil é desprender-se de si ao caminhar. Seja para onde for que o viandante se volte, o ego - o seu pequeno ego - apresenta-se como o herói, o falso herói, duma gesta imaginária. Sim, sabemos que o essencial é cumprir a injunção faça-se a Tua vontade, mas dentro de nós grita mais alto a vontade própria. E quanto mais o viandante quer que ela morra e ceda os seus direitos, mais ela luta por se afirmar e conquistar território. O mais difícil é aprender a morrer para si mesmo, esquecer-se de si.