Caravaggio - Siete obras de misericordia (1607)
Naquele tempo, Pedro
aproximou-se de Jesus e perguntou-Lhe: «Senhor, se o meu irmão me ofender,
quantas vezes lhe deverei perdoar? Até sete vezes?» Jesus respondeu: «Não te
digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete. Por isso, o Reino do Céu é
comparável a um rei que quis ajustar contas com os seus servos. Logo ao
princípio, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos. Não tendo com que
pagar, o senhor ordenou que fosse vendido com a mulher, os filhos e todos os seus
bens, a fim de pagar a dívida. O servo lançou-se, então, aos seus pés, dizendo:
'Concede-me um prazo e tudo te pagarei.’ Levado pela compaixão, o senhor
daquele servo mandou-o em liberdade e perdoou-lhe a dívida. Ao sair, o servo
encontrou um dos seus companheiros que lhe devia cem denários. Segurando-o,
apertou-lhe o pescoço e sufocava-o, dizendo: 'Paga o que me deves!’ O seu
companheiro caiu a seus pés, suplicando: 'Concede-me um prazo que eu te
pagarei.’ Mas ele não concordou e mandou-o prender, até que pagasse tudo quanto
lhe devia. Ao verem o que tinha acontecido, os outros companheiros,
contristados, foram contá-lo ao seu senhor. O senhor mandou-o, então, chamar e
disse-lhe: 'Servo mau, perdoei-te tudo o que me devias, porque assim mo suplicaste;
não devias também ter piedade do teu companheiro, como eu tive de ti?’ E o
senhor, indignado, entregou-o aos verdugos até que pagasse tudo o que devia. Assim
procederá convosco meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar ao seu irmão
do íntimo do coração.» (Mateus 18,21-35)
[Comentário de Cesário de Arles aqui]
O texto trata da natureza da justiça e da misericórdia divinas e
estabelece um padrão de comportamento para as relações humanas. É comum afirmar
que o ethos da compaixão crística –
que resulta do padrão desenhado pelo texto de Marcos – não tem sentido quando transposto
da relação puramente humana entre um eu e um tu para a dimensão cívica. Não é
possível alguém funcionar numa sociedade agindo de tal modo e o próprio poder
político, enquanto monopólio da violência legítima, não pode ter a misericórdia
como núcleo central da sua acção. O curioso de texto é que a natureza da
justiça divina é estabelecida por analogia com a justiça de um rei.
A parábola é antecedida por um diálogo entre Pedro e Jesus, onde este
explica que a misericórdia para com o outro deve ser infinita. Contudo, a
parábola introduz uma limitação nesse infinito. O rei perdoa a primeira ofensa,
a da dívida. Não perdoa, porém, uma segunda ofensa, agora feita a terceiros. A
falta de misericórdia do devedor perdoado e o consequente castigo imposto pelo
rei tornam evidentes os limites do uso da misericórdia na vida pública. Isto
não significa, porém, que a misericórdia deva ser banida da cidade e das
relações cívicas. Significa antes que ela deve ser um horizonte regulador da
vida entre os homens e que as próprias instituições devem agir tendo por pano
de fundo essa misericórdia.
Na aplicação da lei, na execução da pena, sob o véu da reposição da
paz pública pelo exercício da violência legítima deve-se poder encontrar a misericórdia
como ideia reguladora da acção. Isso não significa abolir as penas, mas usá-las
de forma a que a qualidade de pessoa não seja negada ao culpado. E aqui
manifesta-se já a misericórdia, pois o culpado é sempre culpado de ter, de
alguma forma, negado a natureza de pessoa à vítima. É a humanização da lei
civil aquilo que as sociedades ocidentais devem ao ethos da compaixão crística. Não é pouco.