quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Poemas do viandante

125. TEMPO (2)

a friagem
o outono a trouxe
branca
ilha de sal
e cinza
e calcário

fruto caído
no refúgio
esquecido do
calendário

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Poemas do viandante

128. A CANSADA MÃO

exausto chegou
o viandante
a chuva sobre os ombros
um vento de floresta
zune nos ouvidos
e o rumor de todas as
cidades
aberto como um punho
de mirtilos e framboesas
a escorrer da tua boca

de que vale a viagem
se o silêncio
pontua a sombra
que desce nesses olhos
e vela a flor
que o verão escondeu
sob os seios
que se arrancam
à cansada mão
que deseja

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Poemas do viandante

124. TEMPO

uma ruga
no silêncio da areia
a lágrima caindo
o dedo decepado
do verdugo

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Poemas do viandante

123. ROMÃ

o resto de romã
a arder na boca
a madeixa
tocada pelo vento
o silêncio entreaberto
dos lábios

tudo isso
testemunho
se aguardo
o toque dos sinos
num mar de lilases
e cristais de seda

um cão uiva
o coração afogado
na boca de lilás
nos lábios presos
ao fértil anoitecer
da breve romã

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Poemas do viandante

122. INVERNO

o crepitar da sombra
abre uma rua
de luz sob o olhar
com que incendeias
o mundo

casas árvores um rio
tudo arde na encosta
do inverno que
se anuncia
coração tolhido
pela cor extasiada
do frio

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Poemas do viandante

121. LINGUAGEM

a linguagem
flor obscura
que me atormenta
abre-se tempestuosa
no rumor do meio-dia

como pétalas
caem palavras
constelações de letras
um suspiro de algas
a breve folha da laranjeira

na névoa
agora desfiada
resta o eco de um nome
promessa de areia
na penumbra dos sentidos

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Tudo o que não sou

A suposição de ser alguma coisa, essa herança construída pela coligação entre as gramáticas indo-europeias e a filosofia grega - onde aquelas se pensaram e tomaram consciência de si -, é a imagem de uma infância nunca abandonada. Não daquela infância onde tudo é inédito e uma ânsia conduz à descoberta do mundo, mas da outra infância, concomitante dessa, aquela em que se luta desesperadamente para se convencer a si mesmo que se é alguma coisa, que se tem um lugar no mundo e uma voz que deve ser ouvida. Aquilo, porém, que poucos confessam é que esse convencimento é precário e que, no fundo de nós, uma dúvida persistente lança uma sombra sobre o que somos, o lugar que ocupamos, a voz que fazemos ouvir. Se deitarmos borda fora tudo isso, será que perdemos alguma coisa? Posso perder tudo o que não sou. Isso bastará? Não. É preciso ir mais longe. Não basta perder aquilo que não se é. É preciso perder aquilo que se é, mesmo que não saibamos o que somos. Aí haverá, então, a esperança de encontrar a voz do coração. Não a do nosso, porque o coração que fala não tem proprietário. É só uma voz, vinda sabe-se lá de onde, que clama no deserto.

Poemas do viandante

120. A MINHA ALDEIA

a súbita fome
esse olhar que escondia
as últimas cerejas e
o cansaço de ser tão humano
disposto na luz e nas trevas
a mão hirta a rasgar oceanos

de joelhos na madrugada
deixo correr o silêncio
aí vazam os sinos –
um dia encheram de vida
o desvão da memória
a que chamo minha aldeia

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Poemas do viandante

119. A MAÇÃ

o voo da maçã
na história
daquela mão
dança como
a nostalgia
que chega
pelos dias
de setembro

se olhas
já não vês
imagens são
pequenos pontos
de erva e vento

neles
a cegueira cresce
inundando de luz
a maçã pousada
nessa mão

domingo, 25 de julho de 2010

Poemas do viandante

118. VIDA

cinza abre-se
na água
que corre
daqueles olhos

um sonho
o tempo de calcário
a flauta incendiada
onde repousa
a vida perdida
entre escolhos

sábado, 24 de julho de 2010

Poemas do viandante

117. FUTURO

o futuro não é a rosa
ou o silêncio seco
das tardes de verão

branco como um muro
de quinta
chega quando
as andorinhas partem
- sob a tua luz -
para a inquietação
do sul

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Poemas do viandante

116. ENIGMA

um fogo de ervas
no palácio
onde o rei
te espera

uma flor inclinada
como um enigma
na boca
da tarde

um traço de sombra
respira
no coração
que desperta

domingo, 11 de julho de 2010

Poemas do viandante

115. ÁRVORE

deixar vir
a árvore
com a sua
cegueira
espalhar
entre tufos
de joio
a sombra verde
do trigo

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Poemas do viandante

114. PALAVRA

a palavra
sombra
de água
no jardim
a que chamas
porto

navios
gaivotas
círculos
sobre os ombros
aí suportas
o mundo

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Poemas do viandante

113. SENTIMENTO

sentimento
luz de rosas
sobre terra
de cinza
vergada ao
vento

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Dessubjectivação

Um dia de calor. Tudo se torna mais difícil. Aquilo que se exige é agora, mais que em outros dias, um campo de negação de si mesmo, um território de oblação e sacrifício. Cumprir cada uma das tarefas, não esperando nada delas, mas oferecendo-as como aprendizagem do esquecimento de si. Uso a palavra dessubjectivação. Este cumprir do dever como uma entrega e negação da vontade própria é uma forma de dessubjectivação, um rasgar da máscara, um passo para além da ilusão da nossa substancialidade. A dessubjectivação não é obrigatoriamente, como muitas vezes acontece, uma alienação, um estranhamento. Pode ser um passo para a clareira onde O que não vemos se manifesta. No sacrifício das tarefas quotidianas encontramos um caminho, um difícil caminho para quem sente o apelo da quietude. Mas há que cumprir essa Vontade que não é a nossa.

sábado, 3 de julho de 2010

Poemas do viandante

112. FOLHA

a folha tocada
pelo silêncio
inclina-se
deixa o vento
passar por ela
suspende a noite
se a seiva
dos teus dedos
se demora nela

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Poemas do viandante

111. NOITE

um jardim
no silêncio do mar
a noite aberta
pela raiz
algas e mãos
a face lívida
na súbita
ondulação

aí me perco
para te escutar

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Poemas do viandante

110. CÂNTICO

tudo reverbera
fecho os olhos
e vejo-te
no cântico
que ao declinar
o dia traz

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Poemas do viandante

109. TARDE

a tarde sobre
a ravina
pássaros de papel
e sangue
a buganvília
na sombra
da qual
espero

terça-feira, 22 de junho de 2010

Sobre a morte de José Saramago

Nestes dias, aqueles que a morte de José Saramago ocupou, muitas coisas sem nexo foram ditas. Sublinho, no entanto, aquela que assumiu o cúmulo da irrelevância. Disse L'Osservatore Romano que Saramago "foi um homem e um intelectual de nenhuma admissão metafísica, ancorado até ao fim numa confiança arbitrária no materialismo histórico, aliás marxismo." Como é possível dizer uma coisa destas? Em primeiro lugar, porque o materialismo dialéctico e o marxismo não passam de metafísica, de uma dada metafísica materialista, mas ainda e só metafísica. Em segundo lugar e mais importante, porque, tendo em conta aquilo que li de Saramago, só a metafísica o parecia interessar.

Mesmo a blasfémia, se é que Saramago era um autor blasfemo, é um louvor a Deus. Mas a recorrência da temática religiosa nas suas obras, mesmo que sejam pequenas notas de raspão, é um confronto de uma subjectividade com o terrível silêncio de Deus. Em Saramago havia uma pulsão de neo-converso ao contrário. Era como se o escritor fosse uma espécie de Paulo de Tarso, mas aspirasse ser um João Evangelista ou, de outra forma, um daqueles monges do deserto que fazem a história inicial da mística cristã. Perante a impossibilidade, ele assumia-se então como um S. Paulo ainda quando tomava o nome de Saulo.

A obra e a personalidade do escritor são o exemplo de uma luta metafísica, uma luta trágica, e deveriam merecer uma atenção redobrada, em vez da lamentável nota de L'Osservatore Romano. Saramago é um exemplo de como a crença na subjectividade própria impede de escutar Aquele que fala no silêncio e na pobreza do deserto. A ânsia de encontrar Deus, de o fazer manifestar-se, e a ânsia de salvar o ego tolheram em Saramago o caminho, transformaram-no numa luta titânica desvairada e fecharam-no dentro de si e no mundo, sempre um pequeno mundo, por amplo que seja. Há aqui mais do que um simples negador, há aqui um exemplo do destino do Ocidente. E não apenas daqueles que não conseguem silenciar-se, não conseguem silenciar a ânsia e o desejo que povoa o ego empírico, para que possam escutar Quem fala, mas também um exemplo de como aqueles que detêm o depósito da palavra já não a percebem ou não conseguem dá-la a perceber.

Poemas do viandante

108. INCLINAÇÃO

tudo se tornou
mais raso
a água
o fogo
as planícies
pelo sul

inclino a cabeça
e oiço uma voz
branca
no verde
da colina
de onde espreitas

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Poemas do viandante

107. SOMBRA

emudecido
as mãos cobertas
de pústulas
uma noite
de palavras
e sombra

rasto na areia
a saudade
na janela
de onde avisto
o silêncio
que espera

terça-feira, 25 de maio de 2010

A questão e a resposta

Nous devenons nous-mêmes Son écho et Sa réponse, comme si, en nous créant, Dieu nous avait posé une question, et qu'en nous appelant à la contemplation Il y répondît, de sorte que le contemplatif est, à la fois, question e réponse. Thomas Merton (1963). Semences de contemplation. Paris: Seuil, p. 11.

Quando se fala do homo viator, daquele que é viandante, fala-se do que faz a viagem entre a questão posta e a resposta a dar. De certa maneira, qualquer ser humano, e não apenas o tecnicamente contemplativo, está na viagem que vai da questão posta à resposta a dar.

O jogo do questionar e do responder, porém, não é tão fácil como aparenta à primeira vista. Se na sua formulação parece, e de certa maneira é, um jogo infantil, a quantidade daqueles que deambulam sem saber que questão são ou que resposta representam mostra a dificuldade e os perigos da aventura.

A primeira dificuldade nasce na nossa incapacidade em nos tomarmos por uma questão. Habituámo-nos, desde a hora que nascemos, a representarmo-nos por uma frase declarativa (eu sou x, ou eu sou y; a estrutura destas frases pode ser designada assim: a é b). Esta declaratividade tranquiliza-nos e põem-nos em segurança. Mesmo que, mais tarde, duvidemos do conteúdo proposicional da declaração (isto é, não saibamos bem se somos x ou y), somos incapazes de olhar para nós mesmos como questão.

A primeira razão deve-se ao fascínio da declaratividade. Mesmo que o conteúdo da frase declarativa seja posto em causa, a sua forma impregnou-se de tal modo no nosso espírito que somos incapazes de ir para além dessa estrutura (a é b). Decepcionados com o conteúdo, procuramos sempre e sempre novos conteúdos. Cada novo conteúdo da proposição declarativa (eu sou x, ou y, ou z...) representa um fascínio e uma decepção. Fascínio, pois a novidade descoberta irradia no espírito durante algum tempo. Mas a novidade está condenada a deixar de o ser. Aí, o espírito decepciona-se, sente-se cansado, à deriva. Sente-se preso não sabe bem a quê. A prisão, no entanto, não é outra coisa senão a forma da declaratividade.

Uma segunda razão que nos torna incapazes de nos assumirmos como questão está ligada à estrutura do próprio questionar. Este é tomado, no jogo linguístico, como o antecedente de uma resposta. Se digo "eu sou x", pressuponho nesta proposição declarativa o eco de uma questão (quem és tu?). Assim, a forma como nos habituámos a questionar está já dentro do perímetro de segurança da proposição declarativa.

Quando Merton diz que Deus nos colocou uma questão precisamos de perceber a natureza desta questão. Ela não é linguística mas ontológica. A questão que Deus me coloca não é a pergunta "quem és tu?", pertence a outra dimensão. Pelo facto de ser, eu sou já a questão. A praxis linguística tem de facto a capacidade de nos fazer extraviar. Mesmo se substituirmos questão por enigma ou mistério, o hábito conduz-nos a formular esse enigma ou esse mistério de uma forma linguística, que nos arrasta para o domínio da declaratividade.

Mas se eu sou uma questão de natureza extra-linguística, então a resposta que também sou não se pode inscrever no domínio da linguagem. É por isso que as histórias exemplares do Budismo-Zen nos parecem tão bizarras. Merton diz-nos que Deus ao chamar-nos à contemplação responde à questão que colocou. Assim sendo, a resposta à questão que sou é um fazer (uma poiesis), neste caso contemplar, e não um declarar. Este fazer não é, contudo, um mero operar subjectivo sobre as coisas exteriores ou mesmo sobre a nossa suposta natureza interior. É um fazer sem sujeito nem objecto, um puro fluir que vai da nascente para a foz, que não é outra coisa senão a nascente. Mas dizer isto é ainda estar preso na ilusão da declaratividade.

Poemas do viandante

106. SALOMÃO

aquela maré
de frio e naufrágio
ergue-se
pela manhã

cântico vesperal
no declive
que vai de um
ao outro braço

ali salomão
ergueu a tenda
e deixou vaguear
os olhos

entre seixos
e rebanhos
que apascentava
na erva do coração

sábado, 22 de maio de 2010

Poemas do viandante

105. CORAÇÃO DILATADO

a serpente raia o dia
traz um pouco
de cólera
à lavoura
que deixa a terra
sequiosa
da água a vir

nem promessa
nem engano
o coração dilatado
espera
que a porta
se abra
e possa partir

domingo, 16 de maio de 2010

Poemas do viandante

104. VIAGEM

a viagem
onde te descubro
ao invocar o silêncio
tempestade
de rosas no pólen
da infância

a voz quebra-se
no horizonte
desce
língua de fogo
a arder no sangue
que arde
em mim

Segurança

O maior perigo vem da busca de segurança. Muitas vezes, na ânsia de fazer proselitismo, o que se oferece às pessoas é a ilusão da segurança, de uma segurança que acaba no outro mundo mas que começa já neste. Mas a vida está longe de ser segura e a verdade nunca trouxe segurança a ninguém. Por que razão a via haveria de ser segura?

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Tornar-se em nada

O que está na nossa mão? Nada! Mas este nada não significa nada fazer, indiferença, entrega à fatalidade. Este nada significa o tornarmo-nos no nada que somos e nessa nulidade encontramos O que é. A grande dificuldade é aceitarmos a nossa condição, reconhecermos a indigência da nossa natureza, o carácter precário das nossas pequenas verdades. Tornarmo-nos em nada não é a negação da vida, nem a afirmação do niilismo. É apenas a humilde disposição para que o Ser fale no silêncio dessa nulidade.

Poemas do viandante

103. O GRANDE RIO

uma ilha
na roda da noite
a flor ébria
esquecida
um nome
entre provérbios
e cânticos no azul
desses lábios

aí começa
a peregrinação
o mar incendiado
as escamas
que saltam
os olhos abertos
para o grande rio
de onde tudo parte